Vindo da Madeira, no périplo que a caravana socialista dedicou às ilhas, António Costa avançou pelo continente, na tarde desta quarta-feira, com uma outra dinâmica e um ar bem menos circunspecto e pesado, do que aqueles que apresentou nos primeiros três dias no terreno – ainda que tal estivesse integrado num determinado guião, estabelecido pelo partido para transmitir a gravidade do momento político. Aquela mutação na atitude ocorreu com a entrada na caravana de Fernanda Tadeu, a mulher do líder socialista que, à mercê de uma certa espontaneidade e vivacidade, acabou por funcionar como uma espécie de elixir.
Num morangal, da empresa PaxBerry, em Beja, a meio da tarde, Costa acabou por libertar-se daquela imagem de quem pode mostrar a todo o momento um dossiê do Orçamento do Estado de 2022, que eventualmente carregue consigo, e deixou-se levar pela ligeireza e agilidade da mulher, que se mostraram depois eficazes no primeiro banho de rua com que o secretário-geral socialista contou, a Sul.
Mais imigração, como aquela que trabalha para os irmãos Pereira
“Ah, também tenho de ter isto lá por casa”, assinalou, risonha, Fernanda Tadeu, numa extensa estufa de morangos, quando viu o método inovador de produção em suspensão de tal fruto, na propriedade dos irmãos Pereira, que fica nuns arredores de Beja onde as suspensões dos carros sofrem para lá chegar. O tom da mulher de António Costa ajudou logo a desmontar uma certa formalidade que acabara de ser estabelecida meia hora antes, com o argumento da pandemia, pela caravana para aquele momento – a par da queda, em cima do piso enlameado, de um operador de câmara de televisão, que provocou uma risada geral.
Acabou por ser Fernanda Tadeu a fazer Costa libertar-se, quando deu um passo em frente para enfiar-se numa das filas dos morangos, para provar um dos frutos, que segundo Hugo Pereira replicam-se várias vezes ao ano devido a método invulgar de cultivo. “Não estragues. Traz lá um”, respondeu, em tom de desafio, o líder do PS, quando a mulher desatou a saborear um morango, como se de anúncio na TV se tratasse.
Com uma samarra de Vinhais, de pele de raposa, sobre a qual haveria de fazer um certo suspense sobre se seria de origem alentejana, Costa seguiu os passos da mulher e embrenhou-se no morangal, onde a maioria dos trabalhadores é de origem indo asiática, mas que não está ali de forma sazonal – antes pelo contrário, estão de forma permanente. “Mas isso é porque lhes paga bem”, atirou rapidamente Fernanda, para um Hugo Pereira que explicava as condições de trabalho nas estufas e a falta de mão de obra local em determinadas alturas do ano, para uma herdade em que também se produz olival e vinha. A deixa levou António Costa a não só realçar a importância de uma imigração remunerada convenientemente, como a estabelecer uma diferença com aquilo que foi a prática que expôs Odemira há meses.
Para Costa, a longa contratação, com tal nível de salários, “permite uma estabilidade relativamente à mão-de-obra que trabalha” na agricultura, tendo destacado o acolhimento que Portugal mostrou querer dar a quem rume ao País através de acordos de mobilidade, como aquele que foi assinado entre com os Estados da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e ainda outro com a Índia – País de origem de um funcionário que fez questão de tirar uma selfie com Costa. “Temos outros acordos em negociação. Como foi evidenciado nesta empresa, o país precisa de imigração para continuar a crescer do ponto de vista económico”, acrescentou, sinalizando que, o que se passou nas extensas áreas de estufas no Sudoeste alentejano, foi “um problema de habitação” dos imigrantes.
Sousa Real com as orelhas a arder
Entre as declarações sobre a votação dos cerca de 400 mil portugueses que estão em isolamento devido à Covid-19, Costa tentou desviar-se do assunto que marcava a atualidade daquele distrito agrícola – o impacto da demissão em bloco de cirurgiões no Hospital de Beja horas.
Porém, a caminho do final da tarde, assim que rumou à principal artéria pedonal da capital do Baixo Alentejo, para a primeira arruada da caravana no continente, acompanhado pelo socialista que dirige os destinos locais da “Pax Julia”, teve de ouvir daqueles com quem se cruzava – entre um ainda pouco aquecido “Costa vai em frente tens aqui a tua gente” – muitas queixas sobre a unidade hospitalar. Isso, e muitos alertas sobre o risco de dar cobertura às exigências do PAN. “Olhe que eles aqui nem um voto. Nem assim [uma unha], Isso é lá para Lisboa, onde só se come tudo embalado. Que não venha a precisar deles”, atirou um agricultor, com ar de latifundiário alentejano, à saída do café mais antigo de Beja, o “Luiz da Rocha”, horas depois de os dirigentes da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) terem posto o partido de Inês Sousa Real debaixo de fogo. Como fez também o histórico socialista Manuel Alegre, num artigo na imprensa, que quebrou o silêncio que manteve desde que se bateu contra as mexidas no apoio à atividade tauromáquica, exigidas pelo PAN.
Apesar de no debate contra Rui Rio ter admitido que o PAN pode ser aquela bancada que ajude a somar, num cenário de uma vitória magra do PS, Costa tentou dar uma outra leitura às críticas que ouviu: “O que a CAP devia dizer é que se deve votar no PS para o PS ter maioria. Já Manuel Alegre, penso que não criticou nada; disse o óbvio. Disse que é preciso dar uma maioria ao PS, para o PS poder governar com autonomia”.
Mais: “nestes anos, em que governámos em parceira com outros partidos [de que não disse o nome], nunca deixámos de preservar o essencial. Estamos aqui porque não cedemos onde não é para ceder. Diálogo é uma coisa, mas ceder em valores essenciais não é possível”.
A pausa no “Luiz da Rocha” foi maior que o tempo que levou a arruada até ao carro, de onde o motorista de Costa haveria de tirar uma caixa de morangos – das várias trazidas da PaxBerry – para Pedro do Carmo, cabeça de lista do PS em Beja. “Eh pá, pensei que era um queijo”, ironizou aquele deputado. “Ah, pois, que essa barriga não se cria a morangos”, atirou um dos socialistas pendurados na cabeça de um grupo mais enérgico, que, mesmo ficando por ali, daria o mote para, em Faro , o líder do PS desferir um ataque aos antigos parceiros da Gerigonça.
Aliás, ao início da noite, António Costa acusou o toque de que já entendeu que o BE e o PCP mudaram de estratégia à última hora e passaram a puxar pelos galões da autoria da solução governativa de esquerda e a apontar ao PS a culpa pelo fim da mesma. Só que houve uma particularidade: o socialista não mencionou, em caso algum, o nome de tais forças políticas.
“Não venham com desculpas de que queriam afinal negociar o Orçamento do Estado, porque estivemos vários meses a negociar”, deu como versão da crise, apontando o dedo em riste a comunistas e bloquistas, por terem tentando amputar a estratégia socialista. “Não deram sequer oportunidade de prolongar as negociações e tentar melhorá-lo na especialidade, reservando o voto para a votação final. Não. Quiseram logo cortar-nos as pernas ao início e chumbaram o Orçamento logo na generalidade”, atirou, no que parece ter sido algo ensaiado a Sul e que pode vir a subir de tom, ao mesmo tempo que Costa sobe pelo País acima a partir desta quinta-feira.