Não foi um remake do primeiro concurso da RTP, “Quem Sabe, Sabe”, dedicado ao cantor e compositor Jorge Palma, até porque António Variações e Rui Veloso também vieram à liça no hemiciclo.
As primeiras cinco horas de debate sobre a proposta do Orçamento do Estado para 2023 (OE2023) foi mais do que isso. Tratou-se de uma discussão a puxar para o morno, em que António Costa começou por marcar a toada, logo no início da tarde desta quarta-feira, ao citar o autor de “A gente vai continuar”, para justificar que, desde 2015, o PS está no caminho certo e que até 2026 não mudará a linha de governação. As restantes bancadas – à exceção do PCP e do BE, que não estiveram para cantorias – depois tomaram-lhe o gosto e, para provar em como o Excel de Fernando Medina não leva em conta os impactos da crise económica nas carteiras dos portugueses, desataram a puxar pelo reportório de Palma até à exaustão.
Pelas 15 horas, António Costa começou por abrir o debate – que se prolonga por quinta-feira – a realçar que, apesar de a proposta orçamental querer apostar numa diminuição da dívida pública e nas contas certas do Estado, haverá um aumento de investimento, dos rendimentos e uma mexida nos impostos em 2023.
“É com contas certas que asseguramos previsibilidade e estabilidade às nossas políticas, criando, simultaneamente, margem para acorrer às despesas inesperadas”, assegurou, contrariando a oposição que acusa o PS de estar a encapotar uma política de austeridade. Aliás, fez dois anúncios: os bancos terão de negociar créditos e os lucros inesperados serão taxados – inclusive os dos hiper e supermercados.
Segundo o primeiro-ministro, trata-se de uma aposta “nas contas certas” que permitirá ao Governo “dispor da margem necessária para aliviar o impacto da inflação na vida das famílias e na atividade das empresas e do setor agrícola”, a exemplo da estratégia que foi seguida desde 2015 e que será para levar a cabo até 2026, ano das legislativas. “Faz amanhã um ano que, tomando as palavras de Jorge Palma, garanti nesta tribuna, que ‘enquanto houver ventos e mar a gente não vai parar’”, apontou, aludindo à composição “A gente vai continuar – ainda que se enganando no apelido do cantor, ao chamá-lo de “Palmas”.
Ora, para o PSD, o documento não tem qualquer “ambição” para combater o empobrecimento dos portugueses – dos quais “quase 1,5 milhões vive efetivamente em pobreza”.
De acordo com o líder parlamentar social-democrata, Joaquim Miranda Sarmento, a proposta de Orçamento “continua a política de empobrecimento” e “voragem fiscal”, provocando uma “degradação” das respostas do Estado. Ou, como o deputado social-democrata Hugo Oliveira resumiu, parafraseando Palma, um documento que deixa o País “Frágil“. Ainda assim, Oliveira não ficou sem resposta do ex-ministro, agora parlamentar, Tiago Brandão Rodrigues, que acusou o PSD de criticar medidas essenciais, a exemplo do que fez no passado com as energias renováveis ou o apoio aos passes sociais. “Encosta-te a mim“, lembrou Rodrigues (aqui ainda se citava Palma no debate) desafiando a bancada laranja a fazer parte de um amplo consenso. Mais ainda: Brandão Rodrigues fez questão de pegar nas declarações do vice-presidente do PSD, Paulo Rangel, para dizer que, se no fim-de-semana passado sobre o corredor de energia verde entre Portugal e França houve “gritaria”, esta quarta-feira os deputados do PSD “cantam fininho”.
Tal como João Cotrim Figueiredo, o demissionário líder da Iniciativa Liberal, que defendeu que Costa, sendo “alguém que não reforma e não muda nada ao fim de sete anos, só pode achar que está tudo bem“, o Chega também atacou a forma como o Governo pretende fazer face à crise económica causada pela guerra. Se, dentro do seu tom habitual, André Ventura frisou que o OE 2023 é “uma fraude e uma ilusão”, o seu deputado Filipe Melo foi mais enfático – “Deixa -me rir“, atirou o parlamentar do Chega.
