Ainda é noite escura e já o formigueiro de gente se alinha para entrar no barco da estação fluvial que liga o Barreiro à capital. Os autocarros chegam apinhados de gente, vigilante, apesar das madrugais seis horas. Levam ganas de trabalhar, no passo apressado. Podia ser só a necessidade de chegar a tempo e horas. Mas é também a correria necessária a quem vive obrigado a percursos insanos.
Entre a multidão seguem três universitários. Moram e estudam na margem sul do Tejo, mas a lógica – ou a falta dela – do sistema de transportes urbanos obriga-os a ir a Lisboa, à margem norte, para atingirem o ponto de chegada, a Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova de Lisboa, no Monte da Caparica, de novo… no lado de lá!
No final desta reportagem terão passado duas horas. Servem apenas para ir a algum lado, mas multiplicadas por ida e volta, dão um resultado de quatro horas – qualquer coisa como metade de um dia de trabalho.
Assim vão os transportes públicos. Confortáveis nos equipamentos, mas “irracionais” no serviço prestado. O buraco financeiro do setor ronda os 17 mil milhões de euros e, embora muitos portugueses tenham deixado de poder sustentar carro próprio, o número de utilizadores continua a cair – só a CP perdeu 11 milhões de passageiros em 2012. E o conjunto dos vários serviços públicos 33 milhões.
Idiotas a bordo
O passo começou apressado, mas o vereador da Mobilidade da Câmara Municipal de Lisboa detém-se diante da escada rolante, na estação de Metro do Campo Grande. Ao contrário do que lhes dita o nome, não rolam. “Avariou-se, parou. É um velho problema de manutenção”, comenta Fernando Nunes da Silva. A maior parte dos utilizadores vê incómodo num mecanismo avariado, um engenheiro especialista em mobilidade vê um problema de gestão: “Reduz os fluxos, logo o número de pessoas, logo é menos rentável.”
São quase 9 horas e a carruagem M 705 do Metro de Lisboa para a estação do Rossio continua a acusar hora de ponta. Pior desde que, ainda no ano passado, o número de carruagens foi reduzido de quatro para três – uma diferença que permite cortar um terço dos custos de exploração, mas obriga os donos de títulos de transporte a viajarem diariamente amassados. “Vamos aqui como sardinha em lata, porque tiraram carruagens, mas eu pago o mesmo”, lamenta-se uma das muitas lisboetas que usa o Metro para chegar ao trabalho.
Mesmo assim, algumas linhas, como a que abriu para chegar ao aeroporto, têm sido um sucesso. E não é por causa dos turistas. “Essa zona tornou-se a maior empregadora de Lisboa, com 10 mil a 14 mil postos de trabalho, e o Metro veio responder a uma necessidade essencial.”
A nova linha para o aeroporto é uma exceção, mas também um sinal dos tempos – mais um dos que a maior parte das transportadoras tem ignorado, ao concentrar todos os esforços para unir as periferias aos centros urbanos, esquecendo que hoje já há muito movimento entre periferias. “E, com o crescimento desses movimentos, o sistema tarifário devia ter mudado”, critica o vereador, enquanto retira do bolso um dos bilhetes verdes que lhe permitirão fazer a viagem de autocarro da Carris até Santos.
O tempo é de crise, já se sabe. Os transportes públicos seriam mais necessários do que nunca, calcula-se. Mas o comportamento dos utilizadores é exatamente o oposto: “Perdemos 25% dos passageiros, na área metropolitana de Lisboa. Uma coisa dramática.”
Parece incoerente, mas é apenas o resultado de políticas sucessivas de desprezo pelo público. Neste caso, o transporte. “Lisboa tem 400 tarifas. É um absurdo. Mas já foram mil. E são caras. Para quem vem dos bairros de Alcochete e Montijo ou dos escritórios junto da A5 sai a metade do preço e leva um terço do tempo usar carro. Quem é o idiota que vem de transportes?”
