É certo e sabido que é mais o que os separa do que o que os une; mas, afinal, se dúvidas legítimas existiam sobre se António Costa e João Cotrim de Figueiredo concordam em alguma coisa, estas ficaram desfeitas, no frente a frente na TVI, esta noite. Lá bem, bem, bem no fundo até conseguem evitar uma conversa de surdos. Os dois mantiveram um tom tranquilo ao longo de todo o debate, que lhes permitiu ter uma conversa esclarecedora. Ouvimos, pela primeira vez, o líder da Iniciativa Liberal (IL) a admitir que o País cresceu nos últimos seis anos e a não rebater a proposta do PS de uma semana de trabalho com 4 dias. Já o secretário-geral socialista confessou-se liberal enquanto falava precisamente na reorganização laboral e não se opôs às três condições impostas por Cotrim de Figueiredo para se falar de regionalização.
Crescimento da economia
Não é novidade que estes opostos não se atraem de maneira alguma quando se fala nas curvas da economia. João Cotrim de Figueiredo deu o pontapé de saída a acusar Costa de fazer “propaganda socialista” com o crescimento económico médio de 2,8% entre 2016 e 2019, que, não negou, mas que quis enquadrar: “o que não está dito é que [este crescimento] veio a seguir à recessão”. O liberal defendeu, levantando slides uns atrás de outros, que Portugal é dos países menos produtivos da Europa, dos que menos recuperou desde o início da pandemia e com menos perspetivas de dar a volta por cima. “Há 11 países a crescer mais do que Portugal” e “é este o nosso campeonato”, referiu Cotrim de Figueiredo, que acredita que os 2,8% de Costa “correspondem na prática a uma estagnação”.
“Se olharmos para os 15 anos anteriores o país cresceu 0,4 por cento. Se isto não significa termos avançado não sei o que significa virar a página da estagnação”, apontou António Costa. Todavia, a retaliação numérica não se ficou por aqui: segundo o primeiro-ministro, Portugal cresceu, no ano passado, 4,6% e “as previsões mais conservadoras apontam para 5,8% este ano”. “É preciso continuar a crescer mais, claro, mas com uma boa receita – com qualificação e inovação. A boa notícia é que, nestes anos, ultrapassámos os países do leste, mas também a Alemanha e a Dinamarca, a evitar o abandono escolar; e em inovação cientifica ultrapassámos a Itália e o Luxemburgo”.
Não convenceu totalmente o adversário: “a inovação não se compadece com o sistema que existe em Portugal”, retorquiu Cotrim de Figueiredo, que sublinhou ainda que “a população mais qualificada de sempre está a emigrar”.
Sistema fiscal
No capítulo fiscal, a conversa andou à volta da promessa socialista para o desdobramento dos escalões de IRS (como estava escrito no chumbado Orçamento do Estado para 2022, com que Costa tanto acena), beneficiando as famílias com rendimentos até 80 mil euros anuais, as que têm filhos e os jovens. Falou-se também da proposta liberal para uma taxa única – atacada de imediato por Costa, com o argumento de criar desigualdades entre ricos, remediados e pobres.
“Vamos então falar do José, que ganha 800 euros”, propõe Cotrim, já a remexer na papelada que tinha pela frente, em busca de mais gráficos. “Hoje, vou bater o recorde de slides”, admite.
“Ainda bem que não são taxados”, ironiza Costa.
“A empresa do José quer aumentar o seu salário para 900 euros”, continua o líder da Iniciativa Liberal, para dizer que, apesar desta subida, “o Estado fica-lhe com 47% do aumento”. “Não compensa trabalhar para subir na vida, em Portugal”, conclui, alargando depois a conversa à Segurança Social.
“O Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social vai estar esgotado em 2050. Vamos ficar parados? Os descontos para Segurança Social são autênticos impostos. As pessoas são obrigadas a descontar e não podem ir buscar esse dinheiro em qualquer altura. É fundamental começar a transição para pilares de capitalização […] Não estamos a inventar a roda. Existe um sistema parecido no Reino Unido e na Suécia – e funciona. O Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social já hoje tem 20% dessa carteira investida na bolsa. Em empresas como Louis Vuitton ou como a Shell. A Segurança Social está a pôr em risco a sustentabilidade?”
António Costa não poderia estar mais em desacordo com aquilo que chama um “sistema que mina a segurança e a estabilidade da Segurança Social”. Este deixaria “desprotegidas as poupanças de quem está a contribuir hoje e também de quem está a receber pensão”, diz o governante, apresentando como exemplo a grande depressão norte-americana, para rematar a conversa.
Semana de trabalho
Questionado, depois, sobre a proposta do PS que coloca a hipótese de uma semana de trabalho com apenas quatro dias, Cotrim fala em “irrealismo” e argumenta com a falta de mão de obra que vê na rua, em todos os setores. “Num cenário destes, dizer que se pode trabalhar 30 horas é prejudicial” e “isto não traria grande vantagem à economia”, diz o líder liberal.
“Mas quem é que falou em 30 horas?”, pergunta Costa, que clarifica querer “abrir o debate” na sociedade. Até “podemos trabalhar quatro dias por semana, mais uma hora por dia”, surpreende Costa. “Nisto eu também sou muito liberal”.
Regionalização
A proposta de avançar com a regionalização está incluída no programa do PS, que, segundo explicou o primeiro-ministro, deve ser avaliada até 2023 e, mediante garantias de qualidade e de que a despesa permanece a mesma, ser sujeita a referendo em 2024.
Mas Cotrim de Figueiredo não percebe “porque é que o calendário já está definido, sem se saber que decisões passam para as regiões; se toda a parte financeira [das administrações locais] corresponde
à do Estado central e sem ser conhecido o mapa”. “A IL não aceita que uma decisão desta natureza seja discutida por conveniência”, declarou Cotrim, sem que Costa tenha voltado a tocar no assunto para defender o seu calendário.