Porque refletir sobre ócio implica falar de tempo, trabalho e ecologia, Maria Manuel Baptista, 51 anos, defende que é preciso educar para o ócio. Como faziam os gregos, para quem a palavra escola, “scholé”, era o lugar de ócio, o do tempo necessário para pensar.
Professora na Universidade de Aveiro, pertence à rede iberoamericana “Otium” e lidera o único grupo dedicado à investigação do tema em Portugal. Se pensava que o ócio devia ser reduzido em tempos de crise, precisa de ler esta entrevista.
Criou-se a expectativa de que o século XXI traria o Homem ocioso, com menos tempo de trabalho e mais de prazer, mas tem acontecido o oposto. Ainda existe ócio?
Menos horas de trabalho exigem menos consumo e trabalho mais sustentado. É uma bela utopia, que será de sustentabilidade.
Mas não é isso que vemos.
Pois não, porque trabalhamos por três. Produzimos o suficiente para suportar um horário de trabalho de 5 a 6 horas. Se calhar, não precisamos de consumir tão desesperadamente. Um sistema mais sustentável precisa do ócio.
É difícil falar de ócio sem falar de trabalho?
A profissão implica realizar uma atividade que também é humana. Pode ser vivida como ócio se der uma sensação de autonomia, de vivermos o nosso trabalho como queremos. Nessa respiração própria posso ser extremamente criativo. Quanto mais o trabalho é mecânico e sempre igual, mais o homem pode ser trocado pelas máquinas.
O que aconteceu ao tempo livre que as máquinas nos podiam “oferecer”?
As tecnologias contraem o tempo e o ócio procura exatamente o contrário – dilatá-lo, numa relação mais humana e tranquila. Mas o tempo que ficou livre foi apropriado pelo mercado.
Pessoas com mais tempo deveriam ser mais felizes, mas há estudos a indicar que os desempregados passam a maior parte do dia a dormir e a ver televisão. O que está mal, afinal?
Os desempregados têm um problema de identidade porque nunca fomos educados para o ócio. Quando não se tem emprego, deixa de se existir em muitas dimensões. Falta reconhecimento porque o mercado não quer comprar o meu tempo. Eu própria já não sei quem sou. Fomos educados para trabalhar, não para valorizar um tempo próprio e subjetivo.
Cientistas da Universidade da Virginia, EUA, levaram vários grupos para um espaço agradável e pediram-lhes para ficarem até 15 minutos sem fazer nada. A maioria respondeu com elevados níveis de stress. Não sabemos estar sem fazer nada?
Como ninguém foi educado para o ócio, as pessoas ficam stressadas, enchem as férias de tarefas pesadíssimas.
Férias e ócio são sinónimos?
Não, antes pelo contrário. À medida que se avança na industrialização exige-se que o trabalhador seja também um consumidor. As férias estão para o sistema industrial como o sistema industrial está para as férias. Correspondem a uma necessidade económica de produzir consumidores. O ócio abre um tempo que normalmente as pessoas não têm. As férias são um negócio.
Ou seja, a negação do ócio.
Sim. Nega o ócio. Porque o negócio é utilitário e tem um fim. O ócio é um fim em si próprio, uma experiência que se pretende transformadora. Não é para nada. É um tempo para mim, para me encontrar e acrescentar sentido à vida. Por exemplo, ler um livro cujas personagens ficam a pairar na nossa cabeça, é um mundo novo. Transformou-me. Abriu-me um outro olhar. Estendeu os limites da minha imaginação. Numa atividade de ócio tenho a capacidade de me transformar naquilo que estou a fazer. Torna-me uma pessoa mais rica, interessante, elaborada. O negócio poderá estragar o ócio, transformando-o em lazer. Quem não está educado para o ócio precisa de mais tempo para entrar nele.
O que ouvimos de pequeninos é que a preguiça é a mãe de todos os vícios.
Teme-se o tempo livre. Uma cabeça vazia sabe-se lá o que pode pensar. Este é o problema do ócio.
A crise económica foi pretexto para redução de feriados e tempos de descanso. Para quê estudar o ócio nesta conjuntura?
