“Estou em condições de lhe pedir que me deixe pagar metade deste tratamento ao Serviço Nacional de Saúde, mas por favor não me deixe morrer.” A interpelação ao ministro da Saúde, Paulo Macedo, tem o dramatismo de quem convive com o dilema de aceitar a morte por não ter dinheiro para a vida.
Feito há mais de um ano, o apelo de José Saldanha, 50 anos, não teve o resultado desejado. O estado da doença agravou-se e as respostas traduziram-se em adiamentos.
A hepatite C mata, mas tem cura. Se houver orçamento para ela. E é aqui que tudo se complica. O Ministério da Saúde, através do Infarmed, tem “algoritmos de critérios de aceitação” ou preocupações com a “sustentabilidade do sistema”.
Luís Mendão, presidente do Grupo Português de Ativistas sobre Tratamentos VIH (GAT), lembra que os valores dos novos fármacos, com taxas de cura acima dos 90 por cento, já estiveram nos 56 mil euros e, hoje, “países como Espanha compram-nos por 21 mil”. A questão é saber porque Portugal não consegue o mesmo.
Guilherme Macedo, hepatologista do Hospital São João, no Porto, só tem uma explicação: “Contestamos a tentativa de adiar o problema e a falta de capacidade negocial. A indústria já baixou o preço para metade e pode baixar mais. Mas não é a tentar negociar, é a concluir negociações. Os doentes estão há demasiado tempo à espera.”
Dos cerca de 12 mil infetados identificados nos hospitais portugueses, “mil precisam de medicamentos no prazo de um mês e 3 mil com brevidade”, conclui Luís Mendão. Mas, acrescenta, “nem a promessa de tratamento para 150 pessoas até ao final do ano passado foi cumprida”. Comparações feitas, “França tratou 10 mil pessoas e Portugal 50”.
Inquirida pela VISÃO, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed) faz outras contas: “Para Autorizações Excecionais do medicamento sofosbuvir foram, até ao momento, deferidos 93 pedidos”. Somando os ensaios clínicos, sem custos para o SNS e acessíveis a doentes muito selecionados, o Infarmed conclui que houve “mais 170 doentes” tratados.
Para o diretor do serviço de gastroenterologia do hospital do Porto, que acompanha doentes de hepatite há mais de 20 anos, a autorização especial exigida para estes fármacos é um mau método porque “não se trata de uma situação excecional, mas sim de uma doença que afeta mais de 100 mil portugueses”. A maioria nem sabe ainda que tem a doença, transmitida por via sexual ou sanguínea.
Sem autorização para curar
Os hospitais conhecem há muito as necessidades e a dramatização financeira não convence o médico: “O Infarmed sabe que terá entre 10 a 12 mil doentes. Isto dá para estoirar com o SNS? Não brinquem comigo! Mais defensor do SNS do que eu não deve haver. Mas não podemos usá-lo como arma de arremesso. O sistema vale pelo que pode dar às pessoas”, revolta-se Guilherme Macedo, obrigado a encarar os doentes para lhes dizer que, sim, há cura, mas não, ainda não chegou autorização para a proporcionar.
Sendo uma doença de progressão lenta, a maioria dos infetados não está entre a vida e a morte. Mas a intervenção precoce pouparia custos. O não tratamento implica a evolução para cirrose e a cirrose significa cancro do fígado. Chegados a este limiar, o transplante é, muitas vezes, a única solução. Mas, sem tratamento farmacológico, serve apenas para ganhar tempo. Cerca de dois anos, mais precisamente. Como o vírus continua lá, explica o hepatologista, o novo fígado “volta a infetar-se em 100 por cento dos casos”.
Embora alegue que as negociações estão ainda a decorrer, o Infarmed admite a mais-?-valia dos novos fármacos: “De forma global, o tratamento dos doentes com estes novos medicamentos (considerando todos os doentes a tratar e não apenas os doentes que vêm a necessitar de transplante) implica um acréscimo de custos mas também um acréscimo dos anos de vida ajustados à qualidade de vida dos doentes quando comparados com cenários em que estes medicamentos não seriam utilizados.”
Guilherme Macedo confessa-se “chocado” com a discriminação da hepatite C quando comparada a outras enfermidades: “Por ano, gastam-se 219 milhões de euros com o VIH, €202 milhões com medicamentos contra o cancro, €25 milhões com esclerose múltipla e apenas €4,6 milhões com hepatite C. Sem os novos tratamentos, nos próximos 15 anos, os números de cirrose compensada, de cirrose descompensada, cancro do fígado e de morte por doença hepática, deverão aumentar em 45%, 100%, 80% e 90%, respetivamente! O custo cumulativo será de 2,1 mil milhões de euros, relacionados sobretudo com as complicações da doença”.
O estigma da hepatite C, associada a toxicodependência, embora haja infetados por transfusão sanguínea, só tem contribuído para piorar a situação. José Saldanha não esconde o passado de dependência de drogas, embora tenha já “tantos anos de vida de dependência como de abstinência”. No último internamento viu morrer duas pessoas no mesmo quarto. Deixou de poder viver sem urgência. “Cada dia que passa e o senhor ministro da Saúde diz estar a negociar com as farmacêuticas é menos um dia para mim. Que direito tem ele para dar preço à minha vida? Se existe dinheiro para salvar bancos, porque não há para salvar pessoas?”
Rodeado de marcadores do tempo na relojoaria de peças antigas que gere na Baixa lisboeta, José Saldanha não tem como ignorar o passar dos dias. Nem ele, nem o vírus que afeta 150 milhões em todo o mundo e 9 milhões na Europa.