Na ilha de Tavira há uma senhora que, de mansinho, só tem o apelido. É a própria Maria da Conceição que o diz, engenheira agrónoma apanhada a regar buganvílias enquanto areja a casa mandada construir pelo avô, em 1939. E nós fingimos acreditar, mesmo quando nos convida para a sombra da sua sala onde uma grande placa de madeira com uma inscrição lembra que as águas por aqui também parecem mansas até ao dia em que o levante traz ondas capazes de fazerem encalhar iates. Aconteceu ao Black Rose, um velho navio pirata restaurado que há cinquenta anos ia a entrar na Barra do Cochicho e bateu numas pedras, causando a morte de dois homens.
A casa dos Mansinho é uma das dezoito desta parte da ilha de Tavira. A meio da extensa língua de areia com onze quilómetros há mais umas quantas edificações na praia do Barril, onde antes havia uma armação de pesca do atum, mas casas de habitação só existem mesmo estas dezoito. Se olharmos para um mapa da costa do Algarve, na zona de sapal entre Faro a Tavira contamos rapidamente cinco ilhas que servem de barreira entre o mar e a ria Formosa. Fazem parte de um parque natural desde 1987 e, de poente para nascente, são: Deserta ou Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas.
Mas basta dar umas voltas de barco para contar outros tantos ilhotes (Altura, Coco, Cobra, Ramalhetes e Ratas), além dos muitos bancos de areia que os marisqueiros procuram na maré baixa. E os nativos ajudam à confusão quando se põem a chamar ilha de Faro à Península do Ancão, ilha do Farol à ponta ocidental da Culatra ou ilha da Fuseta à ponta da Armona em frente da povoação.
Até a praia de Cacela, a sul de Cacela Velha, passa por ilha por se parecer tanto com a de Cabanas.
À luz de um petromax
Numa manhã de junho, escolhemos o cais das Quatro Águas para embarcar no Ribeiralima rumo à ilha de Tavira, um euro e meio pela ida e volta. O barco, largo e estável, tem quase um salão na sua barriga. Cá em cima, o vento traz o cheiro do lodo impregnado de pinheiro afinal, o pequeno pinhal à direita do cais de chegada está a cinco minutos de distância.
Maria da Conceição Mansinho tem 65 anos e ainda se lembra de não haver quase vegetação em terra. Só uma espécie de piorro.
Não pode lembrar-se mas sabe que a ilha chamava-se Medo das Cascas. Os sócios da Ferreira Neto (cujo arraial, uma estrutura de apoio às armações de pesca, nas Quatro Águas, é hoje um hotel), como era o caso do seu avô, tinham chalés de veraneio na ilha vizinha, até que, no final dos anos 30, houve grandes temporais, a água passou de um lado ao outro e as casas ficaram destruídas.
Foi só nessa altura que a ilha de Tavira passou a ser habitada. Já então havia água doce e toda a gente tinha um poço. Agora, a água vem da cidade, mais a luz e a limpeza do lixo. Noutros tempos, as pessoas deitavam os desperdícios ao rio, conforme a maré.
Os Mansinho moravam em Tavira, mas chegava o verão e passavam três meses enfiados na ilha. “A missa era no Arraial Ferreira Neto e só íamos a Tavira quando havia a Volta a Portugal em Bicicleta. Nessas alturas, parecia-nos a maior cidade do mundo.” As famílias mudavam-se com tudo, até havia quem levasse as galinhas. “Nós não, porque o nosso criado ia todos os dias de chata a Tavira fazer as compras”, recorda Maria da Conceição, entre duas passas de cigarro. Ambos advogados, os seus pais iam de barco almoçar à ilha. À noite, grandes e pequenos divertiam-se entre jogos de cartas à luz de um petromax e ao som do acordeão do músico, poeta e jornalista Sebastião Leiria.
Ao som de Stan Getz
Os anos passaram e muitas das casas são hoje arrendadas, sobretudo em julho e agosto, nos dois meses em que os descendentes das primeiras famílias não reconhecem a ilha como sua. No verão, além de um parque de campismo a transbordar de gente, os barcos das Quatro Águas e de Tavira trazem uma multidão que chega no primeiro da manhã, palmilha o caminho de cimento até pisar o passadiço da praia e parte no último da noite.
Nas esplanadas dos restaurantes que ladeiam o cimento, os empregados acotovelam-se, de ementa na mão. Os truques de Sérgio Borges de Macedo, dono do Sunshine Bar, o último restaurante antes das dunas, são outros: música smooth jazz, balcão a lembrar um pub e uma sangria com segredo. Quando o freguês se senta, há mais dois trunfos na manga do antigo fotógrafo lisboeta: os cozinhados da mulher e a simpatia da filha.