O primeiro grande impulso dos estudos de ócio deu-se há 30 anos, em Bilbao, que passava pela crise profunda de uma indústria fortíssima em falência. A cidade ficou de rastos, com um desemprego brutal. A Universidade de Deusto olhou para aquilo e decidiu tomar o tempo livre daquelas pessoas não como inútil, mas como um tempo que poderia ser valorizado.
Como?
Não quiseram treiná-las para aprenderem a fazer outra coisa qualquer que dali a 5 anos acaba e volta o desemprego. Fizeram oficinas de auto-descoberta e criatividade, sobretudo pela via da arte, que é muito livre.
Qual era o objetivo, então?
Reencontrarem a sua identidade, por forma a criar novas carreiras e auto-negócios.
A Europa de hoje subsidiaria cursos que estimulam o ócio?
Pode acontecer… O núcleo de ócio, que integra o programa cultural da Universidade de Aveiro e Minho, tem um projeto com desempregados, que está a correr muito bem. Uma atriz do Porto pegou num grupo de jovens desempregados e criou um projeto de teatro comunitário. Não ensina nada em concreto, mas trabalha o auto-conceito destas pessoas. Quem sou eu para lá do desemprego?
E resultou?
Tiramo-los da desistência e da depressão, vão à procura de projetos que os coloquem no centro das suas próprias vidas. Não os ensinamos a serem soldadores, mas sim a redescobrirem um conjunto de recursos pessoais, que não se reduzem àquilo que o mercado naquele momento quer ou não quer.
Isso era o ensino no sentido tradicional, da “scholé” grega.
Era. Mas não é mais. Nem os pais nem os alunos o querem. E as próprias universidades também não, porque estamos sempre ao serviço do mercado. Antes, nas universidades, formávamos cidadãos. Agora estamos a formar trabalhadores. Consumidores. Clientes do sistema.
Um ciclo vicioso de consumo?
Estamos organizados para trabalhar o máximo número de horas, para ganhar o máximo para depois ter o lazer que me permita gastar esse rendimento.
Parece um ciclo infernal. Uma armadilha perfeita.
Os dois sistemas alimentam-se. Há o tempo livre e o tempo de trabalho. Depois do trabalho abrem-nos uma espécie de prisão e deixam-nos sair para a liberdade. Com essa liberdade, o mais comum é consumir, o que torna esse tempo livre tão escravo como o outro. Se se trabalhou tanto, era o que faltava não poder gastar. Como se gasta muito, é preciso continuar a trabalhar muito. A maior parte das atividades de lazer funciona assim.
Mas o lazer não é o ócio. Como se distinguem?
O lazer é uma utilização do tempo que me resta para além do trabalho de forma muito automatizada. Não permite nem muito auto-conhecimento, nem auto-consciência.
Porquê?
Se eu usar o meu tempo para ver novelas, no caso dos mais velhos, ou ver séries sem parar, como fazem os jovens, ou a jogar no computador, estou em atividades mecânicas. Ocupo o tempo, mas não me traz nada de novo. O ócio acrescenta a isto uma dimensão criativa, de construção e de autonomia. Depois de um momento de ócio sou diferente e olho o mundo de uma maneira diferente.
Numa época em que tudo é massificado, esse tipo de ócio não está em vias de extinção?
Não. É cada vez mais procurado. Em fenómenos como as slow cities ou a slow food. Mas também nas religiões new age, como as que praticam meditação, ou na busca de regresso ao campo.
São franjas?
Sim, mas também são sinais que têm a ver com a ecologia, com a defesa do ambiente, com um tempo mais humano.
Alguém consegue conquistar esse tempo mais humano?
No norte da Europa, onde a maior ambição é a conquista de tempo, o que vemos são as sociedades em bloco a caminharem para aí. Menos tempo de trabalho, mais tempo com a família, maior consumo cultural e de atividades viradas para o ambiente. Menos idas ao shopping. Mais reciclagem.
Mas em Portugal somos criticados por termos demasiado tempo improdutivo.
Comparam-nos com outros países, que são mais produtivos porque têm mais tecnologia. Aí trabalha-se menos horas e faz-se uma distribuição da riqueza mais equitativa.
O século XXI parece demonstrar que a tecnologia não nos libertou, afinal.
