Vanessa Neves, 27 anos, e João Janeiro, 29 anos, trocaram Setúbal por Beja, em 2011, em busca de uma vida melhor. Estavam desempregados e o primeiro filho, Dinis, tinha nascido havia dias. Mas João encontrou trabalho na sua cidade natal e, por isso, mudou-se para casa dos pais, com a companheira, o bebé e um outro filho mais velho, fruto de uma anterior relação. Não tinham dinheiro para arrendar casa própria.
Desenrascaram-se. O jovem casal e o bebé ocuparam um quarto, num pequeno T2. Os avós, Jacinto Manuel, 55 anos, e Maria Antónia, 57 anos, dormiam no outro. E a criança mais velha, com 9 anos, passava a noite na sala. Já sabiam que também ali vivia um cão, Zico, arraçado de pit bull, que pertencia a Pedro Janeiro, 37 anos, irmão mais velho de João. O canídeo abrigava-se na varanda, descoberta, que dá acesso à cozinha. Ficava preso a uma torneira da máquina de lavar, com uma corda a servir de trela. Quando fazia muito frio, deixavam-no ficar na cozinha.
Era aí que o cão se encontrava, naquele fatídico 6 de janeiro de 2013, em que mordeu Dinis, na cabeça. A criança, de ano e meio, morreu no dia seguinte, vítima de graves lesões no crânio.
MÁQUINA DE GUERRA
Até Dinis começar a gatinhar, o pit bull andava à solta, no apartamento. Só depois passaram a prendê-lo na varanda, com frequência, até porque largava muito pelo e nem sempre se portava bem, fazendo estragos vários. Vanessa nunca concordou com a presença do cão dentro de casa. João sentia-se incomodado, mas não queria discutir com o irmão, embora este já não morasse com os pais. A avó do menino, Maria Antónia chegou a sugerir que se deixasse o animal na quinta de uma amiga ou num canil. Mas o filho mais velho, Pedro Janeiro, nunca o permitiu, apesar da pouca atenção que dava a Zico, nas raras vezes em que visitava os pais.
Pedro é o macho alfa dos Janeiro. Gosta de cães grandes, de preferência se forem de raças perigosas. Faz musculação na zona abdominal tem tatuada, em inglês, a expressão Hard Life (Vida Dura). Não cuidava do animal há alguns anos, mas argumentava que o bicho nunca tinha feito mal a ninguém.
Não era verdade. A 10 de setembro de 2006, Jacinto Manuel teve um ataque epilético, caiu em cima do Zico e este mordeu-lhe no braço direito. As marcas ainda hoje são visíveis. Numa outra ocasião, soltou-se e atacou o cão de um vizinho, nas escadas do prédio. Nenhuma das situações foi alguma vez comunicada às autoridades, como obriga a lei.
O animal foi treinado para se sentar, deitar, rebolar. O dono atirava-lhe paus, para que os fosse buscar e devolvesse. Levantava-o no ar, segurando os brinquedos que o bicho prendia na boca. Na sua página de Facebook, já alterada, ostentava a imagem estilizada de um corpo humano, musculado, com cara de pit bull. Partilhava ilustrações de pit’s a escorrer sangue da boca ou com coleiras de picos, à volta do pescoço. No inquérito à morte de Dinis, a cunhada disse que ele descrevia o cão como uma máquina de guerra. Pedro Janeiro nega ter usado essa expressão, bem como ter participado em lutas de cães ou usado o pit bull como arma de defesa.
Zico foi comprado a um criador ilegal de cães que morava no bairro do Texas, em Beja, e queria desfazer-se dele, por ter sarna. Pedro teve pena do cachorro, que então tinha três meses, e comprou-o, já com as orelhas cortadas, por 50 euros. Foi ficando. Cresceu.
Tornou-se um capricho, a que toda a família se submeteu. Era a mãe, Maria Antónia, quem cuidava dele: comprava a comida, alimentava-o, limpava os dejetos, dava-lhe banho. O pai, Jacinto Manuel, quando tinha disposição, levava-o à rua, sem açaime. Podiam passar-se dias sem que o bicho saísse.
ACUSAÇÃO OU ARQUIVAMENTO?
