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TAKE 1
Os turistas pagam para ver. Já não se satisfazem a imortalizar os barcos rabelos, a ponte, o Douro e o casario da Ribeira do Porto nas suas memórias digitais. Agora, querem experiências. E eternizar o momento em que catraios empoleirados no tabuleiro metálico da Ponte Luís I se atiram ao rio, dez a quinze metros de voo picado, consoante a ondulação. Os turistas também lançam moedas à água, como isco de rapazes e raparigas de sangue na guelra. Às vezes, atiram-se eles próprios, alemães e outros, armados em heróis de água doce. “Julgam que é fácil. Há uns tempos, dois iam sendo levados pela corrente”, conta Anabela Belinha Moreira, 15 anos, físico moldado pela prática de boxe amador, robustez estranha em corpo de adolescente. Ela, sim, trata o rio por tu, está na Ribeira como em casa. Ali, a miudagem é incentivada desde cedo a conhecer o rio, nas suas manhas e traições. Assim na água como na vida. “Atirei-me a primeira vez da ponte aos 7 anos. É uma adrenalina muito fixe.” Belinha também já viu pessoas desesperadas saltar do tabuleiro superior, bem lá de cima. Gente sem réstia de heroísmo ou esperança, empurrada pelos avessos do quotidiano, enquanto o metro de superfície faz a travessia entre Porto e Gaia. “Já se atiraram homens e mulheres. Chegam a meio e ficam sem ar.”
As raparigas e os rapazes da Ribeira são os primeiros a ver o impacto dos corpos nas águas, com estrondo. Não se esquece. “Fiquei muito magoada e baralhada quando uma amiga se atirou”, confessa Belinha, filha de Anabela Palavrinhas, 42 anos, mulher que é “pai e mãe” de todas as horas e já viveu a fama de raspão: foi num Guimarães-FC Porto, de abril de 1995, marcado pelos confrontos entre claques e pelas imagens da “ultra” dos Super-Dragões, simulando gestos obscenos nas partes baixas, dirigidos aos adeptos do Vitória. “Eu era do piorio. Mas não quero a minha vida para a minha filha.”
“Saltei do tabuleiro da ponte com 14 anos, não queria morrer sem o fazer. Foi o meu momento mais corajoso. As miúdas gostam dos miúdos assim radicais. A minha mãe já tinha saltado e aleijou-se nas costas. Com o meu pai não tenho muita ligação. Já vi pessoas a saltar do tabuleiro de cima. É arrepiante. Vão todos parar à lingueta dos afogados. Devem ter problemas de família e de dinheiro. A crise é um problema, mas depois também temos problemas entre nós. Para ganhar dinheiro, as pessoas daqui da Ribeira estragaram isto tudo.”
Nelson Cruz, 15 anos
TAKE 2
Quando há uns meses se instalou no Porto, o realizador espanhol Javier Macipe Costa, de 26 anos, já premiado internacionalmente, não disfarçou o espanto provocado pela coragem e destreza das crianças e adolescentes que se lançavam ao rio, misto de competição e atração turística. Juntara, entretanto, outras impressões: a arquitetura da zona histórica da cidade, as vidas que ali desafiam o trapézio, os carros de alta cilindrada conduzidos por jovens de camisola caviada, musculados e tatuados, que se juntam nas bordas do rio ou debaixo da ponte, em ambiente galhofeiro. Os Meninos do Rio foi nome que logo assaltou Javier. Um título que lhe permitirá englobar a falta de comunicação geracional e a problemática social dos jovens que sofrem na própria pele a incerteza económica e familiar. “Quero explorar a contradição entre os que têm coragem e aqueles que não arriscam”, confessa o realizador espanhol, que foi mudando os castings de lugar: primeiro, na Junta de Freguesia de São Nicolau, depois no bar Ribeirense e, finalmente, na marginal ribeirinha. Os miúdos nunca aparecem a horas, ao tempo chamam-lhes seu.
“Tinha 11 anos e fui para o tabuleiro com o meu primo. Cheguei lá e antes de me atirar até rezei para não bater mal. Depois é mágico, até as bochechas tremem. Já vi muita gente suicidar-se, atirando-se da ponte. Fazem isso por causa dos desgostos de vida, o desespero, a cabeça quente. Depois vão ter com Deus e ficam mais descansadas. O meu pai trabalha num stand de automóveis e a minha mãe num hotel. Na escola, gosto de desporto e língua portuguesa. Adoro o Harry Potter e Os Cinco. Sonho ser futebolista e viver em Miami. Tenho muita fé em Deus e gosto de ir a Fátima.”
Ruben Silva, 12 anos
Do apartamento da Rua das Flores, onde vive, Javier habituou-se também a abrir a janela e a ver a “intimidade exposta” das vidas por dentro das casas. De Saragoça, de onde é originário, trouxera as vivências da crise e só nisso lhe pareceu que não tinha mudado de país: “A crise é a mesma, mas com outro idioma.” O filme que Javier pretende rodar, um híbrido entre o documentário e a curta-metragem, acolherá uma história moldada ao sabor dos mais de cem castings já efetuados: “Desejo deixar-me levar pelos miúdos. Nesse sentido, quero uma rodagem bastante aberta, um processo em construção que se adaptará às histórias deles.”
“Saltei da ponte aos 12 anos, é alucinante. Mas quem se atira do tabuleiro de cima já chega ao rio todo rebentado. Já vi muita morte no Douro. Estou no 6.º ano, vivo com a minha mãe e o meu sonho é ser modelo. Já trabalhei numa agência, mas depois deixei de aparecer. A experiência é boa e pode ser o futuro de alguns. Ainda não desisti. O que eu queria mesmo era ir ao Brasil, mas não gosto de brasileiros.”
