‘O pior minuto de todos foi o primeiro. Eram 11h30 da manhã, menos 5 horas em Lisboa, e íamos naquele preciso momento a sair do quarto. No primeiro segundo pensei que fosse um comboio a passar debaixo do chão. Mas depois não havia dúvidas. Era um terramoto. Também me lembro de pensar que ia acabar rápido. Mas foi o minuto mais longo de sempre. (…) Os aeroportos estão fechados e não vale a pena entrar em pânico. A cidade vai voltar devagar ao que era e até já conseguimos internet e comer um prato de esparguete. Amanhã tomaremos decisões sobre o que fazer. Para já pergunto-me: como se dorme hoje depois de uma experiência destas? O que muda depois de uma almost death experience?”
Este foi o primeiro post pós-terramoto no Facebook de Pedro Queirós, 33 anos, que tinha chegado há pouco mais de 24 horas ao Nepal com o amigo Lourenço Macedo Santos, de 35, para um trekking nos Himalaias. E depressa encontrou resposta para as perguntas que partilhava com os amigos. Algo se agitava também dentro de si – e voar para outro país, virando costas àquele povo amistoso que tanto necessitava de ajuda, não era uma opção. “Após uma reunião ao mais alto nível, entre mim e o meu sócio Lourenço Macedo Santos, decidimos que o melhor que podemos fazer é ir comprar mantimentos e distribuir pelas pessoas que dormem nos parques da cidade.
Vamos levantar todo o dinheiro que conseguirmos e comprar comida. Se quiserem contribuir façam uma transferência para a minha conta. Não sei se isto é legal e não posso passar recibos. Mas no final farei um relatório em word, fonte Times New Roman, tamanho 12, com tudo o que angariámos e comprámos.”
O que compraram voou em minutos. Perceberam rapidamente que a sua missão não se esgotaria em poucos dias. “As pessoas estão esfomeadas e cheias de sede. Queixam-se que ninguém as ajuda. Há muitas organizações humanitárias no terreno mas ainda não conseguem chegar a todo o lado. Quando chegamos com os mantimentos a situação é simplesmente inacreditável… Temos logo de ser rodeados por militares. Na nossa primeira investida matinal, havia duas filas de pessoas para receber comida e água. Cada uma tinha pelo menos 500 metros.”
Pedro ia partilhando nas redes sociais o que via no terreno e na sua conta bancária começavam a ser depositados donativos de dezenas de portugueses, comovidos com a situação. Na manhã seguinte, faziam-se as primeiras contas: receberam cerca de 1 100 euros, o que deu para comprar 400 garrafas de água de 1 litro, 70 latas de 1kg de leite em pó, 75 kg de tomate, 500 kg de arroz, 800 pacotes de noodles prontos a comer, 1 200 pacotes de minibolachas e 144 queijnhos A Vaca que Ri, para crianças.
“Voou tudo, não sobrou nada. As pessoas estão mesmo a precisar… Conhecemos uns nepaleses que, impressionados com o que dois estrangeiros de Portugal estão a fazer, dispuseram-se a ajudar e até tinham uma carrinha. Thank God. Imaginem o que seria de nós os dois a carregar as quantidades mencionadas sozinhos… As pessoas e a imprensa internacional que anda na rua perguntam-nos quem somos e a que organização pertencemos. Nós dizemos que somos apenas dois amigos que querem ajudar. Que somos Portugal. Que somos Nepal.”
Foi assim que nasceu a assinatura dos seus posts no Facebook, e que acabaria por dar nome ao movimento que criaram, sem saber muito bem como: “Obrigado Portugal Nós Também Somos Nepal”. Passaram a levar consigo um pedaço de cartão onde desenharam uma bandeira nacional e começaram a fotografar os nepaleses a quem entregavam os mantimentos comprados com o dinheiro enviado por portugueses, em sinal de agradecimento.
