Acabo de acordar, tento disfarçar o ar desgrenhado antes de saltar para o computador. Às oito em ponto, ligo via Skype para alguém com o cognome Tickler, associado a uma fotografia de um macaco – o perfil que me garantiram ser de Matt Preston. Afinal, descobriria mais tarde, pertence a um dos seus filhos. Do outro lado, surge parte da cara do mítico jurado do concurso MasterChef Austrália (e há de ser difícil pôr-se a jeito para a câmara lhe captar todo o rosto). De iPad na mão, caminha por uma grande vivenda até conseguir um recanto sossegado. Nos antípodas, o Sol está quase a pôr-se. São seis da tarde de «um dia lindo», e Matt, de 54 anos, está de calções e camisa, com toda a disponibilidade para responder às perguntas, sempre com remates de humor britânico. E paciência, muita, quando alguns problemas técnicos ameaçaram cortar a nossa conversa, a pretexto do lançamento em Portugal do seu novo livro de receitas.
É conhecido por ser um gentleman. A sua educação inglesa nunca o desilude?
[Risos] De facto, nunca podemos esquecer a nossa educação. Mas se for agora a Inglaterra, acham que eu não tenho maneiras, com este sotaque australiano…
É difícil imaginá-lo, na juventude, como dj e músico punk…
Diz isso por causa da minha aparência atual. Mas, por acaso, comecei a pôr lenços nos anos 70, porque as camisas não tinham botões, usavam-se abertas e eu tinha de disfarçar o meu peito. E também foram os lenços que me levaram até ao MasterChef. Como assim? Um dia ligaram-me da produção para eu dar ideias de nomes de chefs para serem jurados e de uma mulher para ser a anfitriã. Falei com eles durante uma hora. No final, pediram-me para enviar uma foto minha. Houve outro produtor que a viu e disse imediatamente: «Se ele conseguir falar, quero-o no programa!»
Os lenços ficaram como a sua imagem de marca. Mas constato que neste momento não está a usar nenhum…
Não! Ainda estou de calções, porque hoje esteve um dia lindo e há bocado fui nadar para me manter em forma para a próxima temporada do MasterChef. Há quem estranhe que eu não use lenços nos locais mais insólitos, como na piscina…
Como é a sua relação com a comida?
Sou obcecado. Aliás, nós os três [ele e os outros jurados, Gary Mehigan e George Calombaris] somos food nerds, podemos ficar muito excitados com uma boa maçã.
E come de tudo?
Só tenho uma regra: não como nada que cheire a cocó ou chichi. E, claro, prefiro um delicioso tamarindo a um escorpião.
Hoje cozinha só com produtos acessíveis. Porquê?
Nas minhas receitas, os ingredientes têm de estar à venda nos supermercados locais. Detesto aquela sensação de ver uma receita, gostar muito dela, mas quando me decido a fazê-la, faltar-me algum produto a que não tenho acesso. Penso o mesmo acerca do equipamento – nada de maquinaria cara. Uma boa faca pode fazer maravilhas e o mais hi-tech que sugiro é uma misturadora.
Porque deixou Londres, onde nasceu e estudou, há 23 anos?
Porque me apaixonei por uma australiana.
Aquela com quem está casado?
Não, esta é a segunda por quem me apaixonei. E agora já adoro viver aqui, de cabeça para baixo, do outro lado do mundo.
Ganhou fama depois do MasterChef, mas antes teve outra vida. O que estudou em Inglaterra?
Estudei Política e Economia. Mas passei muito tempo a promover bandas no Reino Unido, a escrever para uma revista de música e a ir a concertos. Ainda adoro música. Só que há duas décadas que escrevo sobre comida. Também organizei, durante cinco anos, o festival de gastronomia e vinhos de Melbourne – trouxe alguns grandes chefs até à Austrália.
São esses que convida para abrilhantarem o MasterChef?
Não queríamos os chamados chefs-palhaço, aqueles que estão num canal de televisão aos gritos. Sempre preferimos convidar pessoas mesmo boas no que fazem, com credibilidade quando falam. A grande questão que se coloca hoje em dia é a de saber se se quer ser uma superstar ou conseguir realmente cozinhar?
As duas realidades são incompatíveis?
Parece-me arriscado nunca estar no restaurante, a não ser que ele seja gerido pelo sub-chef. Nesses casos, faz-se a pesquisa, elabora-se o menu, e depois confia-se cegamente na equipa. Alguns chefs dão-se bem com este registo, outros nem por isso.
Conhece algum chef português?
Não. Há tempos tivemos no programa uma sobremesa inspirada num pasteleiro português, mas não me lembro do nome dele. Os chefs portugueses sofrem do mesmo do que os australianos – estão longe das grandes capitais gastronómicas.
E Portugal, já visitou?
Nunca, mas foi onde os meus pais passaram a lua de mel. Está agendado ir para o ano, antes que Lisboa se torne uma cidade turisticamente massificada.
Viaja muito em trabalho?