Sérgio e Annie McMahon conheceram-se na ilha faz agora 35 anos. Estavam ambos de férias, português e irlandesa, e, pouco tempo depois, arriscavam o trespasse de uma barraquinha sem luz nem água. Ao princípio, só trabalhavam ao fim de semana, davam música aos clientes com uma bateria de trator e dormiam em camas de campanha na cozinha, “à hippie”, diz ele.
Em 1985, a eletricidade chegou à ilha e em 1996 o Sunshine apareceu na revista americana Newsweek como um dos melhores bares do mundo. A escolha foi de um leitor canadiano que escreveu: “Areia (14 km dela), sol (3 mil horas por ano), Sérgio (dono de bar-filósofo), sangria (receita secreta) e ouvir o Stan Getz tocar The Girl from Ipanema. De que mais precisa um bar?”
Um outro Isaltino
A escolha foi confirmada ao telefone (“Quiseram saber se existíamos mesmo!”) e deu direito a um diploma e a mais freguesia, que a loira Alice, 27 anos, filha de Sérgio e Annie, recebe como antigamente. Do curso de hotelaria tirado em Londres, onde passa o inverno, trouxe algumas ideias de mudança, mas nada radical. “Temos um ditado em inglês que diz: ‘If it’s not broken don’t fix it’. Se não está estragado, não arranje. Por isso, não mexo muito.” Todas as noites, Alice fecha a porta às oito ou nove horas e vai dormir a Tavira, por vezes invejando quem fica na ilha a olhar as estrelas que por ali parecem mais brilhantes.
Nós regressamos a terra num barco que é quase abalroado por um windsurfista. O vento quando levanta é para todos.
Em Tavira, viramos em direção a Vila Real de Santo António mas paramos uns poucos de quilómetros depois, na marginal de Cabanas, de frente para a ilha com o mesmo nome. Noélia, a cozinheira e dona do restaurante Noélia e Jerónimo, ainda não chegou para preparar os jantares, mas dizem-nos que o seu polvo trapalhão com batata-doce de Aljezur continua tão bom como nos tempos em que a casa também era pastelaria.
Havemos de lhe pedir que nos leve ao terraço de um dos apartamentos do último andar do edifício Cabanas-Mar (alguns podem ser arrendados) para fotografar a ilha, mas primeiro queremos ver de perto as acrobacias de dois ou três kitesurfers no mar. Atravessamos a ria guiados por um barqueiro habituado a ouvir piadas ao nome e a responder: “Chamo-me Isaltino, mas posso andar de cabeça erguida.” E lá vai ele de pé, a manobrar o motor da pequena lancha que, num minuto, nos deposita no cais.
A ilha de Cabanas tem seis quilómetros de comprimento e apenas 70 metros de largura. Da ria até ao mar há um passadiço de madeira pouco frequentado num dia de semana em junho. Antes da dunas, o bar-restaurante Cabana da Ria também está a meio-gás são mais os nadadores-salvadores a fugir do vento do que clientes.
Neste final de tarde, o vento afasta qualquer hipótese de negócio.
Cestos de amêijoas
Na manhã seguinte, não corre uma aragem quando escolhemos fazer a travessia entre Olhão e a ilha da Culatra, e sair do barco junto à vila, na verdade uma aldeia de pescadores desenvolvida. No barco de carreira gasta-se meia-hora e ainda bem. Num táxi seria mais rápido mas não teríamos conhecido o sorridente João Lisboa, contabilista na reforma, que começa por apontar para uns pauzinhos espetados na areia junto às marismas, explicando que são viveiros de amêijoas ou de ostras. Na maré baixa distinguem-se bem os de ostras porque elas crescem dentro de estruturas metálicas envoltas em plástico.
Dali a pouco, junto ao cais, havemos de encontrar Eugénia Protásio com um cesto e uma faquinha boa para remexer a areia molhada e apanhar amêijoa da pequenina que irá alimentar os viveiros. Anada ao marisco há mais de quarenta anos. É a sina de quem mora na Culatra isso ou pescar. “O porto de abrigo está jeitoso”, endireita-se e semicerra os olhos na direção de umas casinhas de madeira escura. Volta a curvar-se e cava muito para achar pouco.
“‘Tão difíceis de apanhar”, resmunga. Há muita amêijoa na ria junto à ilha, mas quem procura areias desertas é melhor prevenir-se na vila com alguma coisa para comer e beber. Vale a pena porque, se não tiver o azar de já lá estar algum barco, ao fim de duas horas de caminhada fica sozinho na chamada Barra Grande, uma zona de piscinas naturais.