À esquerda, a bloquista Catarina Martins recusou ir em cantigas: “Sabe por que é que a Direita faz tudo para falar de tudo menos do OE? É que a Direita faria igual”, disse para Costa, a quem apontou ser o primeiro subscritor de um orçamento que fará com que “quase todos empobreçam”. Refira-se que o líder socialista pautou-se pelo ritmo do BE e atirou: “Esta crise é dificílima e muito dura. É fácil fazer como a senhora deputada fez durante a pandemia: lavou as suas mãos [o BE absteve-se e chumbou os orçamentos desde 2020]. Agora também não esperava a sua solidariedade”.
Aliás, não destoando, o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, já sinalizara antes que o OE 2023 “acelera o empobrecimento dos trabalhadores”; sendo que foi o deputado Bruno Dias a deixar claro que contas de Medina não são música para os ouvidos dos comunistas. “Com este orçamento, a redução da dívida e do défice faz-se por conta da redução do valor real dos salários, reformas e pensões, pela degradação dos serviços públicos e do investimento, pelo agravamento das injustiças e desigualdades”, disse, tentando colocar ali um ponto final neste monocórdia de citações. “Não estando cá o autor para se defender, queria fazer aqui um apelo: Deixem o Jorge Palma em paz que ele não tem a culpa dos disparates que são aqui ditos e feitos“.
Que se diga que a líder do PAN, Inês Sousa Real, também já tinha alertado para um facto do senso comum: “as pessoas estão cansadas de ir em cantigas”. E com razão. É que além de Jorge Palma, António Variações também foi trazido a debate, pelo deputado do Chega, Pedro Pinto, para descrever o plano do PS para o País: “É para amanhã, bem podias fazer hoje, porque amanha sei que voltas a adiar“. Assim como Rui Veloso, pela boca da deputada social-democrata Paula Cardoso, que acusou o PS de, com este orçamento, deixar vir ao de cima o seu “Lado Lunar“.
A estranha vida de Ana
Mas não foi só de canções que viveu este debate, que teve apenas dois anúncios de Costa – de que o Governo vai aprovar esta quinta-feira um diploma que obriga os bancos a renegociarem o crédito à habitação e que, mais à frente, virá ao Parlamento, uma proposta de lei para taxar as empresas com lucros inesperados. Esta discussão no hemiciclo também foi dominada pela vida de uma personagem fictícia, de seu nome “Ana”, como se fosse um daqueles romances escritos, num passado de blogues, a várias mãos.
O deputado laranja e líder da JSD, Alexandre Poço, arrancou com a narrativa: “Ana” é uma jovem de 25 anos, nascida e crescida durante os períodos em que António Costa tem sido primeiro-ministro e feito parte de governos PS. Uma moça que tem um mestrado, que “provavelmente ganha o salário mínimo”, não podendo por isso ser mãe, e que emigrou.
Costa decidiu dar um outro caminho à história – mais rosa, digamos. “Provavelmente, a Ana faz parte da geração que beneficiou da extensão da obrigatoriedade do ensino até ao 12º ano, do ensino de Inglês no 1º. Ciclo. Se a Ana vive nos Olivais, até já beneficiou das piscinas que estiveram encerradas enquanto a direita governou o município de Lisboa. A Ana, se quiser procurar habitação, terá um apoio de 30% no programa Porta 65”, descreveu Costa, assumindo um desfecho para a narrativa. “Um conselho para a Ana: que nunca vote no PSD, porque terá um primeiro-ministro a convidá-la a emigrar”.
Porém, Tiago Brandão Rodrigues ainda voltaria à estranha vida de “Ana”, quando acusava o PSD de encarar os problemas ambientais e a crise energética como “coisas de técnicos”, quando é uma “coisa de todos” – até “coisa da Ana”.