Gisela Amorim, 13 anos
Nas entrevistas, Javier e Mário Gomes, da equipa de produção, tentam descodificar a matéria dos sonhos e dos medos de miúdos entre os 9 e os 15 anos. Querem saber o que pensam dos turistas, da vida, da família, se já saltaram da ponte e o que fariam para saltar. “São crianças e jovens de famílias desestruturadas, onde o pai está normalmente ausente “, revela o produtor. “O maior receio destes miúdos é que aconteça algo de grave à mãe ou aos avós.” Não é, pois, o bilhete-postal da Ribeira que empurra o filme, mas as vidas que se tecem por detrás do cenário: a cultura de sobrevivência, os laços da comunidade, o lado sombrio da ponte, a desagregação familiar, a crise eterna que consome os imaginários de uma “geração perdida”. O projeto, para o qual já existe um apoio do município de Saragoça, vai beber referências narrativas e estéticas a Ladrões de Bicicletas (Vitorio de Sica), Pauline na Praia (Eric Rohmer), Amarcord (Fellini) e, obviamente, Aniki Bobó, de Manoel de Oliveira, que, para o realizador, “foi um filme absolutamente revolucionário à época”. À boleia de uma coprodução ibérica El Teatro del Temple/Riot Films, a ideia de Javier parte do enredo à volta de um jovem protagonista que só arriscará atirar-se da ponte para impressionar a rapariga amada. Se preciso for, o rapaz estará disposto a ensaiar o voo mortal do tabuleiro superior, mas protegido por um fato de super-herói construído por ele mesmo. Isto no filme, claro. “Mas já houve uma história parecida. Uma mulher tentou suicidar-se mas a gabardina fez de balão e ela salvou-se”, conta-se, pela Ribeira.
“Gostava de ser jogador profissional de poker. E adorava fazer um filme. Bom aluno? Se me aplicar, sou. Gosto muito de Educação Musical. Há uma rapariga de quem gosto, morena, 15 anos, divertida. Tem o seu próprio charme, mas ela não gosta de mim. Quando soube, fiquei deprimido. Tenho medo das alturas, mas era capaz de saltar da ponte para impressioná-la. A coisa mais corajosa que fiz foi ter batido no meu melhor amigo. Estava a meter-se com umas raparigas, mas elas não tinham feito nada. Para ser honesto, não sou assim muito feliz. A vida não está fácil e fico triste quando vejo a minha mãe chorar. Eu só tenho a minha mãe e ela só me tem a mim. A coisa que mais me emociona é falar da família.”
Leonardo Durães, 14 anos
TAKE 3
Praia da Madalena, Gaia.
Num sábado de julho, monta-se um ringue na nesga de areal, junto ao bar 4 Marés. Senhoras de meia-idade dançam zumba antes da abertura da gala de boxe amador para crianças e jovens. Há transmissão em direto num canal de desporto da internet com recurso a uma Go Pro, câmara telecomandada que zumbe nos céus uma excentricidade.
Na assistência, a geografia e as tribos da Ribeira, da Sé, do Porto sentido e ressentido.
Tratam-se quase todos por “filho”, exibem os bíceps de ginásio, passam a mão pelo cabelo à escovinha. Há jovens com visual à Cristiano Ronaldo, raparigas a imitar as mães na descontração adulta e na roupa de marca, putos com a “crista” à Kelvin, o herói brasileiro do FC Porto que derrotou o Benfica na época finda. Muitos vieram munidos de IPAD e relógios do tamanho dos pulsos. Abundam fatos de treino da secção de boxe dos dragões e do BB Team, do Fluvial, a equipa de Belinha Moreira, candidata a atriz no filme de Javier.
“É o primeiro grande combate dela”, revela a mãe, Anabela Palavrinhas, no nervoso miudinho de cigarro atrás de cigarro.
De casaco de ganga, bolsa rosa, jeans com brilhantes, t-shirt em rede preta transparente, pulseira dourada no braço esquerdo e unhas de gel esverdeadas, esta loira encorpada desabafa: “Isto para os pais é uma adrenalina!” Belinha traz uma trança no cabelo. Simula socos, ansiosa. Aquece. Amargou na infância, andou na dança, fez ciclismo, é boa aluna, prefere as aulas de Francês. “Dá-lhe caralho!”, incentiva, entretanto, um amigo, que, no ringue, leva o adversário às cordas.
O espetáculo excita os presentes, há familiares exaltados, enquanto Javier, o realizador, fotografa em todas as direções e a câmara de filmar, nas mãos de Mário, parece em piloto automático. “Isto é um mundo à parte”, concordam ambos. Um aficionado, trajado à FC Porto, não disfarçava, contudo, a maciez da contenda: “Estes miúdos, agora, são todos uns paneleirotes. É só Facebook e Hi5”, dizia, alto e bom som, gargalhadas em volta. Veio então para perto da Palavrinhas um sobrinho de tenra idade, algo assustado: “Ó tia, aquele já está a deitar sangue!”.
Reprimenda: “Cala-te! Já sabes que é assim. Se depois vires a Belinha a deitar sangue também não dizes nada.” Não sucedeu. A filha da Palavrinhas foi declarada vencedora, num sopro. O boxe ou o cinema? “O boxe.” Mas a vida dela, como a dos outros meninos do rio, dava mesmo um filme.