Dinis não estava em nenhum infantário, era a família que cuidava dele. Brincava muito com o cão: fazia-lhe festas, abraçava-o quando este estava estendido no chão e Zico lambia-lhe a cara.
Às vezes, o canídeo roubava os brinquedos ou as bolachas ao petiz. Outras, era a criança que lhe oferecia os seus “tesouros”. No dia da tragédia, Vanessa, João e Maria Antónia estavam em casa. Dinis corria entre o quarto dos pais e o da avó. A certa altura, deixaram de o ver. Ouviram um barulho. Maria Antónia correu para a cozinha, acendeu a luz, e viu o pit bull com a cabeça do miúdo na boca. Gritou, pedindo ajuda. João estrangulou o pescoço do cão, com o braço, e Vanessa meteu-lhe as mãos na boca, até conseguir que largasse o filho. Ficou com escoriações e feridas nos dedos. Dinis estava coberto de sangue, com a cabeça rasgada. Pediram um carro emprestado a um vizinho e correram para o Hospital de Beja, a 600 metros de casa. Ainda nessa noite, o menino foi transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Mas não resistiu.
À falta de uma explicação lógica para o sucedido, dada a relação de proximidade entre o animal e Dinis, a procuradora do Ministério Público, Fátima Valente, quis ouvir um especialista em comportamento canino.
Bruno Lopes, comandante da companhia cinotécnica da GNR, avançou com a hipótese de o bicho ter atacado por instinto de presa ou de caça. É o nome dado à reação instintiva de um cão quando vê algo em movimento.
Ataca, morde e não larga o objeto, fazendo tração. Este comportamento é potenciado quando o animal é treinado para morder brinquedos ou ir buscar paus.
O inquérito deveria durar oito meses mas ainda não foi arquivado porque a procuradora tem dúvidas em relação ao relatório da autópsia. Bruno Santos, o médico responsável pela análise do cadáver, escreveu que as lesões causadoras da morte “denotam terem sido produzidas por ação de natureza perfurocontundente, ou atuando como tal, como o que pode ter sido a mordedura de um cão”. A hipótese, inconclusiva sobre se foram ou não as mordeduras do cão a provocar a morte de Dinis, fez com que a magistrada enviasse ao perito, em outubro, algumas perguntas escritas.
O médico ainda não respondeu, apesar da insistência do tribunal.
Quando tal acontecer, o Ministério Público arquiva o processo ou deduz acusação de homicídio por negligência, crime com moldura penal até cinco anos de prisão. Essa decisão poderá ser crucial na conclusão da ação que também decorre no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, e que determinará qual o destino de Zico. Apesar de, através de uma providência cautelar, o cão ter sido entregue à guarda da associação Animal, que o rebatizou como Mandela, a ordem para abatê-lo mantém-se apenas suspensa, até à decisão final do tribunal.
A morte do pit bull é o desfecho previsível desta história, com contornos dramáticos a exceção seria não ser abatido. A mãe, o pai e a avó de Dinis, os adultos que, no momento da tragédia, estavam em casa, foram constituídos arguidos, em setembro passado. O tio, proprietário do animal, foi ouvido no processo apenas como testemunha.
Numa história fatal entre um cão e uma criança, um destes adultos terá de assumir responsabilidades. Ou não?
SAIBA MAIS:
REPORTAGEM: O País conheceu-o como Zico e a campanha em defesa da sua vida atingiu uma dimensão sem paralelo. Saiba como a Associação Animal conseguiu impedir o abate do pit bull, ficar com a guarda do cão, recupera-lo e dar-lhe uma nova vida
CRONOLOGIA: Durante oito meses, a decisão de abater ou não o cão Zico esteve dependente da sentença do Tribunal. Revelamos os momentos mais importantes desta disputa judicial e explicamos a confusa linguagem jurídica
CONTEXTO: O bairro Beja I, onde tudo aconteceu, é conhecido como “Bairro do Texas”. Habitação social, uma população a braços com o desemprego, problemas de tráfico de droga e, sobretudo, má fama, são os cartões-de-visita deste subúrbio da cidade alentejana
ANÁLISE: Pedro Galvão é o autor do livro Os Animais Têm Direitos? Perspectivas e Argumentos, e professor de filosofia. Comenta a polémica em torno do abate do cão Zico e dos valores inerentes a essa discussão