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Lucinda tira os olhos do croché para deixar sair um longo suspiro. Já lá vão mais de 40 anos e ainda precisa de fôlego para recordar o dia em que deixou os filhos a acenar despedidas na estação de comboios de Canas de Senhorim, enquanto ela e o marido emigravam para trabalhar na Alemanha.
“Quase me deitava da janela abaixo quando os vi a dizer adeus na estação.
Levei toda a viagem em lágrimas.” Naquele dia, Lucinda não sabia ainda que haveria de valer a pena. Que, sim, ia conseguir dar estudos aos três filhos. As reguadas a mais por parte dos professores e a vontade a menos por parte dos pais tinham-na afastado dos bancos da escola, ao fim de escassos três anos de ensino.
Há apenas uma década, 22 em cada cem portuguesas não tinham sequer a quarta classe. Porque uma geração de mulheres meteu na cabeça que as suas filhas teriam direito a um futuro para lá do fogão, é hoje possível encontrar, em Portugal, mães empregadas domésticas com filhas licenciadas ou mesmo doutoradas.
A revolução não se fez apenas no feminino, mas foi mais brusca para elas. Enquanto os homens completavam, pelo menos, o quarto ano, muitas mulheres não chegavam a finalizar nenhum grau de ensino. E foi desse patamar que partiram em busca da literacia e da independência.
O MAIOR SALTO DA EUROPA
Ter um filho a estudar, no Portugal de há 40 anos, implicava acreditar que a sabedoria traria mais amanhã. Só quem não vacilava nessa convicção atingia a meta.
Pretextos para desistir não faltavam, como bem se lembra Maria Teresa Correia, 73 anos. “No meu tempo, poucos ou nenhuns faziam a quarta classe, porque a vida era difícil. E na escola tudo servia de pretexto para apanharmos com a régua.
Mas com a nossa filha queríamos que fosse diferente. Fizemos muitos sacrifícios.
Um ordenado ia direitinho para ela. Tinha de chegar para pagar quarto, comida e livros.” Hoje, ninguém duvida de que valeu a pena. Maria da Graça, 49 anos, superou todas as expectativas. Estudou psicolo gia e tornou-se uma empresária de sucesso.
Entrou no mundo dos negócios a “abrir caminho, para mais tarde haver tantos homens como mulheres no tecido empresarial”.
Enquanto Maria Teresa prepara o almoço, a filha desdobra-se em telefonemas e respostas a e-mails. Uma foi criada num tempo em que estudar não fazia parte do imaginário feminino. Outra integra a geração que deu o maior salto em matéria de literacia da história nacional.
“Ganhei corpo muito cedo e a minha mãe achou que era uma vergonha continuar na escola. Saí para ajudar a criar os meus irmãos”, lembra Maria Teresa.
Preocupar-se com o outro foi sempre tarefa deixada para as mulheres. Primeiro, a descendência, depois, quem precisasse.
“Os grandes pedagogos do século XIX defendiam que as mulheres não deveriam ser educadas. O seu papel era o de mães e educadoras”, recorda a presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, Sandra Ribeiro.
Agora que filhos e netos estão criados, Lucinda Oliveira olha pelos idosos da terra. Voluntária no lar Padre Domingos, em Canas de Senhorim, distrito de Viseu, ligeirinha nos seus 71 anos, aproxima-se, pergunta como se sentem, faz uma festinha, entrega sorrisos. Cuida.
Na resposta a essa expectativa, Maria Teresa e Lucinda Oliveira foram iguais às suas mães, nascidas e criadas para olhar por pais, irmãos, maridos e filhos.
Mas houve um detalhe que lhes mudou a vida para sempre: ambas trabalharam fora de casa. Uma na indústria têxtil da Covilhã e outra numa fábrica de máquinas de costura, na Alemanha.
Uma vez no mercado de trabalho, nota a socióloga Anália Torres, as mulheres nunca mais quiseram olhar para trás.
Com a conquista do ordenado veio a da independência. E a certeza de que uma vida melhor passava por estudar. “Portugal é o país com maior salto de escolarização entre gerações. Elas são 6 vezes mais licenciadas do que as próprias mães. Há 7 anos de diferença de escolaridade entre portugueses de 69 e de 29 anos. Nenhum outro país europeu é assim. Geralmente, a diferença é de um ou dois anos.”
IGUALDADE, O EQUÍVOCO
A filha de Lucinda, Paula Peres, 48 anos, chegou a ter escritório de advogada em Viseu.
Agora, faz parte dos mais de 800 mil desempregados portugueses. Mas nem por isso questiona a utilidade de um diploma.
“Com uma licenciatura, tenho a possibilidade de me candidatar a outro tipo de emprego ou aceitar os que exigem menos habilitações. O contrário não acontece.” Uma dedução prática, com correspondência na evolução sociológica do País: “Mais escolaridade significa melhor salário.
A correlação é linear e o discurso sobre canalizadores que ganham melhor do que os doutorados é ilusório”, afirma Anália Torres, coordenadora do departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, contrariando o argumentário fácil de que não adianta investir na diferenciação académica.
