No antigo e simbólico Cinema São Jorge, em Lisboa, no lugar dos cartazes de estreias há agora um cartapácio singelo. “Traga bens não perecíveis: leite, enlatados, cereais, arroz, massas, azeite, produtos de higiene e de bebé”. Em vez das habituais sessões de espetáculos e filmes, o horário é adaptado à tragédia do setor: “Recolha das 10 às 22 horas”.
Foi ali colocado pela União Audiovisual, e, apesar de ser um sinal da fraternidade numa Cultura em crise, é o espelho de um setor que anda de mão aberta a pedir apoios. Trata-se de uma organização, surgida pela pandemia para apoiar um setor que fechou cedo demais e manteve uma atividade aos solavancos ao longo dos últimos 10 meses.
O ator João Nunes Monteiro e a técnica Catarina Côdea, com vínculos laborais precários, não chegaram ainda ao ponto de ter de recorrer a tal ajuda. Porém, andam há meses a fazer contas aos apoios sociais de 438 euros que couberam a quem trabalha no setor, a partir de abril de 2020 após muitos protestos. E essas contas são sempre de diminuir, nunca de somar.
“Consegue-se fazer muito pouco [com tal montante]. A maior parte das pessoas [artistas e técnicos do espetáculo], que vivam em Lisboa, nem a renda consegue pagar”, apontou Catarina a Marisa Matias, que foi ao encontro dos dois profissionais ao São Jorge, esta segunda-feira. “Menos de 300 euros? Sim, Sim. Há quem fique com 90 euros por mês”, respondeu, quando a candidata presidencial quis saber o saldo final, pagos os compromissos fiscais e à Segurança Social.
Se no caso de João Nunes Monteiro, por ter estado ligado a um espetáculo do D. Maria II que não foi a cena, ainda houve lugar ao pagamento dos meses ligado a tal projeto, já com Catarina Côdea, cujo primeiro apoio que teve em abril de 2020 veio da Gulbenkian – durante muitos anos antes e após o 25 de Abril o verdadeiro ministério da Cultura no país – o cenário é pior.
Num São Jorge vazio, que o torna ainda mais frio, e já depois de 10 minutos em que questionou tais profissionais, Marisa Matias apontou baterias à ministra da Cultura. “Não pode poupar dinheiro à conta de compromissos que já estavam assumidos. Em segundo lugar tem de fornecer os apoios para as pessoas sobreviverem. São duas tarefas mínimas num contexto que já é marcado pela grande precariedade e que se agravou muito com a pandemia”, disse a bloquista, para quem “há claramente uma falta de resposta do setor da Cultura”.
“Foram dos primeiros a quem se pediu para parar, foram os primeiros a quem se pediu para pararem a sua atividade. Os apoios tardaram muito ou foram claramente insuficientes. Vejo que há um reforço de apoios agora nesta área, que não chega ainda a toda a gente. São montantes ainda insuficientes e tardios”, disse, frisando que para que um “confinamento corra bem é preciso apoiar as pessoas”.
“As pessoas trabalhavam, viram os seus espetáculos cancelados. Mas já havia uma precariedade antes que faz com que as pessoas cheguem agora, a este momento, e tenham que estar a ser apoiadas por colegas e redes de solidariedade para ter comida em casa. Isso não pode acontecer”, apontou Marisa, que rejeitou ter agora um tom menos reivindicativo que em 2016, quando correu pela primeira vez a Belém.
“Não sei onde está a moderação. Continuo com o mesmo empenho [que em 2016]”, disse a bloquista que, a meio da noite, num comício virtual a partir do Parque Mayer, em Lisboa, com a presença de Pilar del Rio e Lúcia Moniz, veria o cantautor e escritor brasileiro Chico Buarque, Prémio Pessoa 2019, a manifestar-lhe apoio.
No renovado cineteatro Capitólio, embalada pelo apoio do setor, Marisa acabou por responder a André Ventura, como ainda não o tinha feito até agora, devido às declarações do líder do Chega, na última semana, que motivaram a ação de protesto nas redes sociais #vermelhoemBelem
“Quando um homem insulta uma mulher, chamando-lhe ‘coisa de brincar’ por usar batom vermelho, tem a resposta que merece: as mulheres não são ‘coisa de brincar’, são gente de lutar. Estas mulheres já começaram a derrotar quem as quer derrotar, mas ainda vão derrotar mais”, disse.