Essas imagens acabariam, ao longo da última semana, por tornar-se virais. Milhares de pessoas começaram a seguir o trabalho voluntário de Pedro e Lourenço e a partilhar a sua vontade de contribuir para a causa. E, como a solidariedade não escolhe idade, até duas meninas de Vizela partiram os seus mealheiros para ajudar os meninos do Nepal. Os seus porquinhos tinham 22 euros na barriga.
‘Como posso ajudar?’
Estava em Calcutá, na Índia, quando vi as primeiras imagens da destruição. Pensei que se tratasse de um filme. O país que visitei há menos de um ano, e a praça histórica com templos centenários onde tirei centenas de fotografias não podia estar naquela situação de caos e miséria… Mas estava. Ainda está. E muito provavelmente não voltará a ser o que era, nunca mais. Decidi entrar em contacto com várias organizações no Nepal, oferecendo-me como voluntária.
Desde o sismo de 25 de abril, têm chegado ao Nepal centenas de voluntários, de todo o mundo. As autoridades contabilizam mais de quatro mil – mas serão, provavelmente, muitos mais. Em grupo, têm-se focado nas aldeias menos assistidas e tentam, com poucos recursos, ajudar como podem. Desde a construção de abrigos, casas de banho públicas, recuperação de pertences, fornecimento de água e comida, até ao suporte emocional – criando momentos de brincadeira com as crianças, que agora nem sequer têm escola.
William Massaro foi o primeiro a responder aos meus emails. Trabalha para a YWAM (Youth With A Mission), uma missão empenhada na mobilização de jovens, e vive na Tailândia. É brasileiro e foi “apanhado” pelo sismo em Kathmandu, numa viagem de poucos dias. Decidiu ficar para ajudar e eu decidi juntar-me a ele. Aterrei no aeroporto e segui para uma guest house em Jal Lakal, na zona de Lalitpur, contornando ruas soterradas em entulho e acampamentos improvisados em cada espaço aberto. A primeira noite foi dedicada à “organização das tropas “. Reuni-me com os restantes membros da YWAM para decidir o que fazer no dia seguinte. Com a recolha de dinheiro que fiz antes de viajar, comprei material desportivo básico: oito bolas, dez coletes e apitos. Consegui autorização para trabalhar com crianças, com a ajuda de Diligam, presidente da YWAM no Nepal, que me emprestou um carro e me levou a um espaço aberto, no centro de Kathmandu. Em menos de dez minutos, tinha 52 meninos a rodear-me. Organizámos quatro campos de treino, com a ajuda de vários voluntários. A alegria dos miúdos quando chutavam a bola, derrubavam os pins ou marcavam um golo nas balizas improvisadas, era contagiante. Depois de uma hora a correr, a saltar, a gritar e a jogar, distribuímos um sumo e um pacote de bolachas a todos. No final do primeiro dia, apesar do pouco que fiz, acabei por sentir – que tinha valido a pena estar ali que tinha feito alguma diferença na vida daquelas crianças, que sorriam à minha volta.
Uma causa portuguesa
Encontrei-me pela primeira vez com o Pedro e o Lourenço no domingo, 3, depois do meu trabalho no campo. Juntámo-nos no Hotel Dwarikas, perto do aeroporto. Contando já com muita ajuda a chegar de Portugal, começaram a trabalhar também com as supermulheres da organização BPW Business Professional Women, do Nepal. Decidi associar-me à causa portuguesa. Comecei na segunda-feira, 4, pelas 9 horas, a empacotar sacos de comida para distribuir por 150 famílias. Continham 10 quilos de arroz, lentilhas, sal, sabonete e pacotes de bolachas. Em três horas, conseguimos empacotar 160 sacos e partimos, ansiosos por chegar àqueles que mais abandonados se encontram: os que estão fora da cidade.
