Como em tudo o que, habitualmente, acontece na Justiça, é preciso recuar uns bons anos para se perceber o negócio do navio Atlântida, que levou a Autoridade Tributária e o Ministério Público a realizar buscas a sociedade do empresário Mário Ferreira, dono das empresas Dourto Azul e TVI, que referiu não ter “outra alternativa” que “não a de requerer a sua constituição como arguido” no processo em causa.
O caso do navio “Atlântida” remonta a finais de 2013, quando uma empresa de Mário Ferreira, a “Mystic Cruises”, acabaria por ganhar um concurso para a compra da embarcação. Isto depois de o primeiro classificado, a empresa grega “Thesarco Shipping”, ter desistido do negócio. Conclusão: Mário Ferreira ficou com o navio por 8,5 milhões de euros, a segunda proposta mais alta, que tinha custado ao Estado 70 milhões.
O “Atlântida”, recorde-se tinha partido de uma encomenda do Governo Regional dos Açores aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), mas, já depois de construído, foi rejeitado, supostamente por existirem falhas no cumprimento de algumas disposições contratuais.
Com o barco na mão, Mário Ferreira terá, entretanto, passado a sua propriedade para uma companhia de Malta – país onde também decorreram buscas durante o dia 6 de julho -, a “International Trade Winds” até o revender por 17 milhões à companhia norueguesa “Hurtigruten AS.”
As suspeitas de fraude fiscal que recaem sobre o empresário dizem respeito, precisamente, a esta triangulação: a utilização de uma sociedade em Malta, onde os impostos são mais baixos, para fugir ao cumprimento de obrigações fiscais, em Portugal. Nos últimos anos, a antiga eurodeputada Ana Gomes tem alegado que este esquema serviu para Mário Ferreira fazer “negócios consigo próprio”, já que ele será o beneficiário da “Trade Winds International”.
Uma pesquisa na base de dados do Consórcio Internacional de Jornalista de Investigação – responsável pela investigação aos “Panama Papers”, “Paradise Papers” e a outros casos relacionados com o uso de offshores – mostra que a “International Trade Winds” foi incorporada a, em Malta, a 19 de novembro de 2014.
A ligação desta sociedade a Mário Ferreira surge através de uma segunda, a “International Mystic Sails”, accionista da “Trade Winds”, como a mesma base de dados demonstra (ver imagem).
Na resposta a um dos processos-crime que lhe foi movido por Mário Ferreira, a antiga eurodeputada afirmou estar “inequivocamente de boa fé, convicta que tanto o processo de subconcessão/privatização dos ENVC, como a venda do navio Atlântida à Douro Azul/Mystic Cruises e a sua revenda à Hurtigruten envolveram negócios com corrupção, incluindo gestão danosa, conluio, manipulação de concursos internacionais e perdas infligidas aos interesses do Estado”.
Uma convicção que se apoia nas declarações que o antigo presidente da Empordef e líder da comissão liquidatária dos ENVC, João Pedro Martins, tem feito desde 2017 e que voltou a repetir, recentemente, durante o julgamento de um processo que opõe Mário Ferreira à antiga eurodeputada, ainda a propósito da venda do navio “Atlântida”: “Houve alta corrupção que envolveu políticos em funções, o Conselho de Administração dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, o júri do concurso, o BES e o comprador”, afirmou João Pedro Martins, ouvido enquanto testemunha.
Inquirido por videoconferência no Tribunal do Bolhão, no Porto, João Pedro Martins contou que cerca de um ano antes da alienação do Atlântida (vendido em 2014) havia “doze propostas firmes” de aquisição do navio na ordem dos 30 milhões de euros, acrescentando que o Conselho de Administração dos ENVC considerou-as “extremamente baixas” face ao valor de construção.
João Pedro Martins declarou que o primeiro comprador serviu como “lebre” para que o segundo classificado pudesse adquirir o navio por um valor muito inferior, recordando também que havia “muita pressão” por parte do poder político para a concretização do negócio e para a liquidação dos ENVC, devido às ajudas estatais.
O antigo presidente da Empordef, que, em fevereiro de 2019, numa audição parlamentar já tinha afirmado ter havido “alta corrupção” nos ENVC, revelou em tribunal que há cerca de três anos e meio entregou ao Ministério Público documentação e “matéria probatória”, nomeadamente as atas das reuniões do Conselho de Administração dos ENVC, considerando que “os factos são demasiados evidentes”, caso entenda deduzir acusação.
Ana Gomes e Mário Ferreira têm passado uma boa parte do tempo nos tribunais: o primeiro, acusando, a segunda defendendo-se de vários processos de difamação e injúrias. Num deles, o empresário, dono da TVI, queixou-se de duas declarações da antiga eurodeputada, que o apelidaram de “escroque” e “criminoso fiscal”.
Em tribunal, Ana Gomes defendeu-se, recorrendo ao dicionário da Priberam e à Infopédia para definir “escroque” como uma “pessoa que usa manobras fraudulentas” ou um “indivíduo que se apodera do alheio por meios fraudulentos”. Quanto ao “criminoso fiscal”, o seu advogado, Francisco Teixeira da Mota, usou uma explicação mais prosaica: “pessoa que pratica crimes fiscais”.
Esta semana, e depois de ter estado envolvido numa polémica sobre um financiamento do Banco Português do Fomento, Mário Ferreira pediu para ser constituído arguido no processo e prestar declarações, recordando que, em 2016, houve fez buscas às suas empresas e até à sua casa, sem que o nunca o Ministério Público o tenha chamado para prestar declarações.
O seu advogado, Tiago Félix da Costa, afirmou, numa carta enviada ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal, que Mário Ferreira “sempre se manifestou disponível para colaborar com a justiça”, estranhando, de certa forma, as mais recentes buscas, já que “a grande maioria da documentação” já consta de outro processo aberto em 2014.