- SAIBA MAIS SOBRE O PROJETO VISÃO PORTUGAL
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Não foi por estar na moda que Helena Antunes quis uma cozinha grande, com uma bancada e fogão no meio – já na casa anterior era habitual os convidados ficarem a vê-la terminar o jantar. “Esta ilha surge da ideia de ter os amigos à minha volta, a beberem uma mini e a comerem tremoços, enquanto eu cozinho”, explica, tentando que os dois filhos, Henrique, de 14 anos, e Frederico, de 11, e os amigos Gonçalo e Tomás façam um bolo de bolacha para o lanche sem lamberem muito os dedos.
Depois de crescer num apartamento “típico dos anos 60”, com sala de estar, sala de jantar, quarto dos pais, dois quartos para quatro irmãs, cozinha, despensa, quarto e casa de banho para a empregada, Helena queria viver com mais informalidade, ter espaços sociais amplos, maior fluidez entre eles e uma zona de dormir reservada. Os arquitetos Luís Santiago Baptista e Tiago Leite de Araújo responderam com a Boxes House (Casa das Caixas, à letra), encaixando os quartos num paralelepípedo de madeira e a cozinha numa estrutura com o betão à vista. E assim desenharam uma casa à medida de uma família que é sociologicamente muito atual.
Sandra Marques Pereira, socióloga, autora do capítulo Cenários Domésticos: modos de habitar do volume IV da História da Vida Privada em Portugal (Temas & Debates ¤29,90), nunca entrou neste piso térreo bem integrado num bairro antigo de Lisboa, mas no seu gabinete, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, descreve uma realidade que nos remete de imediato para a casa de Helena.
A investigadora começa por falar na nova centralidade das cozinhas atuais, que começa na ideia de que a mulher já não fica a tratar do jantar enquanto o marido entretém os amigos na sala. “Era um espaço interdito às visitas, hoje é lá que se recebem as pessoas.” Depois, avança com a frase “matrioska de privacidades que se sobrepõem” e o que diz a seguir faz sentido na Casa das Caixas: “A multiplicação do número de suites vai ao encontro de um ideal de família que valoriza a autonomia de cada membro; a ideia da família como uma associação ou clube de indivíduos.”
Embora só Helena tenha uma suite, o espaço reservado aos filhos deixa adivinhar uma utilização muito específica e privada. Henrique e Frederico têm três divisões seguidas – um quarto de brincar, uma casa de banho e um quarto de estudo, mais zona de dormir, num mezanino. Ali, mãe não entra (a não ser para ajudar a fazer as camas), mesmo que um canto da sala onde Helena colocou uma grande mesa e três computadores portáteis seja uma espécie de escritório que revela a proximidade da relação mãe-filhos.
Luís Santiago Baptista e Tiago Leite de Araújo comparam esta casa com um “fato à medida”, notando que agora isso acontece sobretudo nas reabilitações, “hoje o único salva-vidas”, em arquitetura. Mas estas são algumas das tendências que os promotores já incorporaram nas suas ofertas. Vinte anos depois de se ter iniciado no ramo do imobiliário, Augusto Vaz não hesitou quando construiu os seus últimos apartamentos, nas Lezírias do Infantado, em Loures: as divisões estão com mais metros quadrados do que nunca, há pelo menos uma suite, a cozinha tem uma ilha central sempre que possível e o walk in closet (quarto de vestir) é quase uma obrigação dos andares maiores. “Chegamos a ter T4 com quatro suites”, diz, com um certo orgulho. “E investimos em quartos só com roupeiros porque sabemos que os clientes os valorizam muito.”
Partir paredes
Fernando Hipólito tem um quarto de vestir há 14 anos e é o primeiro a admitir que essa é mais uma das tendências atuais. Quando decidiu deitar abaixo algumas paredes para adaptar uma vivenda do final dos anos 60, em Cascais, a pensar na sua própria família, o arquiteto anulou um dos quartos do primeiro andar e transformou-o num walk in closet.
Mas foi no rés-do-chão que mais mexeu para melhor adequá-lo ao modo de vida dos Hipólito: a cozinha perdeu duas pequenas despensas e ganhou uma “península” com fogão e zona de refeições; e de quatro divisões fez uma grande sala. “Era uma casa absurda para nós”, recorda o arquiteto, enquanto faz uma visita guiada para as câmaras. “Agora, só mudamos de vez em quando a decoração.”
A casa de Fernando Hipólito e Elsa Dias, ambos arquitetos, não lhes serve de cartão de visita para os projetos de que são capazes – para isso seria preciso espreitar, como espreitámos, uma remodelação de um duplex, na zona do Areeiro, em Lisboa, ou a casa-dois-em-um em que transformaram uma vivenda no Restelo (os dois andares superiores ficaram para o pais e o piso térreo é hoje um apartamento para o filho, já universitário). Mas é uma casa que exemplifica bem as alterações por que passou a habitação em Portugal.
Quanto à decoração, quente e nada minimalista, segue o que faz sentido em tempo de crise, diria Cristina Cordeiro, jornalista há 23 anos na área dos interiores, arquitetura e urbanismo. “As pessoas não desinvestiram na casa, pelo contrário. É o seu último abrigo. Por isso, arranjam maneira de essa segunda pele ter algum conforto visual e físico. E o minimalismo não é confortável.”
O ‘fator ninho’
Cristina Cordeiro lembra-se bem do tempo em que os apartamentos portugueses eram mais tristes. “Tinham uma boa sala, mas um longo corredor e quartos pouco cuidados. E era tudo muito escuro, até ao nível do mobiliário e dos cortinados.” Embora já cansada do Ikea – a jornalista tem uma estante da empresa sueca que inesperadamente ruiu sob o peso dos livros -, admite que são lojas como esta que ajudam os portugueses a tornar o seu dia a dia mais alegre e funcional.
Era de soluções práticas que Sara Barradas, de 26 anos, subgerente de um supermercado, ia à procura quando a encontrámos, ao primeiro dia de reportagem, sob o ar condicionado do Ikea de Loures que sabia que nem ginjas. A morar sozinha há um ano, precisava de roupeiros grandes, com muita arrumação e, sobretudo, nada parecidos com os móveis dos pais – “de madeira maciça, com alguns ornamentos”.
Antes, tínhamos metido conversa com Cátia Andreia, de 30 anos, e Paulo Ramos, de 31, ela gerente de uma loja e ele GNR em Lisboa, que empurravam à vez o carrinho do filho, enquanto escolhiam alguns acessórios. Propusemos-lhes um jogo inspirado na Casa Dominó, idealizada pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, no início do século XX. Perguntámos-lhes o que fariam se lhes dessem um apartamento sem divisões e Paulo não hesitou na resposta: “Sala de estar, sala de jantar, quartos… E gosto do estilo kitchenette.”
Com duas frases, o militar destruía a estatística que Ana Teresa Fernandes, responsável do Ikea Portugal, tinha desfiado uns minutos antes: a maioria dos portugueses tem uma sala comum e apenas 5% opta por uma cozinha à americana. Mas, para memória futura, apetece registar uma das tiradas da mesma Ana Teresa Fernandes, emocional, nestes tempos demasiado sombrios. “Tendo em conta os estudos que fazemos e de tanto ouvirmos a opinião dos clientes, sabemos que a casa é a coisa mais importante que existe na vida das pessoas. É o fator ninho. Entramos, fechamos a porta e quase que ali nada de mal nos pode acontecer.” Era bom.