Os deputados colocaram o pé no acelerador para ver se o decreto-lei sobre a morte medicamente assistida fintava a dissolução da Assembleia da República, mas esbarraram novamente no veto presidencial. Marcelo Rebelo de Sousa considerou, numa nota publicada no site da Presidência da República, nesta segunda-feira à noite, que o documento tem “contradições” no que diz respeito às “causas do recurso à morte medicamente assistida”.
“O decreto mantém, numa norma, a exigência de “doença fatal” para a permissão de antecipação da morte, que vinha da primeira versão do diploma. Mas, alarga-a, numa outra norma, a “doença incurável” mesmo se não fatal, e, noutra ainda, a “doença grave”. O Presidente da República pede que a Assembleia da República clarifique se é exigível “doença fatal”, se só “incurável”, se apenas “grave”, pode ler-se na página da Presidência, onde o chefe de Estado pede ainda aos parlamentares que discutam a hipótese de deixar de “ser exigível a ‘doença fatal”.
Passaram-se quase oito meses desde o primeiro chumbo presidencial ao diploma e ainda não será nesta legislatura que a despenalização da eutanásia fica aprovada em Portugal. Mas a conversa já é bem mais antiga. Em 1995, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), num parecer que tinha como relator Daniel Serrão, já chamava a atenção para a necessidade de se ter uma “discussão serena” e que clarificasse os termos, numa altura em que a discussão pública começava a ganhar gás. O médico especialista em anatomia patológica e bioética (que morreu em 2017) considerava, então, que a despenalização da eutanásia levaria à “quebra de confiança que o doente tem no médico e nas equipas de saúde e poderia levar a uma liberalização incontrolável de ‘licença para matar’ e à barbárie”.
A partir deste momento a discussão na esfera pública, enfatizada pela comunicação social, torna-se recorrente, e são dados alguns passos no sentido de tornar a eutanásia uma questão política. Por exemplo, em 2012, é legalizado o chamado testamento vital, um documento em que as pessoas podem, em vida, deixar escrito quais os cuidados médios que pretendem ter perante uma situação de doença terminal. Todavia, é só em 2015 que o debate da eutanásia ganha verdadeiramente relevância política.
2015. Movimento “Morrer com Dignidade”
Na Europa, o primeiro país a descriminalizar a eutanásia foi a Holanda, em 2002. Na Bélgica, na Suíça, no Luxemburgo também não é crime
Este movimento promoveu no ano seguinte à sua criação, ou seja em 2016, um manifesto assinado por cem personalidades – entre elas João Semedo, Boaventura de Sousa Santos, Rui Rio, Paula Teixeira da Cruz -, em que se defendia a “urgência de despenalizar e regulamentar a morte assistida”. A partir de então começam a dar entrada no Parlamento petições para obrigar os deputados a debater o tema.
Maio de 2018. Projeto do PS chumbado à tangente
Com 110 votos favoráveis e 115 contra, o projeto de lei socialista para a despenalizar a eutanásia, em 2018, consegue a melhor votação na Assembleia, embora tenha ficado aquém dos votos necessários para a aprovação. Deram entrada, na mesma altura, no Parlamento projetos apresentados também pelo BE, PAN e Verdes, mas foram todos chumbados, numa votação nominal.
20 de fevereiro de 2020. Cinco projetos sobre a eutanásia passam, pela primeira vez, no Parlamento
Um ano e meio depois da primeira votação, foram mais os parlamentares que se levantaram para votar favoravelmente, na generalidade, a despenalização da morte medicamente assistida do que os que ficaram sentados. O Parlamento aprovou cinco iniciativas legislativas, do BE, do PAN, do PS, do PEV e da IL. Seguiu-se uma discussão na especialidade para que os deputados chegassem a um texto comum e a votação final global só viria a acontecer a 29 de janeiro de 2021.
29 de janeiro de 2021. Parlamento aprova lei da eutanásia
No total, 136 dos 230 deputados das bancadas do PS, do BE, do PAN, do PEV, da IL, 14 deputados do PSD e as não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues fizeram o diploma passar.
15 de março de 2021. Primeiro veto presidencial
Depois de ter enviado o decreto-lei para o tribunal constitucional e deste ter dado um parecer negativo ao texto – embora os juízes do Palácio Ratton tenham também deixado pistas no parecer sobre como contornar a inconstitucionalidade -. Marcelo Rebelo de Sousa vetou o decreto do parlamento por “insuficiente densidade normativa” no artigo 2.º n.º 1, que estabelecia os termos em que a morte medicamente assistida deixaria de ser punível. Segundo a justificação presidencial, o conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema” seria excessivamente indeterminado.
Setembro de 2021. De volta ao Parlamento
Espanha aprovou a despenalização da Eutanásia este ano, em março, à quinta tentativa
Desde o chumbo presidencial que um grupo de deputados se reunia para contornar as questão lançadas pelo Constitucional e pelo Presidente da República. Na nova versão, os parlamentares aperfeiçoaram as explicações sobre a doença de gravidade extrema, definindo-a como uma “lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa”. Uma formulação que foi buscar inspiração à lei espanhola, aprovada este ano, à quinta tentativa.
5 de novembro. Hemiciclo dá nova luz verde
Com o chumbo orçamental e a promessa de dissolução da Assembleia da República, Marcelo fez saber que ainda apreciaria o diploma novamente, se este chegasse a Belém antes de dezembro. Embora perante um coro de criticas à direita de deputados receosos de que o diploma não estivesse a receber a atenção devida, o parlamento aprovou, pela segunda vez, o decreto com os votos a favor da maioria da bancada do PS, do BE, PAN, PEV, Iniciativa Liberal, de 13 deputados do PSD e das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. A lei deu entrada em Belém a 26 de novembro e foi novamente renegada nesta segunda-feira.