Há razões para ter medo de entrar num hospital e ficar pior com a cura? Objetivamente, há. Um em cada dez portugueses corre o risco de contrair uma infeção hospitalar (IH) – num hospital ou noutras unidades que prestam serviços de saúde – e desenvolver complicações, por vezes fatais. Um inquérito realizado em 2012 e divulgado este verão, pelo Centro Europeu para o Controlo de Doenças, coloca Portugal num plano crítico: entre os quase 20 mil pacientes estudados à data da avaliação, 10,6% deles teve IH (quase o dobro da média nos 947 hospitais dos 30 países envolvidos).
A maioria dos casos sinalizados (76,8%) adquiriu a IH no decurso do internamento, com destaque para as unidades de cuidados intensivos e cirúrgicos. A agravar o cenário, quase metade dos doentes estudados (45,4%) estava a tomar antibióticos (a média europeia é de 35,8 por cento). O abuso leva à perda de eficácia das armas farmacológicas de combate às bactérias, que se replicam a um ritmo superior ao do organismo humano e produzem mutações, tornando-se mais resistentes. Sobressai, aqui, o staphylococcus aureus, bactéria também conhecida pela sigla MRSA. Uma estirpe imune a todas as opções terapêuticas (pan-resistente) foi pela primeira vez sinalizada em março último, na Europa, pelo laboratório de um hospital lisboeta. Apesar de se tratar, apenas, de um caso, devidamente isolado e que não se propagou a outros doentes, o nosso país tem a taxa europeia mais elevada de MRSA, e é um dos poucos que ainda não conseguiram baixá-la. Segundo o documento Saúde em Números, da Direção-Geral de Saúde (DGS), referente a 2010-2011, aquela bactéria foi responsável por 64,5% dos episódios de infeção da corrente sanguínea, nos 41 hospitais estudados. O que fazer, então, com esta bomba-relógio?
Apertar o cerco
“O inquérito europeu confirma problemas que já conhecíamos, com taxas de infeção endémicas tais que já nem se notam os surtos”, reconhece José Artur Paiva, diretor do Programa de Prevenção e Controlo de Infeção e Resistências aos Antimicrobianos (PPCIRA), da DGS, que destaca o caráter prioritário das medidas a concretizar e explica que a força de reação rápida vai atuar em várias frentes.
Uma delas consiste em agilizar o sistema de vigilância epidemiológica de bactérias resistentes, que existe há mais de uma década. Nos próximos dois anos, a meta é reduzir, em 10%, a taxa de prevalência de IH. “Desde fevereiro, a rede de laboratórios do SNS tem de reportar, num espaço de 48 horas, os microrganismos alerta, com resistências emergentes, raras e que requerem medidas imediatas.” A notificação trimestral fica reservada para os agentes problema, que causam doença e têm taxas de resistência epidemiologicamente significativas.
Artur Paiva defende a mudança de paradigma no uso de antibióticos. O uso excessivo vai ter de baixar 5% e o tempo de utilização também: “A ciência mostra que as infeções respiratórias e urinárias, por exemplo, podem tratar-se hoje com menos tomas; mais do que cinco dias aumenta o risco de resistência.” Já na profilaxia cirúrgica, só devem ser usados durante 24 horas, “para não agravarem o risco de infeção pós-operatória”.
Na coordenação científica do PPCIRA, e com mais de 30 anos no trabalho de controlo de infeção, Elaine Pina mostra-se preocupada com a MRSA, mas também refere “problemas relacionados com as bactérias Gram negativo, sobretudo as entéricas – E. coli e Klebsiella, com resistência aos carbapenemes -, e as Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter spp”, imunes, por vezes, a uma ou mais categorias de antibióticos. Mas o cerne da questão reside na “disseminação devida a falhas no cumprimento de precauções básicas”, o que se pode evitar, em boa parte dos casos, com “uma intervenção mais ativa e sistematizada”.
As medidas básicas, publicadas, no final do ano passado, pela DGS, aplicam-se a todos os serviços que prestem cuidados de saúde. As comissões de prevenção e controlo de IH vão ter de seguir os protocolos à risca (higienização das mãos, uso correto de luvas, limpeza de superfícies e de materiais), e os resultados das auditorias refletir-se-ão no financiamento, responsabilizando os conselhos de administração.
Ação direta
As estimativas apontam para 25 mil mortes por ano, nos países europeus, causadas por resistência aos antibióticos. O prolongamento do internamento e dos custos associados são uma fatura pesada, no contexto hospitalar e fora dele (centros de saúde, clínicas, lares, cuidados continuados, comunidade). “Pressionar os médicos a prescrever antibióticos só para se reconfortar é um erro, porque não resolve a maioria das infeções, que tem origem viral”, insiste António Vaz Carneiro, que dirige o Centro de Estudos da Medicina Baseada na Evidência, em Lisboa.
As orientações do novo programa prioritário de saúde também contemplam os utentes. Compete-lhes vacinarem-se, não tomar antimicrobianos sem prescrição, fazê-lo pelo tempo indicado, informar o médico sobre a última vez em que os usaram e devolverem sobras nas farmácia, para não contaminar o ambiente. No ano passado, por exemplo, foram detetadas, na bacia hidrográfica do Vouga, bactérias imunes a antibióticos, com risco para a saúde pública.
Na prática, o alerta é para todos: sistemas de vigilância, profissionais de saúde e comunidade. Aqui, inclui-se a voz da Deco e de organizações de profissionais (médicos, farmacêuticos, enfermeiros, veterinários). “Metade das prescrições de antibióticos ocorrem para uso veterinário e na agropecuária”, indica Artur Paiva. Só com uma aliança intersetorial (para a preservação do antibiótico e lançada em 2011) se poderá fazer alguma coisa em tempo útil e quebrar o ciclo vicioso, em que as bactérias começam a levar vantagem.
Francisco George lança alerta
“Absolutamente dramático.” Foi desta forma que o diretor-geral de Saúde classificou esta semana o problema da resistência às infeções, que tem vindo a aumentar, pelo consumo excessivo de antibióticos. Em declarações à LUSA, o dirigente mostrou-se preocupado com a perda de eficácia dos medicamentos antimicrobianos e convocou os utentes a fazerem a sua parte e a declararem guerra a práticas perigosas. Não consultar o médico quando se tem uma infeção e automedicar-se, desconhecendo se ela é de natureza viral ou bacteriana, são duas delas.