Gosto imenso de viajar. Tenho muita sorte, porque o meu amor e o meu trabalho coincidem. Desde maio, já fui à Cidade do Cabo, a Joanesburgo, à Califórnia, em eventos profissionais, e estive na Sicília de férias. Depois passei por Nápoles, Barcelona e San Sebastian. E acabei de chegar do Sri Lanka com a minha família [mulher e três filhos], ao fim de 30 anos a sonhar lá ir. Para o ano, já disse, quero ir a Lisboa, conhecer a cidade, comer uma sopa verde e marisco. Aviso já: tenho uma longa e trágica adição a um bom Porto!
É isso que conhece da nossa gastronomia?
A vossa cozinha é única, de base – torna-se impossível ir a Goa, ao Sri Lanka ou ao Japão e não perceber a influência portuguesa na comida.
O que traz dessas viagens todas?
Quanto mais se viaja, mais conhecimento e experiência se acumula. E depois há a comida de rua: podem existir muitos restaurantes de autor, com interpretações modernas da gastronomia, mas cada vez sinto mais prazer nas receitas tradicionais.
Não é um chef. Como se identifica?
Onde cozinha um chef? Num restaurante. Onde cozinha um cozinheiro? Em casa.
As receitas que escreve são de cozinheiro para cozinheiro?
Sim, é esse o espírito do novo livro [O Livro de Cozinha, Casa das Letras, 360 págs., €29,90]. Percebo a alegria de se ler uma obra que reflete um restaurante, mas na verdade o que lá se encontra são sempre versões simplificadas, nunca a verdadeira receita. O que é escrito por críticos gastronómicos resulta melhor, porque é testado em casa, com eletrodomésticos caseiros, em doses para quatro pessoas. Eu nem cozinheiro sou, mas escrevo receitas há 15 anos e já ganhei prémios com isso. Passo muito tempo a pesquisar estes assuntos.
Cozinha para a sua família?
Nem sempre. Quando estou a gravar, por exemplo, chego a casa às sete e meia e a minha mulher já tratou da comida. Mas eu arrumo a cozinha. E dedico-me a isso aos fins de semana ou quando vêm cá amigos. Muitas das minhas receitas são escritas à mão na praia, durante o verão, ou nas férias de setembro. É quando tenho o meu pico de tempo na cozinha.
Costuma receber amigos em casa? No livro, expõe tantas regras que nem parece divertir-se com isso.
Essas regras são coisas que fui aprendendo com a experiência. Quando tenho cá amigos, não sigo essas regras, limito-me a cozinhar. E faço sempre comida a mais… Houve uma época em que os jantares em casa estavam a morrer, mas agora tornaram-se novamente comuns. Tira-se um bocado de carne, faz-se um acompanhamento, uma salada e já está.
Lembra-se qual foi a pior coisa que teve de comer no MasterChef?
Ahhhh… Foi fígado de camelo. Era verde, picante, sabia horrivelmente e vinha acompanhado de banana… Nestas duas últimas temporadas cozinhou-se muito bem. É do nosso interesse ter lá bons cozinheiros, pois não há nada mais deprimente do que apercebermo-nos de que estão ali 24 pessoas a cozinhar miolos e que 23 nunca o fizeram e por isso vão ficar mal feitos. Na dúvida, é preferível dar-lhes frango ou borrego ou peixe, coisas que costumem fazer em casa.
Quando começou a escrever sobre livros, não havia tanto sururu à volta da comida. Porque será?
Na Austrália, sempre houve uma imprensa gastronómica muito avançada, da qual eu fiz parte, mas que escrevia para uma elite. Há 12 anos, tivemos um aumento de revistas mais populares que também tratavam desses assuntos. A nossa chef Donna Hay e o Jamie Oliver também deram uma ajuda. E o MasterChef veio na cauda disso, há sete anos. Começámos num canal de cabo secundário, com fracas audiências, para passarmos para um dos principais, conseguindo ótimos resultados. Hoje mantém-se como o programa mais visto do cabo. Tudo aconteceu muito depressa.
A democratização dos restaurantes de autor também é um fenómeno que contribuiu para esse entusiasmo?
Antes, ir a um restaurante com estrelas Michelin não era para toda a gente, até obrigava a vestir fato e gravata. Agora, a atmosfera é mais descontraída, embora a ementa continue requintada. A comida está também muito mais “apetitosa” para os media. Escrever sobre alguém que cozinha uma galinhola não tem muito élan, mas explicar como se põe uma sobremesa a flutuar ou a explodir na nossa boca já é diferente. Há muito mais entretenimento e humor na culinária, graças a restaurantes como o Fat Duck, em Londres, ou o El Bulli, em Espanha, que têm orgulho genuíno no que confecionam e nos seus produtos únicos. Há 20 anos, os melhores restaurantes eram sempre franceses, quer se estivesse em Inglaterra ou na Austrália.
Até quando durará este fascínio pela comida?
