GUIA ESSENCIAL DAS MUDANÇAS
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Em todo o País, 240 escolas do 1.º ciclo já não abrem as portas. Os seus alunos vão ser transferidos para os centros escolares mais próximos.
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As escolas passam a decidir a duração dos tempos letivos e a sua distribuição semanal.
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Serão reforçadas as horas de aula das disciplinas fundamentais – Língua Portuguesa e Matemática – com mais 45 minutos por semana.
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História, Geografia, Ciências da Natureza e Físico-Química terão também mais carga horária.
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A Educação para a Cidadania deixa de estar isolada, para ser abordada, de forma transversal, nas outras áreas curriculares.
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A Educação Visual e Tecnológica, do 2.º ciclo, foi transformada em duas disciplinas, mas o programa será o mesmo.
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Pela primeira vez, haverá exames finais para os alunos do 4.° ano. O resultado contará 25% para a sua avaliação.
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Os alunos do 6.º e do 9.º ano também terão de demonstrar os seus conhecimentos de Matemática e Português, em provas que contribuem com 30% para a nota final.
É uma encarregada de educação presente na vida escolar dos três filhos. Paula Ferreira, 47 anos, é também presidente da Associação de Pais da Escola Professor António Pereira Coutinho, em Cascais. Com o marido, Mário Ferreira, 57 anos, é ainda um apoio precioso nos trabalhos de casa. Mas isso já gerou equívocos – afinal, Beatriz, 11 anos, teve de explicar aos pais as novas terminologias gramaticais: sujeito e predicado passaram a ser forma nominal e forma verbal, e os pronomes chamam-se determinantes.
O filho mais novo, Tomás, entra agora para o 4.° ano e, no fim, vai fazer exame. “Mas o grau de dificuldade é muito elevado. Estão a utilizar as crianças para avaliarem o sistema educativo e, no fundo, os docentes”, argumenta Paula Ferreira.
Há ainda outras preocupações. João Oliveira, 42 anos, vice-presidente da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas, e a sua mulher, Odete, 41 anos, casal com sete filhos, todos rapazes com idades compreendidas entre os 4 e os 14 anos, apontam a quantidade de crianças por sala – “Ter 26 ou 28 alunos numa sala faz toda a diferença.” E registam, também, a falta de autoridade dos professores, combinada com a desresponsabilização dos pais perante a escola. “Querem ser amigos dos filhos e esquecem-se dos deveres”, concorda o casal.
A 300 quilómetros, em Vila Nova de Gaia, o cenário é parecido. Maria José Salgueiro, 45 anos, diz que passa mais horas na escola do que muitos alunos ou professores. A EB1 das Devesas, na qual é presidente da associação de pais, tornou-se numa espécie de sua segunda casa – depois de, durante anos, ter trabalhado numa editora como orientadora de projetos escolares e livros para crianças. Agora, dedica-se em exclusivo à educação dos quatro filhos. Em vésperas de um novo ano letivo, também tem muitas dúvidas sobre as mudanças anunciadas. A começar pelas novas metas curriculares, “necessárias e corretas, para estabelecer objetivos, mas demasiado cheias e com algumas coisas incompreensíveis”. Maria José dá o exemplo da filha, Matilde, de 8 anos, que vai agora iniciar o 3.° ano. “No Português, uma das metas é que os alunos consigam ler 110 palavras por minuto. É um preciosismo que não entendo. Primeiro, porque não estou a ver o professor de cronómetro em punho; e, depois, porque prefiro que ela leia apenas 50 palavras, mas compreenda o que está a ler.” Também a Matemática do 3.º ano, em que os alunos já vão começar a trabalhar com frações, matéria que só era lecionada no 5.º ano, deixa-a apreensiva. Para Maria José Salgueiro, “com tanta especificidade de objetivos, e em turmas de 30 alunos, as metas vão ser ainda mais difíceis de atingir”.
São apenas alguns exemplos das inquietações dos pais, que já tinham escutado o grito de alerta que foi O Ensino do Português, livro de Maria do Carmo Vieira, 60 anos, professora de Língua Portuguesa desde 1974, lançado no final de 2010. A especialista chegou a ser ouvida no Ministério da Educação, no início deste ano. “Tiraram imensas notas, apontaram tudo o que eu disse…” Mas, quanto a resultados, nada. Do que se queixa? Ela conta.
O FRENESIM DA AVALIAÇÃO
A indignação sente-se-lhe no olhar, na voz, nas palavras. Maria do Carmo Vieira deu aulas em diversas escolas – nas secundárias de S. João do Estoril, Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, e Marquês de Pombal, no Restelo. “Esta foi uma boa escola, mas depois cedeu à facilidade. Isso deu cabo de muitos bons professores e dos alunos, que foram as principais vítimas.”