No lado do mar que por aqui chamam simplesmente de “costa” e onde se chega depois de um quilómetro de passadeira também é fácil ter a ilusão de estar numa ilha deserta, embora se encontre gente na praia dos Hangares (mais ou menos a meio da ilha, onde em tempos existiu uma base de apoio a hidroaviões). Se insistir na caminhada para poente, aparecem as casas da ponta do Farol, uma zona mais virada para o turismo do que a vila da Culatra.
Jesuítas como nem em Santo Tirso
João Lisboa é do tempo em que os geradores ronronavam à noite e, de vez em quando, havia cinema num barracão. Agora, começa junho e com ele os bailes ao sábado, no polidesportivo, para animar os habitantes (que não chegam aos mil) e os visitantes. Por falar em visitantes, escreva-se que encontrámos vários veleiros estrangeiros ancorados junto da vila, do lado da ria. Para arrendar casa ou quarto, “é como na Nazaré”, dizem-nos. “É o boca a boca.”
A luz só chegou no final dos anos 80, depois de os habitantes terem boicotado umas eleições, e com ela a festa civil da vila, a 19 de julho, data do boicote. A outra, a religiosa, é no primeiro domingo de agosto, coisa bonita de se ver, com a imagem da Senhora dos Navegantes a ser levada de barco. Por aqui há escolas, biblioteca e igreja, só o padre vem de Olhão. Ah, e também tem de vir a roupa e os sapatos. “A ilha sofre do peso da distância”, diz João Lisboa, “mas alimentos, detergentes e outras coisas para a casa, vai-se à Rita, à Marília ou ao Paulo e há tudo.” Até há jesuítas como nem em Santo Tirso se comem, descobrimos na rua principal, a caminho da costa. O cheiro a bolos acabados de sair do forno leva-nos a parar junto a uma casa de teto baixo, onde Neusa (nora da ameijoeira de há uns parágrafos, dirá dali a pouco) estica mais um pedaço de massa folhada feita ali mesmo.
Neusa tem 49 anos e há quinze fez um curso com um cozinheiro, no infantário da vila. Pertence à terceira geração da família a nascer na Culatra, mas está a tentar fugir ao destino das mulheres “amêijoeiras” da ilha.
Já esteve de cozinheira, no restaurante Janoca, à beira do cais, mas em podendo prefere passar os dias entre jesuítas estaladiços, folhadinhos com ovos-moles, tartes, tortas e pavês. “No verão também faço croissants e babás”, conta, antes de ser interrompida por um lavagante que passa num carrinho de mão.
‘Aquilo é deserto mesmo’
O bicho já tem dona, José Augusto Quintino ia só mudar-lhe a água. Rifaram-no a um euro o papelinho e saiu à vizinha Georgina. Neusa ri-se da pose do pescador, de lavagante agora bem erguido, e recomeça a falar da sua nova vida entre os bolos. “Na brincadeira, digo que tenho de me inscrever no MasterChef.”
Pusesse ela um pé na televisão e era certo que não resistiria a tecer loas à sua ilha, mais ainda à vila onde nasceu. No ano passado, a costa passou a ter espreguiçadeiras, sombrinhas, massagista e tudo. “Agora já quase vem mais gente para aqui do que para o Farol”, arrisca.
Os da vila olham a zona do cabo de Santa Maria como concorrência, e aproveitam para jurar que a partir daí até a água arrefece um pouco. Mas Neusa até gosta de ir de barco para lá do farol, para a ilha Deserta (ou Barreta), onde ao domingo faz grandes almoçaradas com amigos junto ao velho posto dos guardas. “Levamos uma geradora e tendas, porque aquilo é deserto mesmo.”
Ou quase. A Deserta só tem um restaurante, o Estaminé, hoje coisa imponente mas sempre de madeira, a que se chega por um passadiço que vai do pontão, na ria, à costa.
A ilha mais a sul de Portugal continental é a única ilha–barreira não habitada, aquela onde os técnicos do parque natural prometem uma observação fácil de garajaus, andorinhas do mar, gaivinas ou chiretas. O barco apanha-se em Faro.
No extremo oposto, que não no mapa, está a Armona, com carreiras de barco regulares de Olhão ou da Fuseta.
São tantas as casas que a Polis Litoral da Ria Formosa tem previstas bastantes demolições (vai acontecer um pouco por toda a ria). Vista do ar ou da água, o impacto não é tão grande, mas basta começar a percorrer a “rua” principal, um caminho de cimento com cerca de dois quilómetros entre o cais e o início das dunas, para sentir alguma claustrofobia. Pelo menos até a meio, as casas sucedem-se em filas intrincadas, camadas e camadas de betão apenas aliviadas, aqui e ali, por pequenos quintais. Até o parque de campismo tem bungalows.
