Esta segunda-feira, o Ministério da Saúde e os médicos voltam a sentar-se à mesa das negociações, para que possa haver um acordo sobre o Plano de Contingência destinado a fazer face ao encerramento paulatino de várias especialidades nas urgências hospitalares, de norte a sul do País.
Contudo, a ter em conta a análise do setor às propostas da ministra Marta Temido, que assumiu as rédeas deste processo com a benção de António Costa, o mais provável é que as medidas para estancar o problema nos próximos três meses avancem sem a concordância dos médicos – algo que iria contra o pedido por Marcelo Rebelo de Sousa, para que haja um acordo entre o Governo e os sindicatos.
O pagamento das horas extraordinárias ou “o embuste de um concurso de contratação de novos 1600 médicos especialistas, que não passa de uma regularização dos internos que já estão dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, são os principais obstáculos à obtenção de uma luz verde a tal diploma – até porque os sindicatos dos médicos rumaram à reunião com a Tutela na expetativa de poderem, finalmente, iniciar uma discussão sobre a revisão das carreiras e do salários; mas em troca foram confrontados com “uma espécie de paliativos”, como referem.
Ainda assim, já apresentaram uma contraproposta, principalmente depois de o ministro das Finanças, Fernando Medina, ter dito, já por duas vezes, que não será por falta de dinheiro que a sua colega no Governo deixará de conseguir resolver o fecho das urgências.
Além disso, a par do que as ex-ministras socialistas da Saúde, Maria de Belém, Manuela Arcanjo e Ana Jorge, já vieram a terreiro sinalizar, o último antecessor de Temido, Adalberto Campos Fernandes, também lamenta que se possa estar a tentar “decidir em cima de um momento crítico as soluções para problemas já identificados e que se agravaram nos últimos três anos”.
50 euros podem (des)bloquear problema?
O Ministério da Saúde não escondeu que o objetivo é resolver, para já, a crise nas urgências este verão. Daí que tenha proposto remunerar em 50 euros cada hora extraordinária dos médicos nos meses de julho, agosto e setembro. A quantia é o valor médio do que o Estado estará a pagar aos prestadores de serviço. Os 50 euros serão para quem já tiver feito cumprido as 150 horas extraordinárias anuais que a lei permite.
De acordo com Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), o plano “não mitiga” o problema antes o agrava, com esta medida, aumentando a “assimetria entre os pagamentos aos médicos da Função Público e os feitos aos médicos que trabalham à tarefa”. “Pensar que é com uma solução momentânea que o SNS poderá estar diferente, daqui a três meses, é decepcionante”, disse à VISÃO.
Entenda-se, então, o que está em causa: um medico é obrigado a fazer dentro do seu horário normal de trabalho até 18 horas de urgências. Explica Noel Carrilho que estas horas “são pagas dentro da sua remuneração e não contam para as tais 150 horas anuais extra, que são pagas a um valor muito inferior” à dos tarefeiros.
Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), explicou à VISÃO que o cálculo daquela quantia que será paga pelas horas extraordinárias guia-se pelo “valor estipulado em 2019, em que havia menos horas extra e mais médicos”. O risco, adianta Noel Carrilho, é que atingido o teto de despesa de há três anos, “acaba-se o dinheiro para as horas extraordinárias”.
“Sobre este ponto não há grande expetativa, porque parte da proposta de uma ministra que, durante três anos, não quis negociar com os sindicatos e viu agravar vários indicadores nos tempos de espera. Além de que, a forma como apresentou este plano de contingência, faz-nos pensar ser pouco provável que o Ministério da Saúde altere a sua posição ou ouça o ministro das Finanças, Fernando Medina”, aponta Roque da Cunha.
Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, esclarece que o plano em causa “é muito semelhante ao que a Madeira tem” e que em causa, no valor da hora extraordinária, está uma visão da Tutela para o que se quer que seja um setor público que recorre cada vez mais aos prestadores de serviços.
“O Hospital das Caldas da Rainha, que não tinha ninguém, conseguiu assegurar alguém a pagar 95 euros a uma empresa externa. É a esse cenário que queremos chegar, de não valorizar quem já cá está?”, questiona.
Agora as urgências e só depois respostas profundas?
A ministra justificou no Parlamento, no debate realizado a pedido do Chega sobre o estado do SNS, que os atuais problemas estruturais do setor, onde se inclui a falta de médicos e a incapacidade em reter os jovens formados, ainda não foram resolvidos devido a duas crises – a pandémica e à que levou às eleições legislativas antecipadas.
De forma sucinta, nesta sexta-feira, 17 de junho, Marta Temido assegurou que, após a resolução do problema nas unidades hospitalares neste verão, avançam depois as medidas mais profundas para o setor, que foram delineadas pela Lei de Bases da Saúde – aprovada ainda pela Gerigonça, em 2019.
