A primeira entrevista para este artigo esteve quase para não acontecer. Ao fim de dez minutos à porta de Manuela de Azevedo, comecei a convencer-me de que, azar dos Cabrais, a senhora tinha morrido. A campainha ouvia-se cá em baixo e, como havia uma janela entreaberta no seu primeiro andar, o telefone parecia estridente. Por que razão Gentileza, a empregada solícita que ajudara a marcar a entrevista para a tarde daquela segunda-feira, não atendia?
Não sabia que Manuela de Azevedo mora sozinha no Bairro das Colónias, em Lisboa, no apartamento que começou por dividir com os pais e a irmã, em 1960, nem que, todas as manhãs, Gentileza a ajuda a vestir-se, faz o almoço e despede-se até ao dia seguinte; ao final da tarde, chega uma outra empregada para lhe dar o jantar.
Tudo isto me conta a antiga jornalista quando consigo que me abra a porta de casa, no primeiro andar. “Estamos num intervalo, temos tempo”, dirá, com ar de miúda. “Desculpe a espera, mas ouço mal, vejo mal, já tenho 103 anos feitos em agosto”, ri-se. Indica com a mão a sala de estar e segue-me devagar, apoiada num andarilho, esforçando-se por andar com a cabeça erguida.
O seu quarto fica perto da porta da rua, colado à sala de estar e ao escritório. Em cima da cama deixou o rádio que a mantém em contacto “com a vida lá fora” e sobre a secretária repousam montinhos de papéis organizados – está quase terminado um livro de contos. E eu devo estar com ar espantado. “Continuo a escrever com facilidade, só não consigo ler o que escrevo. Preciso que me passem tudo ao computador.”
Entusiasma-se a contar que já tem título – O Pão que o Diabo Amassou – e editora. Gostava de o lançar na Feira do Livro, aproveitando para falar sobre o jornalismo de causas. E eu entusiasmo-me com ela. Um livro aos 103 anos é extraordinário, não é?
Mas a senhora que tenta manter-se direita no sofá consegue surpreender-me de novo. “Estou farta de viver, sabe? Tirando a parte literária, já não estou cá a fazer nada. Porque me preocupa o mundo e não tenho possibilidade de ser uma pessoa atuante.”
É a natureza que manda?
Manuela de Azevedo foi jornalista mais de 60 anos, no República, no Diário de Lisboa, na Vida Mundial, no Diário de Notícias. Dedicou a sua vida ao trabalho.
Hoje, quando não está a escrever, está a ouvir rádio, deitada na cama. Gosta de receber visitas, mas há dias em que a má circulação lhe prega partidas. Como esta tarde, queixa-se: “Não estou muito feliz a conversar, não me saem coisas bonitas.”
Nos últimos anos, habituou-se a que lhe perguntem pelo segredo da sua longevidade. “É a natureza que manda”, costuma responder. Acredita que, se lhe cabe alguma responsabilidade, será pelo que não faz. “Não bebo vinho porque não gosto e não bebo café porque só gosto nos cafés. A alimentação não é excessiva, só aquilo que o estômago pede.”
Combinamos a ida do fotógrafo para a semana seguinte e despeço-me a pensar que segredo terá Tiago Carias, o antigo trabalhador da CP, de 105 anos, que vamos conhecer dali a três dias, no Barreiro.
Entretanto, chega o email com as respostas de João Passos, investigador no Instituto para a Saúde e Envelhecimento na Universidade de Newcastle, no Reino Unido. Segundo ele, estão prestes a poder começar a pensar em intervenções genéticas, farmacológicas e alimentares em seres humanos, depois de conseguirem com êxito prolongar o tempo de vida com qualidade de ratinhos e outros animais de laboratório.
Enquanto isso não acontece, João Passos lembra que o modo como vivemos o dia-a-dia tem grande impacto no envelhecimento. “A contribuição dos genes é de cerca de 15 por cento. Os maiores contributos são o ambiente e o estilo de vida: uma alimentação saudável; o exercício físico regular; a moderação no consumo do álcool; o cuidado na exposição ao sol. Do tabaco, nem se fala. Por vezes, ouvimos dizer: fulano viveu até aos cem anos e bebia um copo de aguardente a todas as refeições ou fumava sabe-se lá quantos cigarros. Mas a exceção não é a regra.”
‘Desta não me salvas’
As palavras do investigador português hão de pairar em todas as entrevistas seguintes. Haverá, no dia-a-dia destas pessoas, ensinamentos a recolher?
“A minha vida deu muitas voltas, tive sete filhos, trabalhei sempre no duro.” Tiago Carias faz uma declaração de princípios, é como se dissesse: “Não pensem que cheguei aqui de mão beijada, mereço ser centenário.” Depois, descreve pormenorizadamente a luta que travou na CP por melhores condições de trabalho e, no fim, por uma pensão digna.