Após o primeiro desabafo, o diagnóstico: “Vivemos num tempo em que tudo o que é difícil é afastado. Só que, assim, a elite será sempre a elite. Estamos a impedir a mobilidade dos mais desfavorecidos.” A professora não dobrou e recusou-se a lecionar esses programas, essa “avalancha de textos pragmáticos”, de rótulos de garrafas e receitas de culinária. “Nos testes, pergunta-se-lhes o que quer dizer q.b. numa receita. Mas um aluno que domine a língua e saiba pensar pela sua cabeça não sabe isto?”
E Maria do Carmo Vieira continua, insurgindo-se contra a escolha de notícias sensacionalistas como exemplos de textos informativos, da Casa Pia ao Big Brother (BB). “Os alunos eram convidados a ir ver o BB para aprenderem a fazer um regulamento. Como é possível ir-se buscar a mediocridade, quando devem conviver com o que é belo? Se eles aprendem pelo exemplo, então o exemplo tem de ser o melhor. Não entendo como é que a escola e a comunidade se conformaram com isto.”
Nem as anunciadas novas metas curriculares lhe trouxeram paz de espírito. “Tudo tem de ser avaliado, agora é o frenesim da avaliação, um disparate de descritores de desempenho. Até a leitura, no 1.° ciclo, vai ser medida pela velocidade. Mas isto não é um absurdo?” Além de que, neste ano letivo, vai fazer-se tudo isto em turmas maiores. “Não há diferença numa turma com 21 ou com 30 alunos?”, indigna-se a professora, para depois concluir: “Afinal, o ministro é que não tem grande rigor matemático.”
POLÉMICA ACESA
Maria do Carmo Vieira, é claro, não está só neste profundo mal-estar. No início do verão, foi conhecida a troca de galhardetes entre a escritora Teolinda Gersão e a linguista Maria Helena Mira Mateus, depois de a primeira ter publicado a sua Declaração de Amor à Língua Portuguesa, no jornal Público. Os exemplos citados por Teolinda Gersão são elucidativos. “No ano passado, quando se dizia ‘ele está em casa’, ‘em casa’ era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. Em ‘O Quim está na retrete’, ‘na retrete’ é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos ‘ela é bonita’. Agora, ‘bonita’ é uma característica dela, mas ‘na retrete’ é característica dele? No ano passado, havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar, etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um ‘complemento oblíquo’.”
Há mais questões que preocupam Teolinda Gersão. “As crianças devem ser levadas a escrever e não a responder a perguntas de cruzinhas ou do tipo ‘faz corresponder as frases da coluna A às da coluna B’.” Defensora do ato de memorizar, insiste em que não se trata de uma fórmula maquinal e acéfala, mas de apropriação inteligente de um conhecimento. “Afinal, se os jovens e as crianças sabem de cor todas as letras, em inglês, das músicas de que gostam, porque não haverão de memorizar também, por exemplo, alguns poemas, na sua própria língua?”
Maria Helena Mira Mateus considerou tudo isto como “disparates” transmitidos a Teolinda Gersão “por um neto estudante”.
TLEBS DISSIMULADA
Nem todos partilham desta visão negra do ensino da língua portuguesa. Edviges Ferreira, 56 anos, presidente da Associação de Professores de Português (APP), faz um retrato muito mais simpático. “Este novo programa pretende ser mais abrangente”, justifica. No seu entender, não é tão dirigido como os anteriores – o que quer dizer que os professores podem fazer mais opções nas obras que escolhem para estudar nas aulas, e que isso também inclui, obviamente, o texto não literário. Diz Edviges Ferreira que “um programa mais prático é mais valioso” e que “as vozes discordantes não o conhecem”. No Secundário, exemplifica, só o 10.º ano não tem literatura.
Provocadora, a presidente da APP vai mais longe: “Para saberem o que é bom, os alunos têm de contactar com textos bons e maus, e cabe ao professor demonstrar as diferenças.”
Favorável à inclusão de mais autores contemporâneos nos programas de Português – “um José Luís Peixoto, por exemplo” -, Edviges Ferreira subscreve o novo dicionário terminológico, designação atribuída à TLEBS (Terminologia Linguística do Ensino Básico e Secundário), ao deixar de estar suspensa e ser recuperada. “O problema”, diz, “é de outra ordem: por exemplo, os alunos do 8.º ano vão aprender a terminologia nova, enquanto os do 9.º ainda aprendem a antiga. Só no 10.º é que lhes será ensinada.”
Também adepta do Acordo Ortográfico, a presidente da APP espera que as alterações sucessivas terminem. “Não se faz outra coisa que não seja andar a mudar documentos, manuais, e isso perturba as pessoas, sempre a receberem regras novas todos os anos.”