Caro e confuso
Questiona assim o vereador independente, mas mais ainda o engenheiro civil do Instituto Superior Técnico, especialista em mobilidade urbana. “Pedem-nos os relatórios, mas as decisões políticas ignoram as conclusões.” Exemplo disso são os custos associados à utilização da ferrovia para a margem sul. “Um estudo da Universidade de Lausanne previa um máximo de 40 mil passageiros por dia, mas os privados só entrariam no negócio se o contrato registasse 80 mil. Fez-se nova pesquisa com técnicos nacionais e concluiu-se que haveria 80 mil passageiros. Na realidade, são menos de 35 mil. A diferença para os 80 mil paga o Estado. E é assim porque as empresas de transporte permitiram alimentar as clientelas partidárias”, acusa Nunes da Silva.
Chegados ao Rossio, é tempo de estudar a próxima ligação. O vereador aproxima-se dos mapas que explicam as coroas e tarifas, para logo desesperar: “Ninguém a olhar para isto percebe as vantagens que tem. O tarifário é uma loucura completa. Mais nenhuma empresa ou sistema do mundo funciona desta forma confusa e cara para os utentes.”
Dizem-nos que o cartão não está válido, apesar de Nunes da Silva ter acabado de o comprar. A explicação vem logo de seguida: “É que comprou só para o Metropolitano. Tem de pedir o Zapping.” O funcionário recebe um sorriso sarcástico de Nunes da Silva: “É uma estupidez. Os dois cartões são absolutamente iguais: um dá e outro não. Porque um é zapping e outro Viva Viagem.”
Autor de vários estudos sobre mobilidade urbana, o engenheiro tem uma explicação para o sistema: “Lisboa é a única cidade da Europa onde os transportes não estão integrados. Cada empresa vive por si própria e em concorrência com as outras todas.”
Porque integrados significa entendimento entre as várias firmas. “Com o bilhete Zapping ganham um pouco menos por terem de partilhar o rendimento. Mas se os sistemas forem fáceis, atraem mais pessoas. Não se veem as coisas assim, o que é um erro.”
Nem público, nem estratégico
Se a falta de coordenação entre transportadoras se contabilizasse em papéis, Carolina teria já encontrado a medida exata. Quando soube que entrara para o curso de Engenharia Civil na FCT, teve de desdobrar quatro horários de transportes diferentes para perceber como podia chegar à faculdade. Rapidamente concluiu que são muitas as ligações entre margens, mas poucas – ou ineficazes – dentro de margens.
Carolina distingue-se entre o formigueiro de 33 mil passageiros que diariamente cruzam o rio para chegar do Barreiro ao Terreiro do Paço: debaixo do braço traz compêndios de análise matemática. Com ela vem uma vizinha de margem e colega de faculdade. Cristina e Carolina são apenas duas entre os muitos que saem do autocarro na estação do Barreiro para apanhar a ligação fluviária. Apesar dos seus jovens 18 e 19 anos, confessam-se cansadas. “Levantamo-nos às cinco da manhã e, muitas vezes, ainda ficamos pelo caminho por causa das greves. Só no primeiro trimestre houve três greves e algumas de vários dias”, queixa-se Cristina, a estudar Engenharia do Ambiente.
Para não faltarem às aulas, uns ficaram a dormir em casa de amigos, outros passaram horas à espera nas estações. Tempo que sobra para fazer as contas da revolta aos quase 67 euros gastos no passe que não leva a lado nenhum: “A minha irmã gémea está a estudar fora, em Coimbra, e precisa de 200 euros por mês. Eu, que continuo em casa dos meus pais, preciso de 150 euros. É quase tudo para os transportes”, garante Carolina, logo secundada pelos colegas, que se queixam da falta de opções. “Podíamos vir no comboio da Fertagus, mas ficava mais caro e levava ainda mais tempo.”
A diferença de preços é de 20 euros para Milton Raimundo, 19 anos, aluno de conservação e restauro, na Universidade do Monte da Caparica. Vinte euros que fazem falta, numa família de mãe desempregada, pai vigilante noturno e irmão a licenciar-se em Medicina. “Os preços subiram duas vezes desde que entrei para a faculdade.” Milton comprova as estatísticas todos os meses. Em Portugal, os custos dos transportes pesavam 14% nos orçamentos familiares, em 2010, enquanto a média europeia era de 13,5 por cento. E entre 2011 e 2012, houve subidas que chegaram aos 25 por cento
A viagem de barco segue mareada, mas em amenidade contrastante com o descontentamento dos utilizadores. É que, dizem os estudos, não é o conforto, mas a rapidez e a garantia de cumprimento de horário que conquista o utilizador de transportes. Com mais de duas ligações, explica João Joanaz de Melo, os passageiros desistem.