Tinha 69 anos quando enviuvou, há quase quatro décadas. Aos 80, aceitou viver com a filha Odete, neste seu apartamento na Quinta da Lomba. Ganhou novos hábitos, como o de jogar às cartas, mas já não distingue os naipes. Em maio de ano passado, quase a fazer 105 anos, ainda andava um ou dois quilómetros por dia, conta a filha. Agora, cansa-se mais. Mesmo assim, vai duas vezes por dia até ao Jardim dos Pombos, a cinco minutos de casa, onde os seus “colegas” de jogo se abrigam debaixo de um caramanchão.
“Todos os dias, faço a minha barba, tomo o meu banho com ajuda (tenho medo de cair) e vou dar as minhas voltas.”
“E a saúde, senhor Tiago?”
“Tive uma úlcera no estômago e fui operado ao pescoço e à próstata. Passo bem.”
Gonçalo fotografa-o com o gato, no seu quarto, porque está demasiado frio para sair de casa, e eu aproveito para conversar com a filha sobre os seus hábitos. À mesa, se lhe agradar, come bem. Bebe dois copos de vinho por dia, às vezes um de aguardente. Tem um glaucoma e um sopro no coração.
“Mas a minha arritmia dá-me mais trabalho”, diz Odete, que cuida para que o pai não apanhe frio. “Quando tem qualquer coisinha, diz: ‘Desta não me salvas.’ Fica apavorado. Está sempre a dizer que, se tivesse de andar de casa em casa dos filhos, ao tempo que tinha morrido.”
‘Graças a Deus, não me dói nada’
A sua intuição poderá estar certa. Segundo o Censos 2011, mais de metade dos centenários (71%) vive com a família. “O que nem sempre é simpático”, nota Óscar Ribeiro, investigador no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, coordenador do PT100, um estudo sobre centenários da Área Metropolitana do Porto. “Aos 60 anos, já não é suposto sermos filhos, sobretudo quando sabemos que os centenários têm personalidades bem vincadas.”
O PT100 começou em 2008. Depois de muito trabalho de bastidores, com viagens de investigadores até Universidade de Heidelberg para passarem a utilizar as mesmas metodologias e, assim, ser possível fazer comparações, a equipa “varreu” o Grande Porto e sinalizou as pessoas com, pelo menos, cem anos até dezembro de 2013.
Encontraram 186 e entrevistaram 140 (houve recusas e mortes, entretanto). A análise dos dados vai demorar uns dois anos, mas Óscar Ribeiro já sabe muito sobre os centenários portugueses. Sabe, por exemplo, que os homens, que são uma clara minoria (10%), são os que se encontram globalmente melhor – serão os sobreviventes de uma geração. E é uma população que tem o paradoxo do bem-estar. “Apesar de evidenciarem características más aos nossos olhos, quando lhes perguntamos pela saúde, a avaliação é positiva. Fazem uma apreciação subjetiva: ‘Se ainda cá estou, estou globalmente bem’.”
Há uma minoria de casos excecionais de pessoas que não revelam défices cognitivos e físicos. Em geral, os que estão em casa apresentam um perfil de saúde mais positivo.
Alzira Gomes da Costa tem 101 anos e passa o dia a trabalhar. Aos 99, ainda apanhava mato “bom para fabricar terra” que dava aos vizinhos. Agora, gasta uma boa parte do dia sentada, mas as suas mãos nunca param. Adora fazer tricô e bainhas abertas – conta malhas e fios como se tivesse olhos de 20 anos.
Na manhã em que chegamos a sua casa, em Vermoim, um lugar em Oliveira de Azeméis, encontramo-la ao sol, no pátio, a terminar uns sapatinhos para bebé, na companhia da sua única filha, Eugénia, e de duas vizinhas. Há de mostrar-nos as moradias dos netos, mesmo ao lado, atravessando o jardim com a ajuda de uma bengala. Mas, por agora, deixa-se ficar sentada, a fazer malha, incapaz de estar quieta. “Não sei como há pessoas que passam o dia a olhar para o ar!”
Ela começou a trabalhar aos 12 anos, foi aprender costura para casa da madrinha. Antes fez a antiga 4.ª classe porque a mãe, que se divorciara aos 33 anos, não deixou que nenhum dos cinco filhos ficasse sem saber ler e escrever. Ficou-lhe o gosto pela leitura, por isso assina vários jornais locais.
Conheceu o marido numa desfolhada, a dançar “vira valseado”. Ele era carpinteiro e ela passou a trabalhar na terra. Chegaram a ter vacas a criar; recebiam à quinzena. E assim conseguiram que a filha fizesse o antigo 7.º ano. “Foi difícil”, diz, “e, agora, tenho tudo e não tenho vida”, desabafa, apontando a propriedade com a bengala.