‘GUERRA’ DE MATEMÁTICOS
Na Matemática, a história não é mais simples. Para já, as recém-divulgadas metas curriculares dividem a Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) – mais de acordo com a linha seguida por Nuno Crato, seu antigo presidente – e a Associação de Professores de Matemática (APM).
A SPM considera-as “um contributo marcante”. A APM destaca-lhes “as consequências negativas”. Refere “uma lista de objetivos não articulados, desatualizados e escritos numa linguagem pouco rigorosa e nem sempre clara”, como se lê num comunicado que divulgou. A SPM diz exatamente o contrário. “Os descritores de metas apresentados no documento são claros, passíveis de uma avaliação objetiva e respeitam, em grande parte, o programa em vigor, incluindo todos os seus aspetos essenciais.”
“As metas são uma ferramenta de apoio aos professores, não estão contra eles”, insiste Miguel Abreu, 45 anos, presidente da SPM. Satisfeito por se recuperarem instrumentos “valiosos”, como os exames, para este matemático, professor do Instituto Superior Técnico, um dos grandes problemas da nossa escola é “fazer pouco pelos alunos com mais talento”. Ficam alguns conselhos para os pais: “Os alunos não podem aprender só aquilo de que gostam.” E ainda: “Não fiquem contentes se os vossos filhos só tiverem ‘bom’ a Matemática, no 1.º ciclo.” Tudo o que se aprende nessa primeira fase da escola, argumenta, será usado mais tarde. “E se for bem aprendido, depois não terão dificuldades.”
As demais disciplinas não passam ao lado de todas estas divergências e equívocos. Os professores de Inglês querem maior carga horária. Os de História também. Nos últimos anos, reduziram-se as horas para esta disciplina, com o mesmo programa. Agora, vão ter mais 45 minutos semanais. “Parece-nos claramente insuficiente”, reclama Miguel Barros, 47 anos, da Associação de Professores de História, defendendo que o ensino tem de criar espíritos críticos e ajudar os alunos a refletir. “Às vezes, há versões diferentes sobre alguns acontecimentos, mas isso até é uma mais-valia. As coisas não são a preto e branco e é bom que os alunos percebam isso. Não há verdades absolutas.”
PESSOA ‘CENSURADO’
Outras vozes críticas se levantam. Oiça-se Daniel Oliveira, um dos fundadores do Bloco de Esquerda, que, por várias vezes, levou o tema da Educação à sua coluna semanal, no jornal Expresso. “Crato é o mais ideológico de todos os ministros. A sua escola é a que avalia e castiga, secundada por um exagero de exames. Esquece-se de que a escola deve servir para ensinar e educar para a vida.”
O último alvo do colunista foi o anúncio de um ensino profissional para quem chumbe mais de duas vezes, a partir do 6.º ano. Em comunicado, Nuno Crato apressou-se a esclarecer que esta via vocacional para os maus alunos afinal não será obrigatória e terá sempre de contar com a autorização dos pais. “Ao apresentá-la como um castigo para quem reprova, está-se novamente a estigmatizá-la, a desqualificá-la”, afirma Daniel Oliveira. “Por isso digo que a escola de Crato é facilitista – consigo própria, claro. Porque desiste dos maus alunos.”
São palavras que nos fazem voltar a Maria do Carmo Vieira, a indignada professora de Português. “No Clube dos Poetas Mortos [filme de 1989, no qual um docente de um rígido colégio interno convida os alunos a pensarem por si], o professor rasgava aqueles manuais. Isto também é tudo para rasgar”, insiste. No 1.° ciclo, aponta, não há um cânone de autores – “onde devia estar uma Sophia de Mello Breyner temos, antes, a Isabel Alçada. Mas a Sophia é que devia ser dada. Mais tarde, no Secundário, quando passam filmes, como dizia uma colega minha, têm de ter cenas de sexo, porque os alunos gostam de sexo. Como?!”
Ninguém cala Maria do Carmo Vieira: “Num manual de cidadania, estabelece-se o timbre de voz, o número de palavras por minuto, leem-se coisas como ‘abra a boca e mexa os lábios’. Querem coisa mais risível?” Outro exemplo: “N’Os Lusíadas, não se dá o Velho do Restelo, que é quem ousa criticar o rei, um episódio essencial.” Mais? Em lado algum do programa de Português se fala de morte – foram retirados os poemas de Pessoa que a abordam. “Ignoram que valorizamos a vida porque sabemos que há morte.”
Um breve silêncio e a professora volta à carga: “Como é que não há de haver abandono escolar se não se lhes ensina nada? Isto é estupidificar as pessoas!”