A rapidez ficou por conta da qualidade dos estofos. O percurso podia ser feito em metade do tempo mas deixou de ser, para se poupar nos combustíveis. Não havendo dinheiro para a gestão diária, nunca parece ter faltado para equipamentos novos. Pressões de lóbis económicos, garantem alguns. Culpas políticas, acrescenta o presidente do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA): “Pressões há em todos os países. O problema é o interesse público ficar para trás e nós conjugarmos isso com uma total falta de estratégia.”
No reinado das autoestradas
Políticas incompreensíveis aos olhos de quem estuda o setor levam Joanaz de Melo até à sala ao lado, onde uma das suas alunas de Mestrado em Engenharia do Ambiente demonstrará como muitos dos problemas dos transportes públicos derivam de decisões mal fundamentadas: 65% dos estudos sobredimensionam as estimativas de tráfego, pelo que “metade das autoestradas não tem a afluência mínima de 10 mil veículos por dia que as justifiquem”. Não admira que se batam recordes com os 29 quilómetros de autoestrada por mil quilómetros quadrados – quase o dobro da média europeia, com 15 quilómetros.
E o argumento sempre usado, de que seriam um motor de desenvolvimento regional, nem sempre se comprova. “Os municípios atravessados por autoestradas têm mais desemprego do que os outros”, concluiu a autora da tese Análise da Eficácia da Avaliação de Impactos da Rede Nacional de Autoestradas, Marta Mendes.
Sendo certo que não serão as vias rápidas a provocar o desemprego, também fica claro que não são necessariamente criadoras de mais postos de trabalho. Em vez de betão, Joanaz de Melo, gostava de ver reforçada a aposta nos carris. “Isso é que faria a verdadeira diferença na economia do País.”
Os estudos demonstram que os portugueses ainda vivem deslumbrados pelo automóvel, mas, diz o professor de Engenharia, também lembram que têm boas razões para isso: “As tarifas são elevadas e as ligações não servem as necessidades das pessoas.”
Na Grande Lisboa, como no Grande Porto, onde Carlos Sá precisa de mais de uma hora para percorrer 20 quilómetros. Encontramos o fundador da associação de utentes Comboios XXI às 7 e 55 de uma quarta-feira, na estação de comboios de Famalicão. “Este é o último rápido no sentido Braga-Porto”, diz, justificando a afluência. Há muito que este operador informático de 58 anos deixou de ter viatura própria. Se fosse de carro para o trabalho não lhe chegariam 300 euros mensais para combustível e portagens. A Estrada Nacional está fora de questão: “Ficava parado logo à saída de casa.”
Passes ricos
Se o Porto fosse o seu destino, não lhe ouviríamos queixas. Pelo menos, desde que, em 2004, a linha antiga, de via única, não eletrificada, deu lugar a esta, modernizada, que permite fazer o percurso entre Braga e o Porto em 50 minutos e já não numa hora e meia como antigamente. “Esta linha teve um aumento de passageiros de 15% ao ano. Em 2008, já tinha alcançado o volume de passageiros previsto para 2012.” Sabe do que fala. Representa uma associação de utentes e tem participado em lutas pela defesa dos interesses de quem, como ele, se serve dos meios ferroviários: “Na periferia é de fugir. Os autocarros são maus e a oferta é miserável.”
Dentro da cidade, os problemas estão resolvidos: “O Metro do Porto (MP) é pequeno, mas trouxe grande mobilidade.” Se, precisamente, alguns projetos do MP não tivessem ficado no papel, a vida de Carlos teria saído beneficiada. Os 15 quilómetros que ficaram por fazer entre a Maia e a Trofa, pelo canal ferroviário desativado, encurtar-lhe-iam o trajeto em 20 minutos.