A vila de Kushwadevi, a uma hora de Kathmandu, é um lugar com acessos difíceis, no meio das montanhas, e sem estrada, a partir de certo ponto. Chegámos por volta das duas da tarde, depois de um furo no pneu e um trekking improvisado. Tínhamos cerca de 300 pessoas à nossa espera.
Entre a distribuição dos sacos, os dhanyavaad (obrigada, em hindi) e as crianças que corriam e saltavam à nossa volta, senti finalmente na pele aquilo que sempre me ensinaram: que quem mais dá é quem mais recebe.
Socorrista em ação
Héli Camarinha chegou ao Nepal no mesmo dia que Pedro e Lourenço: a 24 de abril, uma sexta-feira que antecipava apenas um fim de semana de boas aventuras. No dia seguinte, quando estava a fazer o check-out num hostel de Kathmandu, o mundo começou a ruir. “Levei alguns segundos até perceber o que se estava a passar. Pensei que era um trovão.”
Eram 26 os portugueses que se encontravam no Nepal naquele momento. Mas Héli estava sozinho. Ao seu redor, tudo tremia. Os edifícios iam-se desmontando como legos. “Assim que cheguei a uma das praças do centro, vi templos completamente destruídos. Centenas de pessoas estavam nas ruas e senti que partilhávamos o mesmo sentimento: choque, tristeza e impotência.”
Dos turistas que estavam no país, muitos regressaram. Mas a ideia de virar costas a quem precisava não coincidia com a vontade do português que, com formação em primeiros socorros, não pensou duas vezes antes de se dirigir ao hospital mais próximo para auxiliar as centenas de pessoas que enchiam as salas de emergência. “Assim que cheguei, pude ver o quanto precisavam de ajuda de mais médicos, enfermeiros, auxiliares, bem como de mais equipamento e medicação. Não estavam, de todo, preparados para uma catástrofe desta magnitude.”
A equipa hospitalar logo o encarregou com tarefas transferir os pacientes do chão para as macas, limpeza da sala de emergências e até auxílio direto nas intervenções médicas aos pacientes.
Perguntado pelas dificuldades que se fazem sentir, acusa a pouca ajuda (“ou nenhuma “) do Governo e do exterior. Os milhares de pessoas que residem nas aldeias estão “muito limitadas quanto ao acesso a alimentos, água potável e abrigos dignos”.
Ainda sem viagem de regresso marcada, sabe apenas que, para já, permanecerá no Nepal. Mais tarde, continuará a sua jornada pela Índia. Desta experiência, sabe que guardará para sempre os sorrisos genuínos dos nepaleses e o seu exemplo de resiliência. “No final, são eles que nos estão a ajudar, com uma grande lição de vida.”
‘Onde está o papel?’
Esse é também o sentimento que ficou com Ana Barbosa, de 41 anos, depois de uma semana no Nepal. Instalada em casa de Rosário Norley, 50 anos, uma portuguesa que ali reside desde 2013, acabou por se habituar ao som do alarme antissismo, que tocava sem parar todos os dias. Mas a serenidade dos nepaleses, num momento tão trágico, impressionou-a de uma forma quase transformadora. Ana viajava com outros dois portugueses, Sandra e Nuno Coelho, engenheiros civis de formação, que acabaram por ajudar da forma que lhes era possível: muitas vezes, dando conselhos sobre a estabilidade dos edifícios a nepaleses que tinham dúvidas sobre a segurança das suas casas. Ao lado da casa de Rosário, o centenário templo de Changu Narayan ficou em escombros. A portuguesa acabou por acolher o guardião do templo e a sua família. O grupo de amigos, apesar do nível de destruição, sentiu que valeu a pena conhecer o Nepal – e dedicou o último dia de férias a comprar mantimentos que depois entregaram num templo budista que apoia as populações mais isoladas nas montanhas.
