“Face a uma crise internacional, aumentar descontroladamente os gastos do Estado e a dívida pública, na ordem dos “tens of billions” [trad.: “dezenas de milhares de milhões”] em apoios públicos? Já passámos por essa irresponsabilidade em Portugal com o PS. No, thanks. Never again! Bye, Liz Truss [trad.: “Não, obrigado. Nunca mais. Tchau, Liz Truss”]”.
Esta foi a forma com que a Iniciativa Liberal (IL) reagiu no Twitter à demissão da primeira-ministra britânica, na quinta-feira, sinalizando como causa para a decisão de Truss a reação às despesas que o seu Governo pretenderia fazer e não as políticas liberais de baixa de impostos.
A queda precipitada da chefe de Governo de Sua Majestade, ao fim de 45 dias em Downing Street – residência oficial – , teve como origem o anúncio do maior corte generalizado de impostos, na ordem dos 45 mil milhões de libras [cerca de 51 mil milhões de euros], como o Reino Unido já não via há 50 anos, e que provocou uma queda da bolsa de valores britânica e uma desvalorização da libra. Paralelamente, Truss previa aumentar despesa, por exemplo, com medidas de congelamento dos preços da energia. O plano ditou a demissão do ministro das Finanças, seis dias antes de Truss se demitir também.
Já na semana passada, a Iniciativa Liberal se tinha tentado demarcar na Assembleia da República das políticas de Truss, numa resposta de Carla Castro a Rui Tavares, do Livre, que pediu para esclarecer se os liberais “se a estratégia orçamental da IL é a do Reino Unido”, gerando uma resposta indignada, alegando que o programa inclui aumento da despesa pública, além de redução de impostos. “Há uma coisa que tenho de lhe perguntar: o seu discurso é desinformação ou desconhecimento? Das políticas de Inglaterra onde é que se esqueceu não só da redução da carga fiscal, mas do programa de aumento da despesa público que foi anunciado? Alguma vez a IL defendeu sequer perto?”, questionou a deputada.
A publicação de ontem no Twitter acabou por motivar muitas reações críticas, que apontam o insólito de a IL não reconhecer o caráter liberal das medidas de Liz Truss e não mencionar que uma das suas bandeiras esteve, de facto, na origem da sua saída. À VISÃO, os cientistas políticos José Filipe Pinto e José Palmeira fazem também notar isso mesmo.
José Filipe Pinto diz que “foi a agenda Liberal de Truss que levou o partido conservador a não ficar parado e a chamar à razão a primeira-ministra, avisando-a que aquilo que estava a tentar implementar era mais, nem menos, que uma agenda do terceiro partido inglês”
“A iniciativa da IL não faz sentido rigorosamente nenhum, não tem ligação com a realidade. É um tiro lado. José Sócrates desenvolveu uma política centrada num homem e Liz Truss preparava-se para implementar uma política centrada num modelo neoliberal, que lá atrás pode ter dado efeitos positivos mas que, em plena crise, se mostrou completamente desastrosa”, defende José Filipe Pinto, docente de Ciência Política na Universidade Lusófona e considerado um dos maiores especialistas em populismo político.
Para o catedrático, “não há uma correlação direta entre esta primeira-ministra e José Sócrates, porque ela não aqueceu o lugar, já o ex-primeiro-ministro socialista teve um consulado – onde se conta um mandato com uma maioria absoluta – que usou muito mal, porque o PS usa mal as suas maiorias absolutas. Os socialistas têm um problema em administrar votos absolutos”. “José Sócrates fez um regime centralizado nele, completamente diferente de Truss, que não domina a política dos grandes dirigentes. Não há semelhança nenhuma”, esclarece.
Segundo José Filipe Pinto, se se mantivesse o “bipartidarismo no Reino Unido, talvez Liz Truss não caísse tão rápido; o problema é que os Conservadores têm hoje em dia necessidade de se afastar daquilo que é o programa daquele que se cimentou como terceiro partido, que são os Liberais”.
“Foi a agenda Liberal de Truss que levou o partido conservador a não ficar parado e a chamar à razão a primeira-ministra, avisando-a que aquilo que estava a tentar implementar era mais, nem menos, que uma agenda do terceiro partido inglês e que isso não iria contribuir para aumentar o prestígio dos conservadores mas antes delapidar o seu crédito eleitoral”, sinalizou, lembrando que a reação do Banco de Inglaterra às medidas de Truss também ajudaram a empurrar a primeira-ministra para fora de Downing Street.
Percurso liberal de Truss
Também José Palmeira, docente de Ciência Política da Universidade do Minho, fala num “aproveitamento político desta situação pela IL”. “As medidas que visam baixar impostos não são apanágio dos liberais, os sociais-democratas também o têm. O problema aqui é que nunca se tomou uma medida como esta num período tão difícil para a economia britânica, e mundial, com uma elevada taxa de inflação; ainda por cima estando o Reino Unido a sentir os efeitos de um Brexit e a ausência de medidas tomadas em bloco pela União Europeia para fazer face à crise”, sinaliza o politólogo, que pertence à Associação Portuguesa de Ciência Política e é um dos editores do “Perspectivas – Journal of Political Science”.
“É preciso lembrar o percurso político de Truss: ela começou por ser uma liberal-democrata, chegou a ser defensora do republicanismo, era anti-Brexit e depois mudou de opinião. Ou seja, pelo seu historial já foi surpreendente como é que as cúpulas conservadoras viram nela um rosto de futuro e que viesse a conseguir apaziguar o partido após um período de Boris Johnson”, assinala Palmeira, que a única coisa que vê de semelhante entre o antigo líder do PS e primeira-ministra demissionária é “a reação dessa entidade pouco sufragada e que não é eleita democraticamente pelos povos chamada ‘mercados'”.
No que se baseava o plano de Truss
Tendo sido nomeada primeira-ministra pela Rainha Isabel II a 6 de setembro, Liz Truss levaria ainda cerca de duas semanas para dar a conhecer o seu plano económico, com que tencionava fazer frente à crise económica que se abateu sobre o País – para tal atraso também contou o falecimento da monarca e o cerimonial fúnebre que durou dias.
A 23 de setembro, com apresentação do plano de Truss pôs a libra a valer menos que o dólar, pela primeira vez em quase 40 anos, e uma fuga aos títulos da dívida pública. E no que consistia esse plano? O maior corte fiscal desde 1972, que colocaria os cofres do Estado a receber menos muitos milhares de milhões de euros em impostos – uns dizem que poderia ser na ordem dos 51 mil milhões e os mais pessimistas admitiram a não arrecadação de 170 mil milhões. Ou seja, em vez de abrir os cordões à bolsa, subsidiando empresas e cidadãos, Truss optou por incentivar o consumo, a produção e a criação de emprego com tal medida.
Apesar da controvérsia, Truss levou 10 dias para desistir de tal plano, afastar o seu ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng, autor do polémico pacote de medidas fiscais, e a nomear um sucessor na pasta, Jeremy Hunt – que já chegou ao Executivo a apontar o dedo à própria primeira-ministra.