O caminho até à residência do centro de alto rendimento do Jamor é sempre a subir. A terra, nesta zona da Cruz Quebrada, ainda se encontra saturada da chuva dos últimos dias e o sol faz despontar as azedas por tudo o que é verde, mas os atletas nem dão por isso. Não foram para ali com a ideia de se maravilharem com a natureza. Estão focados num objetivo: serem melhores. Melhores do que são, melhores do que os outros.
A residência tem vários quartos, muitos deles com janelas viradas para as traseiras. Não se costuma passar nada de especial naquele pedaço de mata, no concelho de Oeiras, nada que os distraia, a não ser um ou outro carro que usa a estradinha meio enlameada, atrás do edifício, para fazer inversão de marcha. Existe uma cerca com um portão quase sempre fechado e, alguns metros para sul, uma correnteza de arbustos altos.
Quando Eliana Sanches parou a sua velha carrinha Opel Astra azul-escuro junto desses arbustos, sabia que não corria o risco de ser encontrada durante várias horas. Era sexta-feira à noite, talvez na manhã seguinte algum entusiasta de BTT aparecesse aos ziguezagues entre pinheiros. Teria sido a pensar nisso que trouxera um grande oleado amarelo – serviria para tapar os filhos.
E pensou bem. Foi preciso um serralheiro do Jamor andar para lá e para cá, no fim de semana, para estranhar uma carrinha tanto tempo naquele sítio. Na tarde de domingo, 27, espreitou lá para dentro e reparou num pé descalço a sair do oleado. Dado o alerta, a estradinha encheu-se de carros e de homens, entre seguranças, agentes da PSP e elementos dos Bombeiros Voluntários do Dafundo.
O pé pertencia a um rapazinho de cabelo curto castanho que parecia dormir, tapado com um casaco e aninhado no banco de trás. No lugar do pendura, outro rapazinho, de cabelo loiro pelos ombros, aos caracóis, também parecia estar adormecido. Ambos apresentavam sinais claros de envenenamento: um tinha um pedacinho de vómito nos lábios, outro sangue no nariz. Os agentes da PSP recolheriam uma caixa de bolos que consideraram suspeita.
‘São pedaço do meu corpo’
Era já noite escura quando os corpos dos dois irmãos, David Sanches dos Santos, 12 anos, e Rúben, 11, foram transportados para o Instituto de Medicina Legal, em Lisboa. A dez minutos de carro do Jamor, em Linda-a-Velha, Ester Sanches, a avó materna dos miúdos, recordava o telefonema que um deles lhe fizera ao final da tarde de sexta-feira. A mãe fora buscá-los à saída do centro de estudos, mas ela que não se preocupasse porque regressariam a sua casa depois do jantar.
O fim de semana seria de aflição naquele apartamento da Rua de Ceuta. Tanto Ester como o marido, Carlos, sabiam que Eliana não aceitara bem a decisão do Tribunal de Família e Menores de Cascais que, na quarta-feira anterior, 23, aplicara a “medida de promoção e proteção de apoio junto do pai”, com efeitos imediatos. A mãe só podia visitar os filhos em casa de familiares e sob a sua supervisão.
Segunda de manhã, ainda não eram dez horas, agentes da PSP com cães esquadrinharam a zona da mata e, a 50 metros da carrinha, descobriram um corpo de mulher debaixo de um pinheiro tombado. Vestia calças de ganga e tinha as unhas das mãos pintadas de cor-de-rosa. “Já vi muitos mortos e nenhum assim”, desabafaria um dos homens presentes no local. “A forma violenta com que se matou revela muita determinação e coragem.”
Eliana cortara o rabo de cavalo com um bisturi e enfiara um saco de plástico na cabeça, enrolando fita adesiva castanha a toda a volta, como uma múmia. Depois, com o mesmo bisturi, terá tentado, pelo tato, acertar nos pulsos e cortá-los, mas apenas conseguiria fazer uns cortes superficiais nos antebraços. Em casa deixara cartas para os pais, o companheiro e o ex-marido.
As três cartas vão ser muito importantes para tentar encontrar uma justificação para o que aconteceu, nota a psiquiatra Maria Antónia Frasquilho. “Apesar de ainda não existir uma autópsia psicológica, há um denominador comum em todos os casos de suicídio: o terrível sofrimento, a desesperança. A ideia de que não vai haver uma solução e de que ninguém poderá ajudar.”