A maior luta de Carlos, no momento, é, porém, outra: os preços. Escreveu mesmo uma carta – para a qual não obteve resposta – ao Ministro da Economia, queixando-se do “aumento brutal” das tarifas e do “fim dos títulos monomodais” que o vai afetar em breve. Em fevereiro de 2012, os passes aumentaram 25 por cento. O objetivo é, para Carlos Sá, óbvio: “Tornar o setor atrativo aos olhos dos privados.”
Para continuar a usar os autocarros da Sociedade de Transportes Coletivos do Porto (STCP), será obrigado a comprar o Andante, um bilhete que combina Metro e Autocarros. Para já, o fim dos passes monomodais foi adiado. Mas a medida vai custar-lhe 56 euros mensais e… um enorme sentimento de injustiça, que transmitiu na missiva a Álvaro Santos Pereira. A assinatura da STCP que agora detém e pela qual paga 32,80 permite-lhe andar em qualquer autocarro ou elétrico da empresa. O Andante – 23 euros mais caro – a que terá de aderir cobrirá apenas uma pequena parte da rede rodoviária.
O comboio chega pontual. Vai cheio, mas Carlos Sá encontra ainda lugar para se sentar, durante os 22 minutos de viagem. A parte pior do percurso está a começar: “Agora, para fazer o terço final da viagem demoro o dobro do tempo.” Ainda tem pela frente 20 minutos de pé, num autocarro, até chegar a São Mamede, e, depois, mais dez até Leça do Balio.
Vícios públicos
Depois dos atrasos, a bilhética é a principal causa de reclamações dos utilizadores da CP. Quem quiser viajar nos transportes lisboetas e não tiver passe precisa de comprar vários títulos e carregá-los um a um. Consciente de que esta é uma falha na relação com os clientes, a administradora da empresa, Cristina Dias, defende a aposta no Zapping, um bilhete que pode ser usado indiferentemente na Carris, CP ou Transtejo e que, desde janeiro, passou a ser carregado em função das novas zonas, porque, antes, diz, “não era justo nem claro”.
Perante a queixa dos atrasos, a administradora argumenta com greves, traduzidas em 26 mil comboios suprimidos durante todo o ano. No dia desta reportagem havia oito pré-avisos em vigor e todos os 365 dias de 2012 foram de greve na Comboios de Portugal. As queixas com a venda de bilhetes tenderão a diminuir, acredita Cristina Dias, com os novos zonamentos, que implicam tarifas iguais para todo o País – até agora um quilómetro de viagem de comboio, na linha de Cascais, era mais caro do que na linha de Sintra.
Para mostrar como o sistema é acessível, a economista, doutorada em Gestão, faz questão de ser apenas mais um dos cem mil passageiros que passam diariamente pela estação do Cais do Sodré. À chegada, compra o título na máquina. “Está a ver, foram segundos”, conclui, satisfeita, embora admita que possa ser confuso para quem não compra o Zapping.
Durante a viagem até Oeiras, aponta as duas grandes falhas dos transportes públicos portugueses: falta de planeamento integrado entre as várias empresas e más decisões estratégicas. “A CP tem um dívida histórica de 3,6 mil milhões de euros, porque o Estado não dispunha de dinheiro para infraestruturas e pediu-nos a nós para irmos à banca. Estamos agora a pagar isso.” Isso e a “ditadura” das infraestruturas rodoviárias. “Nos últimos 20 anos, houve investimentos extraordinários nos transportes públicos e exatamente ao lado fizeram-se estradas. Os contribuintes pagaram duas vezes. Têm agora um transporte público de qualidade, mas vazio.”
Para as baterias apontadas às despesas causadas pelos próprios gestores públicos – os polémicos sete carros para os sete diretores da CP -, Cristina Dias tem uma explicação que deve pouco à matemática: “Passei a gastar mais 200 euros por mês para manter os mesmos automóveis, que já tinham entre 10 e 12 anos, porque passaram 6 meses do contrato que obrigava a renovar a frota.” Um erro de gestão, alerta Cristina Dias, que serviu apenas para evitar mais “ruído” público.
Porque mais do que levar pessoas de um lado para o outro, os transportes coletivos portugueses têm servido objetivos políticos e económicos. Chamam-lhes públicos. É só um nome.