Onde o sol doira sem literatura
Todos os verões, a ilha enche-se de gente que acha graça a passar férias numa ilha onde só há um minimercado mesmo mini, dois ou três restaurantes e cafés, e uma internet fugidia. Mas o que para uns cheira a parvónia, para outros é sinónimo de férias. A praia, com mais de seis quilómetros de extensão, e as muitas conquilhas, à espera de serem apanhadas na baixa-mar, tudo compensam. O facto de não haver carros nem multibanco também ajuda à sensação de isolamento.
A palavra “isolamento” vem do latim “insula“, ou seja “ilha”, através do vocábulo italiano “isola“, podia ter-nos ensinado Marta Amaral, tradutora de Lisboa, que há dois anos passou uma semana de julho na Armona com o marido, os três filhos e uns amigos. Na altura gravidíssima (a quarta filha nasceria quinze dias depois de regressarem a terra), Marta não guarda qualquer trauma das longas caminhadas que tinha de fazer até à praia ou da quantidade de casas na ilha. Até achou graça à sensação que teve de estar na América Latina.
“Ficámos a meio da passadeira, e tínhamos acesso atrás para a ria, onde íamos passear. É verdade que a densidade de construção é muito elevada, mas há mansões da burguesia olhanense engraçadas e cada jardim é diferente do seguinte. Víamos sempre novos pormenores.” Só os dias se sucederam quase iguais, “o que foi ótimo”.
De manhã, os miúdos andavam à solta, enquanto os pais iam ao cais comprar peixe para o jantar a uns pescadores da zona. Os rapazes depressa improvisaram um campo de bola numa antiga lagoa e as raparigas vendiam pulseiras junto à passadeira. Depois, seguiam todos para a praia, de onde saíam já de noite. Marta sabe que um dia vai voltar a passar férias na Armona. Chamem-lhe espírito de Robinson Crusoé, se quiserem.
O pessegueiro de Joaquim
Duzentos quilómetros para norte, no portinho de Porto Covo, há um homem que sabe bem o que é isso de uma pessoa se apaixonar por um pedaço de terra rodeado de água. A ele aconteceu-lhe há quinze anos, quando começou a levar turistas à ilha do Pessegueiro. Pescador durante quatro décadas, Joaquim Matias foi aprender história para poder explicar a origem das ruínas espalhadas por aqueles 340 metros de comprimento e 235 metros de largura, a apenas 250 metros da costa (mas a seis quilómetros da aldeia). “Esta ilha é a menina dos meus olhos”, diz, desejoso de recomeçar as visitas (quatro por dia, com 5 a 12 pessoas de cada vez) que, se tudo correr bem, fará até setembro.
Concessionário da ilha do Pessegueiro (paga anualmente dois mil euros ao Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina), cabe-lhe fazer a montagem do cais e a limpeza do terreno. A subida das águas em toda a costa, a 6 de janeiro, destruiu um pouco das estruturas romanas e da pedreira do século XVI coisa que não acontecia desde 1979. Agora, está em negociações com a direção do parque por causa da manutenção desta ilha que atrai muitos portugueses fãs de Rui Veloso, diz que em maior número do que espanhóis, franceses e holandeses.
Joaquim Matias ensina que, de manhã, é quando faz menos calor e a água em redor parece mais cristalina. De tarde, há sempre um bocadinho de vento. Não se pode pescar nem fundear, porque é uma reserva parcial. Nem mesmo nadar junto à ilha, embora o apelo seja irresistível para alguns, apesar das águas frias. O antigo pescador já socorreu vários nadadores enregelados porque isto de ser anfíbio tem que se lhe diga.
Em fase aquática
Na ilha da Berlenga, ainda mais para norte, a quinze quilómetros de Peniche, há quem se orgulhe de se tornar anfíbio nas férias. Não será o caso de Mariete Pereira, que, ao fim de quase três décadas a morar dez meses por ano no meio do mar, já desistiu de aprender a nadar. Embora a água não lhe meta medo, nem no inverno quando só o barco da rendição dos faroleiros se atreve a aparecer, de sete em sete dias. O inverno é a sua estação do ano. “A ilha fica mais bonita, a cor da rocha é outra, o cheiro também é outro. E há silêncio, apesar das gaivotas.” No pequeno bairro de pescadores, por estes dias povoado, Mariete tem uma vista linda. Logo à sua porta vê o Carreiro da Inês, o mar muito azul entre rochas altas. Mas quando pensa em coisas bonitas da ilha pensa imediatamente na Cova do Sonho, uma baía coberta por uma abóbada gigantesca.