Porém, a mais recente militante ilustre do PS – a quem António Costa fez questão de entregar pessoalmente o cartão de militante, no congresso de Portimão, há quase um ano – não tem visto os seus antecessores a assinarem por baixo as análises (e as respostas), na última semana, quanto aos problemas estruturais no SNS.
As ex-ministras Maria de Belém, Manuela Arcanjo e Ana Jorge não escondem as críticas – umas mais claras que outras – à forma como o sistema chegou à beira da colapso. Na quinta-feira, na RTP3, Ana Jorge assinalou mesmo que, já no seu mandato [2008-2011], se sabia que, até ao virar desta década, uma enorme quantidade de médicos iriam estar à beira da reforma ou a meter os papéis para a mesma.
O ex-governante Adalberto Campos Fernandes, que antecedeu Temido no cargo, adiantou, à VISÃO, que, “sim, quer a doutora Ana Jorge, quer a doutora Manuela Arcanjo têm razão, de que sabíamos que ia acontecer uma saída numerosa de médicos do SNS e haver um reflexo da idade dos mesmos na gestão do sistema” – acima dos 55 anos, pode haver recusa destes desde a horas extraordinárias até à realização de banco de urgências.
“Estamos a falar de muitos alunos de Medicina que entraram nos anos de 1974 e 1975, que estiveram naquilo que podemos chamar da fase ‘infantil’ do SNS, que ajudaram a dinamizar, até, o serviço médico de periferia, e que, até 2025 estarão de saída”, apontou Fernandes, que, ainda assim, diz ser “sempre perigoso comparar contextos sociais, históricos e financeiros”. “Não vou fazer esses exercícios [de avaliar o trabalho de Marta Temido], até por uma questão de cortesia”, refere, alertando que “estamos perante um problema estrutural”. “Talvez, face ao que a política tem de pior, não convinha decidir em cima de um momento tão crítico um processo tão importante”.
Adalberto Campos Fernandes realça que os problemas estruturais se devem a diversos fatores, entre os quais a falta de atratividade do SNS aos olhos dos médicos jovens e um setor privado de medicina, “que cresceu muito e serve cerca de 4 milhões de pessoas com seguros e subsistemas”. A isso, junta uma pandemia onde, realça, “não se fez tudo”. “Quando temos um excesso de mortalidade que não é Covid, temos de temperar esta opinião de que fizemos tudo bem na pandemia, quando não fizemos”, defendeu.
Por isso, para já, acredita que uma solução para este verão depende de um compromisso da Tutela: “Prefiro um não acordo sobre este plano de contingência a um mau acordo – porque quem está do lado do Governo deve representar exclusivamente o interesse publico. Do que conheço dos sindicatos dos médicos, acredito que estariam disponíveis para aceitar esta proposta até setembro, se houvesse garantias claras de um plano a médio prazo, talvez a quatro anos, para o setor”.
Concurso de 1636 vagas vai trazer mais gente ao SNS?
Foi apontada pela ministra como uma das medidas que irão fazer face às necessidades do sistema público de saúde: um concurso de 1636 vagas para a contratação de recém-especialistas, das quais 1182 irão rumar aos hospitais, outros 423 vão para os centros de saúde e mais 25 destinam-se a uma das áreas que mais presente esteve em foco na pandemia – a da Saúde Pública.
Refere o despacho do Ministério da Saúde, publicado em Diário da República, que, entre várias especialidades, haverá 162 vagas em Medicina Interna e 61 para Obstetrícia – com o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e o Hospital de Braga à cabeça, com quatro vagas cada um.
Ora, Alexandre Valentim Lourenço, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, adiantou à VISÃO que este concurso destina-se a colocar no SNS como especialistas os internos que já concluíram a sua especialização e estão a trabalhar no sistema. No caso de Obstetrícia, há apenas 25 recém-especialistas [e as vagas são 61],
“Trata-se de um concurso que é apresentado como uma solução, mas que é feito todos os anos e que já está atrasado. Não se trata de trazer novos médicos ao SNS. Vão transitar os médicos que já estão a trabalhar como especialistas e a receber como internos, que estão a fazer consultas e a ser médicos de família”, esclarece Noel Carrilho, líder da FNAM.
Ou seja, “não são médicos que nunca estiveram no SNS”. Além disso, “o Ministério da Saúde sabe que o SNS não vai sair reforçado, como vai perder quadros, porque estes jovens não vão querer integrar um SNS que não é atrativo e que conta com problemas estruturais profundos, ainda para mais quando as condições contratuais são exatamente iguais às de há três anos e de há dois, que fez com que, na altura, centenas de médicos ficassem de fora”, diz.
Roque da Cunha, do SIM, subscreve esta tese: “Se acontecer aquilo que tem acontecido nos últimos anos, dada a falta de investimento no SNS e à incapacidade de atrair esses médicos, por certo parte dessas vagas ficarão por preencher. Quem acha que engana com este anúncio é incompetente”.