Também Rui Ferreira, de 24 anos, e João Augusto, de 26, andaram na semana passada a distribuir comida aos desalojados nepaleses. Estavam na Malásia no momento do terramoto mas decidiram voar para Kathmandu com pouco mais que boa vontade nas suas mochilas. Assim que aterraram no aeroporto, juntaram-se a uma equipa de voluntários e ajudaram a recolher os bens mais necessários: comida, água, tendas e sacos de cama. Mas a falta de um papel exigido pelo Governo do Nepal fez com que a polícia os expulsasse do aeroporto, não permitindo que os portugueses continuassem a cooperar ali com as restantes equipas. Os dois acabaram por abandonar o país cinco dias depois. Mas sentindo que ajudaram quantos conseguiram, da maneira que lhes foi possível.
Mover montanhas
Terça-feira amanheceu quente e seca em Kathmandu. O sol entrou cedo pela janela e, mesmo não tendo dormido muito, acordei antes do despertador. O trabalho começou pelas 9 horas no Hotel Dwarikas. Quando cheguei, juntei-me ao Pedro, ao Lourenço e à restante equipa da BPW. Era preciso empacotar todos os alimentos: arroz, sal, pacotes de bolachas e lentilhas. Havia também sabonete e colchões para distribuir por mais de 250 famílias.
Chegámos a Ichangau, a primeira vila que visitamos, por volta das 14 horas. As pessoas esperavam por nós entusiasmadas, na rua estreitada pelas ruínas. Grande parte das casas desmoronou há nove dias e parte da população destas zonas mais remotas ainda está a dormir na rua.
Mais uma vez, a reação das pessoas foi comovente. As crianças brincaram connosco, com as nossas máquinas fotográficas, com os nossos cabelos. Fomos tratados da melhor forma possível por pessoas que perderam tudo – mas não o sorriso.
Quando chegámos foi-nos oferecido um colar de flores e um lenço branco, em sinal de gratidão. Mas, neste tipo de trabalho, o melhor fica sempre reservado para o fim. Quando conversamos com cada uma das mulheres, homens e crianças, quando nos fazem perguntas sobre o nosso país, ou quando vêm atrás da carrinha de caixa aberta onde transportamos a comida, só para nos dizerem adeus uma última vez.
A segunda vila, Bhim Dunga, foi o local fora de Kathmandu mais afetado pelo sismo onde estive. Grande parte das casas estão arrasadas e aqueles que sobreviveram continuam a dormir nas ruas. Entre as ruínas, espreitam sofás, lençóis, cobertores, escovas de cabelo. Pedaços de vidas desfeitas em poucos segundos. Um dos habitantes conduziu-nos pela aldeia, pelas cozinhas improvisadas em tendas de lona e pela oficina onde vários homens tentam cortar material dos escombros para construir novas casas.
Em Bhim Dunga distribuímos 80 sacos de comida e partimos para o último ponto do percurso: Chapa Gaun. Chegámos à aldeia por volta das seis da tarde. Já era de noite e os habitantes esperavam-nos desde manhã cedo. Todas as pessoas estavam na rua, rodeando a nossa carrinha e entregando flores e balões a toda a equipa. Não sei quantos “obrigados” ouvi nos primeiros dez minutos.
Nesta aldeia, as pessoas continuam a dormir ao relento, uma semana e meia depois do terramoto, e pouca ajuda chegou até lá. Depois da distribuição dos nossos sacos de mantimentos, não havia como negar o convite para tomar chá com todos os anciões da aldeia. “Lori, Lori, Lori! Pedro, Pedro! Mariana, Mariana!”, foi a banda sonora da despedida, com dezenas de crianças a correr atrás da nossa carrinha, até nos perderem de vista.
Como diz o Pedro Queirós, “estamos cansados mas muito otimistas e motivados “. As pessoas do Nepal, de Portugal e já de outros países, não param de nos apoiar. Podemos não ter muito mas, como cantava Amália: “A alegria da pobreza/ está nesta grande riqueza/ de dar e ficar contente.”
* com Bárbara Vaz Martins e Patrícia Fonseca