Aprende-se muito a ouvir Mariete e o seu marido, Veríssimo, falarem da Berlenga e das restantes ilhas do arquipélago (Estelas e Farilhões). Os mais antigos lembram-se de ver o pai dele, o sr. João, a tomar conta da água doce, que por ali é ouro. Agora que Veríssimo se reformou, cabe a Nuno, um dos cinco filhos do casal, o lugar de fiscal de higiene e segurança da Câmara de Peniche. De manhã, abre a água entre as 9 e as 11 horas e os turistas aproveitam para aquecer ao sol uns garrafões que vão usar para o banho do fim do dia. Mesmo nos balneários do parque de campismo, limpos por Mariete, a água é salgada.
Luís Gouveia Monteiro, 38 anos, guionista, esse sim, sente-se anfíbio ao chegar à Berlenga, no verão. O ritual repete-se desde os seus seis meses, é coisa de família que já vem do tempo dos avós. Essa primeira geração de anfíbios instalava-se na Fortaleza, um luxo na altura. As seguintes fazem de um ou dois quartos do Mar e Sol (restaurante e alojamento) o “centro operacional” e montam várias tendas no parque de campismo. Como há mais famílias a passar ali férias todos os anos, tentam coincidir na mesma semana de agosto e sempre com um barco no grupo.
“Ir sem barco não tem piada”, avisa Luís. “A Berlenga é um calhau íngreme no meio do alto-mar, é o contrário de um Club Med. Precisamos dos pescadores, da Mariete, do Veríssimo e da gente do restaurante para sabermos se o dia é bom para ir passear aos Farilhões ou pescar sargo à Corredoura.” Todos os anos, Luís aprende novas maneiras de pescar, até porque, por tradição, janta-se o que se apanhou durante o dia. “Como estamos num calhau, são noites gloriosas a contar estrelas-cadentes. Acumulamos desejos para o resto do ano.” E depois há as guitarradas, as idas ao banho, com sorte no meio de plâncton luminescente. “Parecem pirilampos aquáticos, pós de perlimpimpim.”
Tudo isso já maravilhava Luís Gouveia Monteiro em miúdo, mas no topo estava a bebedeira de liberdade que ainda hoje apanham os mais novos do grupo. “A minha mãe dizia que eu aparecia duas vezes por dia: uma era certa, para pedir papel higiénico, a outra era só se tinha fome. Os dias na Berlenga são cheios de coisas boas, nem que seja ficar no quarto a ler, ali no meio do mar.”
Capitão Mário
Para conhecer mais um homem que agradece uma coisa simples como estar no meio do mar vamos ter de ir até à praia de Caminha, junto ao restaurante Ínsua, com vista para Espanha. É ali que se encontra facilmente Mário Gonçalves de Vasconcelos, sempre de T-shirt com uma âncora e as palavras “capitão Mário” desenhadas. É ali que ele estaciona a sua rulote com uma imagem do Forte da Ínsua a promover as suas atividades marítimo-turísticas.
Para o que nos interessa, o barqueiro leva três a cinco pessoas de cada vez no seu Mário Miguel até à minúscula ilha da Ínsua, a 200 metros da costa, ao sul da foz do rio Minho e à vista da praia de Moledo. “A passadeira rolante está avariada”, brinca, sempre que avisa que convém os visitantes irem preparados de chinelos e roupa arregaçável até ao joelho.
São dez minutos para chegar à ilha da Ínsua, um pequeno ilhéu onde não há pontão nem limpeza regular.
Ocupando quase o espaço todo está o que sobra de um convento franciscano e de uma fortaleza. O conjunto foi classificado como Monumento Nacional em 1910 e hoje pertence ao Instituto Politécnico de Viana do Castelo, que só tem tido dinheiro para obras de consolidação da muralha.
O projeto de ali instalar um centro de investigação mantém-se em águas de bacalhau há mais de vinte anos.
Embora muitos aproveitem para fazer lá praia, porque na maré vaza a área envolvente é equivalente à área muralhada, Mário torce o nariz. “Aquilo está um caos”, admite.
“As pessoas não são grandes amigas do ambiente.” Em lá chegando, o barco é parado onde esteja mais bonançoso e combina-se a hora do regresso. Mas é sempre possível mudar de planos porque há rede de telemóvel por ali. E, num ai, se acaba com a sensação de estarmos sozinhos numa ilha deserta.