Alzira diz ter pouca força na coluna, mas, de braço dado, é menina para caminhadas como a que fez em meados de dezembro, na Festa de Santa Luzia, em Cucujães, até à capelinha. De resto, sente-se bem. “Graças a Deus, não me dói nada.” Acredita que só Ele sabe porque chegou aos 101 anos, única centenária na família.
A importância de ter uma ocupação
Parece ser comum nesta geração de centenários portugueses. A par com a resiliência, a personalidade forte e a alimentação, a espiritualidade foi um dos fatores que os investigadores do PT100 encontraram nos centenários para ajudar a explicar por que atingiram idades tão avançadas.
Emília Correia gosta de rezar com o seu terço, e é com ele que quer aparecer na revista. Ainda se deixará fotografar agarrada ao andarilho que usa para andar pelo lar da Fundação Mário da Cunha Brito, em S. Pedro de Alva, perto de Penacova, mas é de mãos postas que sorri. Aos 107 anos, feitos em dezembro, já são poucas as coisas de que gosta.
Diverte-a ser o centro das atenções e adora ter por perto a neta Ana Paula, que é assistente social no lar onde ela pediu para morar, há 12 anos. Tinha 95 anos e saiu do Colmeal da Torre, Belmonte, sem olhar para trás, conta a neta. “É emocionalmente contida. Só assim conseguiu sobreviver às muitas perdas.” Ficou órfã de pai em miúda e viúva aos 37 anos, com três filhos e grávida do quarto. Já só tem uma filha viva.
Ana Paula está convencida de que a entrada da avó no lar a favoreceu. “Trouxe-lhe cuidados e rotinas que contribuíram para que atingisse esta idade.” Nunca esteve doente até que, há dois anos, apanhou uma pneumonia que curou sem ir ao hospital.
Será geracional?, questionou-se Óscar Ribeiro quando analisou as respostas à pergunta “O que acha que contribui para viver tanto?” e encontrou, à cabeça, Deus e a religião (“É Deus que assim quer”; “Eu rezo”), seguido por vida de trabalho dura, estar com os outros e ter um dia-a-dia calmo, estilo de vida (onde entra a alimentação e não entra o tabaco), não sabem porquê e destino/fado (“Nunca pensei atingir esta idade”).
João Ferreira da Costa, 101 anos feitos em setembro, não encontra outra explicação para ter chegado à capicua: “É uma graça de Deus”, diz, no apartamento onde mora, no Bairro Azul, em Lisboa, com uma empregada interna.
Nunca teve uma doença grave. Só se recorda de uma úlcera, que se curou por si. Agora, faz dieta por causa de uma colite e toma analgésicos para suportar os bicos de papagaio. Nada mais.
Olhando para trás, o economista vê um jovem que fez muito desporto e um pai de família que trabalhou que nem um mouro. Neto de uma santomense, irmã do rei de Angolares, é clarinho mas havia quem lhe chamasse “o preto”. E, toda a vida, “o preto” quis provar – e provou – que era tão bom como os outros. Sempre numa atitude de serviço. “Estive utilizado 76 anos, nunca fui empregado.”
Mesmo agora que usa aparelho nos ouvidos e se habituou a ver pouco desde que uma operação às cataratas correu mal, há 30 anos, João Ferreira da Costa acredita que podia continuar a ser útil. Nem que fosse a meio-tempo. “Podia dar conferências, por exemplo.”
Todas as noites, antes de adormecer, planeia “o programa de trabalho” para o dia seguinte; sempre evita pensamentos tristes que o levam invariavelmente até à sua mulher, que morreu há 19 anos. Uma ida ao banco ou às compras, um almoço de família, a missa semanal – tudo serve para lhe preencher os dias que não quer ver gastos só entre a organização dos papéis ou as visitas do fisioterapeuta, que o tem ensinado a andar sobre os calcanhares para ficar mais direito.
Não é seguido por João Gorjão Clara, coordenador do Núcleo de Estudos de Geriatria da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. Se fosse, tê-lo-ia ouvido repetir, como se ouve no seu consultório, que o primeiro truque para envelhecer com qualidade é andar, andar sempre. O segundo é manter uma boa cabeça. “A memória usa-a ou perde-a”, insiste o especialista.
Mas, a verdade, é que João Ferreira da Costa caminha tão direito que passa por marido da filha, conta, numa gargalhada. E fica satisfeito quando consegue cumprir o seu programa de trabalho. “Se tenho alguma coisa a dizer sobre chegar até aqui, o mais importante é a ocupação.”
Já calculou a sua esperança de vida?