Já está a abrandar. Dantes, os livros de dietas vendiam-se em janeiro, a seguir às festas. Agora é todo o ano. Mudámo-nos para a era do wellness, as pessoas andam à procura de uma varinha mágica para resolver os seus problemas. Criou-se a ideia de que a comida é o inimigo e que não nos podemos alimentar com isto ou com aquilo – há os regimes palio, os sem glúten e outros ingredientes…
O que tem a dizer sobre essa tendência?
Acho um ótimo sinal que nos preocupemos com a origem da nossa comida, que tenhamos consciência ambiental e ecológica. Mas ainda corremos o risco de ficarmos afetados por isso. Como escrevo no meu livro: não se trata de cozinhar algo de espetacular, mas de ter os amigos sentados à mesa e dar-lhes de comer, com amor. Algumas das receitas que lá estão são apenas um conjunto de ingredientes, para que se possa estar mais tempo a conversar com os amigos, pois considero que a comida é um lubrificante social. Perante todas estas manias, digo o mesmo que Michael Pollan [jornalista americano]: «Eat food, not too much, mostly plants.» (Alimente-se de comida verdadeira, não muita, sobretudo de plantas.)
Os australianos são como os portugueses, gostam de comer?
De comer, de viajar e de conviver. Temos grandes quintais com churrascos, os homens reúnem-se à volta da carne, a discutir quando a tiram das brasas. Eu, por acaso, prefiro estar na cozinha com as mulheres – as conversas são muito mais divertidas e interessantes. E torna-se mais arriscado fazer uma salada, com frutos secos, sementes e fruta do que assar carne. Carne é carne, já o mundo vegetal é tão variado…
Porque acha que a versão australiana do MasterChef é favorita em todo o mundo. Será por sua causa?
Não sei. Nós somos como desenhos animados… Uma vez recebi um twit de uma pessoa na Índia, a dizer que adorava a ideia de ver o programa com a família e depois irem todos para a mesa comer. Penso que a essência do MasterChef é essa ideia antiquada de que é importante comermos juntos, de tratarmos as pessoas com respeito. Quando começámos a fazer o programa, nenhum de nós queria ser o jurado mau, ninguém queria ser a personagem Gordon Ramsey, ninguém gosta desse comportamento, não achamos necessário, é melodramático, desonesto e antipático. Se nos cozinham um prato que não está muito bom, só temos de ajudá-los a fazer melhor da próxima vez.
Gostam tanto dos concorrentes como parece?
A nossa versão baseia-se em boa comida, em pessoas a perseguirem os seus sonhos e na nossa simpatia. Sim, nós gostamos mesmo dos concorrentes, passamos tempo com eles depois do programa, celebramos quando atingem os seus objetivos. Por exemplo, agora há um deles, um estudante de fisioterapia, que está a cozinhar no Mugaritz, em San Sebastian [considerado o sexto melhor restaurante do mundo]. Estou muito orgulhoso dele. É um crítico e trabalha ao lado de dois chefs.
Nunca se irritam ou discordam?
Em sete anos, lembro-me de discutirmos por causa de gnocchis e de puré de batata. Eu e o George somos mais aventurosos, o Gary é mais tradicional.
Sugeriu o nome deles, quando lhe pediram opinião?
Sim, conheço-os há dez anos, da época em que organizava o festival de gastronomia. Suspeitei logo que o George ia ficar com o lugar, porque se adequava melhor ao formato, mas o Gary acabou por resultar numa ótima combinação. O George é o coração do programa, o Gary o motor e eu a cereja no topo do bolo. Temos diferentes aproximações à comida, mas uma atitude semelhante. Chamamo-nos um triângulo – juntos, somos mais fortes do que individualmente.
E encontram-se fora do programa?
Somos amigos. Ainda ontem fomos jantar fora. E gostamos todos de viajar e às vezes fazemo-lo juntos. Durante seis meses, estamos mesmo muito perto uns dos outros, quatro vezes por semana, doze horas por dia. Além disso, o Gary vive a um quilómetro da minha casa e o George a dois. Acabamos por nos encontrar no parque: eu a ver o meu filho jogar cricket, o Gary a passear o cão. E ainda vou ao futebol com o George.
O que vai ser o seu jantar, agora que já escureceu por aí?
Tacos (adoro comida mexicana!). Trata-se de uma receita do meu próximo livro, um how to do, com muita informação, fotos e detalhes.
É muito ativo nas redes sociais. É só trabalho ou também gosta dessa interação?
Adoro. Sempre disponibilizei o email no final de todos os textos que escrevi. As redes sociais são uma fonte de informação e interação fantástica e não apenas uma ferramenta de marketing. Ainda agora, no Sri Lanka, postava fotografias dos locais onde estava e imediatamente tinha comentários de pessoas de lá, a falarem-me sobre os seus costumes.
À volta de Matt há apenas escuridão. A parte da sua cara que continua visível está apenas iluminada pela luz do iPad. Liberto-o para ir saborear os tacos que cozinhou para a família. “A minha preocupação é que tenho dois filhos rapazes que comem tudo! Vou chegar à mesa e pode só restar tomate e alface… depois escrevo-lhe uma nota enfurecida.”