Quanto ao assassínio dos filhos, é sinal de que eles são simbióticos com o progenitor, acredita a mesma especialista. “Como se dissesse: ‘São pedaço do meu corpo, da minha pessoa, sobre o qual eu tenho ascendência ou poder. Vocês são meus, estão comigo, acompanho-vos na vida ou na morte’. É muito pesado dizer que o fez por vingança [complexo de Medeia, que matou os filhos para se vingar do marido infiel]. Não podemos culpabilizá-la, colocar-lhe o rótulo de má pessoa porque o seu sofrimento era muito grande. Também era uma vítima.”
‘Andava sempre zangada’
Em tempos, Eliana vivera obcecada em ser a melhor. Filha de um cantor angolano, adorava dançar e cantar mas acabaria por se licenciar em Artes Visuais, na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Com o marido, Rui Santos, montou uma empresa de publicidade e teve dois filhos rapazes, com o intervalo de um ano.
Até que, em 2010, tudo se desmorona como um baralho de cartas. Separa-se, interrompe o mestrado, começa a perder o gosto pela docência (dá aulas de Arte Digital numa escola secundária de Lisboa) e corta relações com a mãe. Um aluno recorda-a “muito inteligente e muito triste”, nas aulas. “Às vezes, era uma professora porreira, mas andava quase sempre zangada. Quando intervinha era direta e cheia de ironia. Gostava de jogos de palavras mas entrava sempre a matar.” Como faltava muito e tinha de compensar as horas na escola, levava os filhos para a secretaria. Hoje, as funcionárias falam de “dois anjinhos, sempre muito quietinhos, a desenhar”.
David e Rúben frequentavam o 8.º e o 7.º ano da Escola Secundária Professor José Augusto Lucas, em Linda-a-Velha. Toda a gente os conhecia, sobretudo Rúben por causa do seu cabelo comprido. “Não eram bons alunos, naturalmente”, diz uma professora, atribuindo as más notas à situação familiar complicada.
Depois das aulas, os dois irmãos iam, invariavelmente, para um centro de estudo ali próximo, a meio caminho entre a escola e a casa dos avós paternos, onde passavam muito tempo. Ao sábado de manhã, aprendiam break dance. “Adoravam dançar e estavam sempre alegres”, garante o instrutor.
‘Isto em janeiro resolve-se’
Rui apaixonara-se por outra mulher, que fora trabalhar para a Madeira. Eliana estava desempregada e mudara-se mais recentemente para São Marcos, no Cacém, onde morava com o seu novo companheiro. A relação de Rui e Eliana era tensa, por vezes tempestuosa. Acusavam-se mutuamente de más condutas em relação aos filhos. Dificultavam mutuamente os períodos em que o outro estava com eles. “Mesmo assim”, conta a mesma professora, “os miúdos não andavam revoltados. Eram bonzinhos e comportavam-se como se quisessem sempre pôr água na fervura.”
O discurso de Eliana era o de uma pessoa séria e assertiva. Mostrava-se afetiva e próxima dos filhos. “Não era uma lunática. Só uma vez é que teve uma conversa inconveniente comigo, queixando-se de que o ex-marido gastava muito dinheiro com as idas à Madeira.”
Até que, no ano passado, a Comissão de Proteção das Crianças e Jovens em Risco de Oeiras foi chamada a intervir, na sequência de uma denúncia à PSP. Eliana teria agredido os filhos, em casa dos avós maternos; a polícia foi ao apartamento, a pedido de Ester. Em setembro, a comissão remeteu o caso para o Tribunal de Cascais. Um mês depois, ao fim de dois anos de “guerra” com a ex-mulher, Rui confidenciaria a amigos: “Isto em janeiro resolve-se.”
Janeiro estava quase a terminar quando, na quarta-feira, 23, Rui “ganhou” os filhos para si. Dois dias depois, voou para o Funchal mas não foi descansado. À hora do almoço, telefonou para o centro de estudos, querendo saber se David e Rúben lá estavam. Por essa hora, a avó materna passou por lá para ver os netos. Um pouco mais tarde, Eliana seria vista a rondar a zona, indo-se embora ao perceber que um deles ainda não chegara. A tragédia já tomara o seu rumo e o fim aproximava-se.