Obrigadas a competir num mercado de trabalho que continua a tratar melhor o género masculino, as mulheres decidiram apostar na qualificação para acabar com as desculpas. Em apenas dez anos, duplicou o número de portugueses com ensino superior. Elas já representam 61% do total. “Em termos de emancipação, a escolarização foi a área onde mais e mais rapidamente se evoluiu”, nota Sandra Ribeiro.
Avós sem qualquer grau de ensino deram lugar a filhas e netas com licenciaturas e pós-graduações bastaram oito anos para duplicar o número de doutoradas.
Mas nem por isso acabaram as desigualdades.
O ordenado médio de um homem doutorado ronda os 2 400 euros; o de uma mulher, os 1 600. Para o mesmo tipo de tarefas, elas ganham, em média, menos 30 por cento.
Até 2000, as diferenças salariais eram justificadas com a menor escolarização feminina. Agora que a situação se inverteu, as explicações, alerta Anália Torres, responsável pela criação de uma cadeira de sociologia de género em Portugal, tornaram-se mais difíceis. “Lembro-me de ouvir que as desigualdades entre homens e mulheres acabariam quando o problema da literacia se resolvesse. Mas, à medida que aumenta a formação, aumentam também as diferenças salariais. A escolaridade não resolveu o problema da igualdade.”
MUITO LETRADAS, POUCO PODEROSAS
Nos laboratórios da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, na margem sul do Tejo, observam-se tubos de vidro, testam-se reações químicas. A maioria das experiências é feita por mulheres. Mas os gabinetes onde se tomam decisões só têm homens.
“Em Portugal, 65% dos universitários são mulheres. Dessas, apenas 20% chegam a catedráticas. Vão-se perdendo como se houvesse um cano furado e nesses furos só elas coubessem.” Especialista em Engenharia do Ambiente, Rosa Paiva está na direção da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas (AMONET), um grupo criado depois de perceberem que as notas eram sempre decididas por elementos do sexo masculino, embora as equipas de investigação fossem sobretudo femininas. “Em 2003, a comissão de avaliação das licenciaturas tinha 13 homens e zero mulheres, quando, na área do Ambiente, elas representam 60% do total. Em Química, são 70%, e as comissões tinham 18 homens para zero mulheres.” Casos como este mostram como a conquista da maior parte das áreas do Ensino Superior não teve equivalência nas estruturas do poder. Uma equipa do Centro de Investigação Media e Jornalismo examinou fotografias e textos publicados sobre as intervenções na Assembleia da República. O objetivo, explica Teresa Flores, era analisar as representações mediáticas das deputadas. “A voz das mulheres é anulada, tanto na imagem como no discurso. Por vezes, estão no centro do olhar, mas não no centro da ação política. Há uma invisibilidade ou uma desvalorização na forma como aparecem.” Nos órgãos de soberania, como nas universidades, resume Ana Cabrera, investigadora do mesmo grupo: “Mais de 70% das deputadas são licenciadas e 8% pós-graduadas. Estão muito preparadas do ponto de vista técnico, mas são secundarizadas.
Isto reflete o que se passa na sociedade portuguesa. No poder, as mulheres não deram salto equivalente ao da literacia.”
QUEM LIMPA?
Resta apenas uma explicação para o afastamento das mulheres dos órgãos de decisão: o tempo exigido pelos afazeres domésticos, raramente partilhado com os companheiros.
Tendo das maiores taxas de feminização universitária e laboral, Portugal está entre os piores na divisão de tarefas.
“As mulheres foram capazes de ocupar o espaço masculino, mas os homens não fizeram nenhum movimento em sentido inverso.
Não há maneira de resolver isto sem maior partilha”, defende Anália Torres.
“A mulher aparece socialmente como menos disponível, por ser a principal cuidadora da família, não como menos competente.” Quando questionados sobre as lides caseiras, alguns estudantes da Universidade da Margem Sul enumeram, sem preconceito, tarefas como aspirar, limpar o pó ou fazer a cama. Mas o pai da empresária Maria da Graça, José Correia, 77 anos, admite que na sua juventude teria vergonha de responder à pergunta. “Naquela altura, os homens sentiam-se inferiores se tivessem de colaborar em casa.” Aos 15 anos, o filho adotivo de Maria da Graça ainda tem dificuldade em aceitar que os livros fazem mais falta do que a bola. Mas registou o exemplo materno.
Entre reuniões e horários loucos, a empresária sente o peso de ser o único sustento da casa. Daniel conhece de cor a lição do sucesso: “A minha mãe consegue, porque estudou muito.” Maria da Graça orgulha-se desta explicação, que se tem esforçado por transmitir ao filho. Mas gosta de lhe acrescentar outra conquista: a da liberdade. “A vida que tenho foi a que eu escolhi. A grande diferença entre mim e a minha mãe está no poder de optar. Ela não o teve.” Foi esta a vida que Maria da Graça escolheu e não a trocava por outra. Como ela há mais 770 mil portuguesas. Todas as que tiraram um curso superior.
Lucinda deixou a escola, depois da terceira classe, mas tem uma filha advogada.
Maria Teresa também não completou nenhum grau de ensino, mas criou uma licenciada e empresária de sucesso.
Representam uma realidade que mudou a vida portuguesa. Um curso, um ordenado, uma independência passou a ser o lema da maior parte das mulheres.