Então vamos ao estrangeiro buscá-los?
A vinda de contingentes de médicos estrangeiros para Portugal, de forma a colmatar as necessidades do sistema, não é novidade. Já há alguns anos, à mercê de acordos entre países, a Medicina Familiar foi reforçada com clínicos oriundos de Cuba. Marta Temido sinalizou agora, pela segunda vez e em poucas horas, essa possibilidade, para enfrentar os problemas nas urgências hospitalares.
Segundo Alexandre Valentim Lourenço, da Ordem dos Médicos, é um ver para crer. “Não se consegue reter os que são formados cá e acha-se que se consegue importar médicos dos países comunitários que cá vêm buscar os nossos?”, assinala, realçando que não será por falta de reconhecimento do percurso profissional desses médicos estrangeiros pela Ordem dos Médicos – como estabelece a lei – que “haverá falta” de clínicos.
“Mas se os portugueses estão a ir para o estrangeiro e se há países, como a França, que organizam feiras para vir buscar médicos a Portugal, esse movimento migratório ao contrário, como o Governo pretende, atinge um nível de paradoxo e é falacioso. Então, se deixamos escapar entre os dedos centenas de médicos portugueses, que ficam de fora, apesar de formados com altíssima qualidade, a senhora ministra acha que pode ir ao estrangeiro arranjar outros médicos?”, lamenta Noel Carrilho, da FNAM, que não está contra tal solução. Apenas desconfia da eficácia da mesma.
“Pode [Marta Temido] ir buscar onde os quiser. Mas o que quereríamos é que fossem buscar os médicos que ajudamos a formar dentro do nosso horário, sem receber mais por isso, que depois são desbaratados, porque rumam ao estrangeiro e aos privados. Sendo certo que, fique claro, não encaramos esta vinda de estrangeiros como ameaça; bem pelo contrário, se vierem, que venham e que tenham qualidade”.
Roque da Cunha dá um exemplo pessoal do que acontece com os que cá estão: “os médicos mais novos têm uma noção de mobilidade diferente; ainda agora, dois colegas que terminaram a especialidade decidiram ir para a Irlanda”. “Achar que se consegue dar resposta com um processo moroso como é o do reconhecimento profissional, é apenas mais uma medida para enganar os portugueses”.
Sinaliza Alexandre Valentim Lourenço que “uma diretiva europeia estabelece as regras para o reconhecimento comunitário de médicos; que são diferentes para aqueles que vêm de outras geografias, como a América Latina ou África”. “Até porque, tomemos como exemplo o Brasil, a especialização aqui é de seis anos em Obstetrícia e no Brasil é de três. Mas, ainda este ano, reconheci cinco médicos brasileiros, com um percurso de 10 ou 12 anos, que vieram para Portugal. Reconheci o seu percurso para irem para Portalegre, e onde estão hoje? Numa parceria público-privada”, revela o dirigente da Ordem dos Médicos, para destacar a falta de atratividade do SNS.
De acordo com a Base de Dados das Profissões Reguladas da União Europeia, mais de 1900 médicos portugueses foram para um outro País na Europa. No sentido contrário, são quase 10 vezes menos.
Próxima crise será quando?
“Contratar todos, recrutar no estrangeiro e pagar melhor”, disse a ministra em frente aos deputados, sobre as medidas a que se propõe dar gás nos próximos meses, mas o caderno de encargos do setor mostra que a tarefa de Marta Temido poderá ser hercúlea perante os problemas estruturais que são apontados ao SNS.
“Para começo da solução deste problema com que nos deparamos agora, é preciso melhorar a remuneração-base para todos. Desde há uma década, aquando do último acordo coletivo, houve uma perda do poder de compra na ordem dos 30%. Há que alterar as condições para assistentes da carreira médica; reforçar o número de profissionais”, começa por elencar Noel Carrilho.
Roque da Cunha lembra, igualmente, que é preciso repensar a forma como o SNS “recorre aos privados, ainda por cima com a luz verde de uma ministra que teve a capacidade de acabar com as parcerias público-privadas (PPP)”. “Nas PPP que existiam, os profissionais estavam satisfeitos e o custo para o Estado era, segundo os relatórios, eficaz. Em Braga e Loures, onde tantos problemas tem havido, os contratos PPP não permitiu o encerramento de serviços e da maternidade enquanto estiveram em vigor”, adianta.
Esta tese é corroborada por Alexandre Valentim Lourenço, da Ordem dos Médicos: “Há um hospital que não tem problemas – de Cascais [uma PPP]. Vila Franca de Xira e Loures são dos que precisam mais de médicos; deixaram de ser PPP há um ano e outro há seis meses. Desde essa altura passaram a precisar de recorrer a empresas tarefeiras para ter médicos, quando nunca tiveram problemas. Na ‘crise das maternidades’, em 2019, estes dois hospitais não pediram contingência, como agora, assim como o de Braga”.