A tecnologia é uma coisa ótima, mas temos de saber o que fazer com ela. Alguns grupos aprenderam já a tirar partido dos buracos do sistema.
Como?
Na última investigação que fiz sobre ócio encontrei-o onde menos esperava. Nos shopings há sempre uma zona com idosos, nos sofás. Investigámos como usam o seu tempo e concluímos que alguns são deixados de manhã, à porta do centro comercial, pelos filhos, que os vêm buscar ao final do dia.
Ócio como um mecanismo de defesa contra a solidão?
Contra a solidão e a sensação de abandono que temos muitas vezes nas sociedades atuais. Quanto mais se pratica o ócio criativo, mais interessantes as pessoas se tornam, atraindo sociabilidade.
Passar o dia no Shopping, sem consumir, é uma nova forma de ócio?
É uma apropriação do mercado, uma forma de passar pelas malhas do sistema. São idosos com reformas baixas, que assim conseguem passar o dia num ambiente seguro, confortável e estimulante, por comparação com os lares.
Como ocupam o tempo?
Uns vêm do campo, outros da cidade. Misturam-se, mas organizam-se por habilitações literárias. Há grupos de sofás por habilitações. Os que são agricultores chegam a trocar sementes lá dentro. Entram nas lojas, conversam, experimentam e até se apaixonam pelas lojistas. Sentem-se renascer. Sentem-se vivos. Chamei a essa investigação “consumidores mínimos, utilizadores máximos”. Não têm dinheiro, mas tiram o máximo do centro comercial.
É um fenómeno português?
O estudo está a ser replicado noutros países e os comportamentos são semelhantes. O mais interessante é que, mesmo nas catedrais do consumo encontramos uma apropriação e uma resposta pessoal nas margens do sistema. As pessoas sempre encontram uma maneira de dar dimensões humanas às coisas.
Os jovens também saberiam fazer essa apropriação?
Têm sido treinados para respostas estereotipadas, com muito menos grau de autonomia. Querem receitas: “diga-me o que tenho de fazer para ter emprego”. Quando à nossa volta o importante é a profissão e não o modo como nos vamos realizar, agimos como máquinas. Para obter um resultado.
Essa relação de causalidade é cada vez menos real.
Sim, começa a não ser verdade. O grande problema está na falta de confiança que passamos hoje aos nossos filhos. Há uma desconfiança básica para com a vida. Falta aos nossos alunos uma forma não técnica de olhar a vida.
A educação agarrada a esse sentido utilitário do saber está a dar os frutos pretendidos?
O ensino está a tornar os alunos muito performativos, quando as Letras devem preparar para um mundo mais autónomo, de pessoas mais críticas. Perguntam: “Isso que Kant e Hegel dizem serve-me para quê no mercado de trabalho?” Transformámos todos os cursos em cursos com aplicações práticas.
Mas hoje foge-se das Humanidades porque não dão emprego.
Os alunos querem ser todos iguais do ponto de vista da empregabilidade. Há uma margem muito pequena de alunos criativos. A maioria são alinhados e acreditam que há um modelo único de sucesso. O sistema educativo é a negação do ócio. Mas depois querem alunos inovadores.
Uma cultura de ócio é compatível com um mundo laboral cada vez mais competitivo?
Por o mundo ser mais competitivo é que são precisos momentos de ócio. Uma política de ócio tem de ser amiga do tempo de não trabalho, da natalidade e da qualidade de vida. O ócio é articulador de tudo: trabalho, tempo, arte, turismo. Mas esta ideia é contra-corrente. Precisamos de uma ética do ócio.
O cúmulo do ócio
“Antes, nas universidades, formávamos cidadãos. Agora estamos a formar trabalhadores. Consumidores. Clientes do sistema”
“Depois do trabalho dizem-nos que estamos livres, abrem-nos uma espécie de prisão e deixam-nos sair para a liberdade. Com essa liberdade, o mais comum é consumir, o que torna esse tempo livre tão escravo como o outro”
“Depois de um momento de ócio sou diferente e olho o mundo de uma maneira diferente”
“Há idosos que são deixados de manhã, à porta do centro comercial, pelos filhos, que os vêm buscar ao final do dia”
“As férias estão para o sistema industrial como o sistema industrial está para as férias.”