“O sapo tem olho grande, mas vive na lama”.
O dito popular que enfeita a placa de madeira pendurada na parede de azulejos poderia soar a piada de campanha presidencial no dia em que Ana Gomes, de passagem pelo Mercado Municipal de Matosinhos, se atirou a quem acusa de usar as eleições para chafurdar no insulto e usar temas que estigmatizam e dividem os portugueses. A lojista Maria José, 67 anos, máscara made in República Checa a tapar-lhe a boca, garante, porém, que a frase é apenas dedicada aos invejosos, apesar de assumir certa repulsa por candidato. “O André Ventura nunca teria o meu voto, é um malcriadão, parece uma fera venenosa”, assume. Contudo, a vendedora de plantas não se apoquenta com o ato eleitoral de dia 24: vota desde as primeiras legislativas e vai fazê-lo de novo agora, sem receio de extremismos. “Concordo com a realização de eleições, mas escolho pessoas, nunca partidos. Nas primeiras, votei Sá Carneiro. Agora estou satisfeita com o Marcelo”, explicou, antes de se cruzar com Ana Gomes, a quem também dirigiu amáveis palavras. “Esta também serve”.
A candidata chegou ao mercado quando faltavam minutos para o meio-dia, após uma caminhada de meia-hora pelas ruas que o separam do edifício da autarquia. Vinha acompanhada da presidente do município, a socialista Luísa Salgueiro, mas, no primeiro dia de novo recolhimento domiciliário, a azáfama era de maré baixa quando comparada com os tempos em que aquele espaço garantia aos políticos do PS banhos de multidão. “Acompanharei todos os candidatos que me pedirem para vir aqui, exceto André Ventura”, explicou à VISÃO a autarca a que um eurodeputado do seu partido um dia chamou…“cigana”. Sem se desviar da sua posição institucional ou revelar o seu voto, Luísa Salgueiro confessou-se orgulhosa de ter ao seu lado uma “mulher lutadora”.
Pescada entre polvos
À entrada, Ana Gomes, recebeu um saco do mercado “rival” de Angeiras com avental dentro, e avançou para os primeiros mimos. Não lhe correu mal. Ouviam-se galináceos alvoraçados em fundo, viam-se tachos e panelas a fumegar e uma vendedora disposta a fazer coro com os ataques ao candidato do preconceito, na versão da sua adversária à esquerda. Só na Alemanha nazi, aludiu Ana Gomes, é que judeus, negros e ciganos foram alvo de leis que os excluíram da cidadania. “Excluir pessoas é uma receita para a violência”, acrescentou, logo secundada pela feirante. “Ele é como o Hitler”, concordou a mulher, dispondo-se depois a cantar o hino popular da terra onde, às tantas, se pede “Ó Senhor de Matosinhos / Ó Senhora da Boa Hora / Ensinai-nos os caminhos / P’ra sairmos daqui p’ra fora”.
Ana Gomes saiu dali para fora à cotovelada, mas com afeto.
Passou pelos galináceos, desceu as escadas e foi encostar-se às bancas de robalos e mariscos. Se fosse um peixe, ela escolheria ser pescada, essa mesma “que antes de ser já o era”. A conversa deu garçola e o ensejo à candidata para falar de “um cherne que não deixou boa memória”, uma indireta a Durão Barroso, assim batizado pela mulher numa longínqua campanha eleitoral, às “custas” de Alexandre O´Neill. De tentáculo em tentáculo, Ana Gomes referiu-se também aos “polvos que estrangulam o desenvolvimento do País”. Emocionada, receberia depois, das mãos de uma jovem, um saquinho de sementes de cravos “para plantar quando chegar ao Palácio de Belém”. Chamava-se Catarina e Ana Gomes prometeu-lhe semeá-los de todas as cores, “em nome da liberdade e da diversidade”. Só não tirou a máscara para deixar ver os lábios pintados de vermelho, em solidariedade com a candidata Marisa Matias, alvo das excitações comicieiras de André Ventura. “São intoleráveis os ataques feitos com base em conceitos machistas”, referiu. “Os homens que se cuidem!”, gritou uma peixeira, enquanto Ana Gomes reforçava a necessidade de levar uma mulher e o “vermelho a Belém”.
A visita ao mercado teve cantorias, alegorias e metáforas de sobra.
Mas também houve quem “rosnasse” à passagem da candidata. “Distância, distância!”, barafustavam ao aglomerado de jornalistas que seguia a candidata, a lembrar o cumprimento das regras. O zunzum ecoara desde cedo entre bancas e fizera-se ouvir, uma e outra vez: “Por lei, isto não é permitido: fecham os restaurantes e tudo, mas pode andar por aí esta porcaria, esta merda!”, desabafou uma cliente, em passo largo, a dois metros da candidata.
No final da visita, Ana Gomes seria confrontada com a polémica: afinal, como justifica estar em campanha num País quase confinado e com mais de 10 mil infetados por dia? “Penso que respeitámos as regras, se me demonstrarem que não e que errei serei a primeira a corrigir. Todas as pessoas estavam protegidas com máscaras, não houve toque físico a não ser de braços e tentámos estar à distância”, assumiu, a franzir o sobrolho. “Estes portugueses precisam de apoio e eu estou aqui no meu trabalho de candidata e de política junto dos portugueses que estão a trabalhar nestas condições para que o resto do País possa confinar. Sim, é minha obrigação estar junto dos portugueses, tanto os que estão em casa a confinar, como os que têm de estar aqui a trabalhar”.
Ana Gomes ainda voltou aos corredores do mercado antes das despedidas e para mais umas imagens televisivas. E às voltas lá acabou por ir dar aos azulejos com a placa de madeira onde o sapo e a frase do início desta história reinava. Alertada, leu-o e disse: “Infelizmente, faz-me lembrar qualquer coisa…”.