Nessa tarde, na lindíssima quinta Casal Santa Maria, em Colares, havemos de nos lembrar uma e outra vez de João Ferreira da Costa, sobretudo por causa de um comentário que fez quase no final: “Se tivesse de recomeçar a minha vida, era capaz de ser pela embalagem – é um mundo.”
Aos 101 anos, este é um “se” mais do que incerto, pensamos. Mas quando o Barão Bodo Von Bruemmer nos recebe de lareira acesa, flores nas jarras, e ataca o tema da entrevista, começamos a acreditar que tudo é possível. Os seus 103 anos mereciam um livro, dizemos nós. O próprio dirá, sorrindo, apenas isto: “Não sei o que não fui.”
Nasceu numa das ex-províncias russas do Báltico, a Curlândia. Tinha 7 anos quando a família foi obrigada a refugiar-se na Alemanha, andando, depois, um pouco por todo o mundo até se fixar na Suíça. Foi banqueiro até aos 51 anos, até lhe aparecer um cancro no pâncreas e decidir mudar-se para Portugal; sobreviveu e criou cavalos árabes até aos 83 anos; e quando a mulher morreu e se sentiu sozinho, sem nada que fazer, começou a plantar rosas.
Até que, aos 96 anos, acordou da operação a um cancro nos intestinos com uma pergunta: “Doutor, quando posso sair daqui? Tenho de regressar a Portugal para fazer vinho [estava em Zurique]!”
Diz que nunca tinha pensado nisso e doeu-lhe cada rosa que viu arrancada para plantar sete hectares e meio de vinha. Dois anos depois, nascia o seu primeiro vinho, Casal Sta. Maria, que ganhou logo prémios. A quem garantia que aquela zona nunca daria boas colheitas, ele e o enólogo, Luís Cunha, respondem com seis medalhas de prata e uma de ouro, só nos últimos nove meses. Mas o melhor prémio, “o especial”, foi aquele que Bodo Von Bruemmer recebeu em junho passado: a medalha municipal de Sintra, por ter tido a coragem de começar algo de novo tão tarde.
Agora que entrou no seu 104.º ano de vida, o suíço mais português que alguma vez conhecemos diz que precisa de dez anos. Quer começar a fazer azeite. Delírio de centenário? Von Bruemmer fala muito a sério e deixa um conselho, a seguir até aos 45 anos: “Pense o que vai fazer da sua segunda vida. O ser humano precisa de um dever, se não perde a alegria de viver. Em 20 ou 30 anos, vamos ter 100 mil pessoas com mais de 100 anos em Portugal, porque nos alimentamos cada vez melhor. Corremos o perigo de estas pessoas viverem uma vida sem sentido.”
Cem mil nos próximos 20 ou 30 anos será uma estimativa exagerada. Segundo o Instituto Nacional do Envelhecimento dos EUA, o número de centenários nos países desenvolvidos deverá aumentar dez vezes até 2050. Por essa data, podermos ter, então, mais de 30 mil pessoas com 100 anos em Portugal. Fará o leitor parte desse lote? Ficará, pelo menos, perto dele? Gaste dez minutos a calcular a sua esperança de vida em livingto100.com/calculator, criado pelo geriatra americano Thomas Perls, que estuda esta população há 20 anos. ?E prepare-se para uma boa surpresa.
TRÊS tipos de centenários
A tipologia é internacional e costuma ser usada em inglês: escapers, delayers e survivers. O grupo maior é o dos que concentraram as doenças no final da vida
- OS FUGITIVOS – Escaparam, não tiveram as doenças mais comuns. Até aos 100 anos, fugiram a todos os vírus e bactérias
- OS QUE ATRASARAM – Atrasaram e condensaram as doenças nas últimas etapas da vida. Viveram de forma saudável até, pelo menos, aos 80 anos
- OS SOBREVIVENTES – Tendo tido alguns problemas de saúde, conseguiram sobreviver. ?Podem ter contraído doenças crónicas antes dos 80 anos
O exemplo do Manoel de Oliveira
O realizador português fez 106 em dezembro passado. Entre os 80 anos e os 100 anos, assinou vinte filmes. Mas foi depois dos cem anos que, entre longas-metragens, médias e curtas, surpreendeu Portugal e o resto do mundo ao viver de rodagem em rodagem, com Singularidades de uma Rapariga Loura (2009), O Estranho Caso de Angélica (2010), Painéis de São Vicente de Fora, Visão Poética (idem), Do Visível ao Invisível (2011), O Conquistador Conquistado (idem) A Igreja do Diabo (2012), ?O Gebo e a Sombra (idem) e O Velho do Restelo (2014). Quando morrer, será exibido, pela primeira vez, ?o documentário autobiográfico que rodou em 1982. ?Estará muito incompleto, tantas coisas fez, entretanto.