“As pessoas queriam tanto estar de acordo com ele que não perceberam que um dos pontos da moção do Congresso não estava bem como ele queria e votaram a favor. Quando perceberam, pediram para repetir a votação”. Tratava-se do documento aprovado no V Congresso Nacional do PPD-PSD, que aconteceu em 1978, no Cine-Teatro Vale Formoso, no Porto, e quem o recorda é o antigo-primeiro-ministro e deputado do PSD Pedro Santana Lopes. “Nem pensem nisso”, imita, com a voz endurecida, Santana Lopes. “A vossa votação natural mostra que não sentem o que eu sinto e que não pensam o que eu penso. Portanto, vou-me embora”. E foi. Demitiu-se. Haveria de voltar, mas, segundo Santana Lopes – que foi seu assessor-jurídico durante o ano em que Sá Carneiro governou Portugal, 1979/80, não hesitou naquele momento, “como não hesitou em muitos outros em colocar o seu lugar à disposição”. O primeiro-ministro da AD (Aliança Democrática, coligação PSD-CDS-PPM) morreu há 40 anos, a 4 de dezembro de 1980.
“Nunca o vi fazer nenhum esforço especial para manter o poder. Em vários momentos da sua vida o ouvi dizer: ‘Se não quiserem eu não fico'”, prossegue Santana Lopes, que recorda: “Mesmo depois de ter ganhado as eleições [legislativas de 1979, com a coligação de centro-direita Aliança Democrática] falou com o general Ramalho Eanes e disse-lhe que não assumia o cargo de primeiro-ministro se o Presidente da República tivesse algum problema com a sua vida pessoal”. Sá Carneiro, assinale-se, tinha assumido a sua relação extra-conjugal com a fundadora da editora D. Quixote, a dinamarquesa Snu Abecassis. Isto, apesar de ser católico e de a mulher nunca ter concedido o divórcio. Santana Lope fala de Sá Carneiro como um “homem livre, que adorava a vida, adorava um bom charuto, um bom copo de vinho, um bom prato”.

O antigo assessor jurídico de Sá Carneiro, que também viria a ser presidente do PSD e primeiro-ministro, tinha, então, 24 anos. E foi por mero acaso que não viajou no Cessna C-421 com ele, com Snu, com o ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa e mulher, e com o chefe de gabinete do primeiro-ministro, António Patrício Gouveia, no voo sem regresso, que descolou de Lisboa e caiu em Camarate, no bairro das Fontaínhas, há 40 anos.
Esteve com Sá Carneiro duas horas antes, no hotel Altis, numa conferência de imprensa, onde se lembra de Snu perguntar se também vinha. Mas não era a semana de Santana acompanhar Sá Carneiro; a tarefa era de António Patrício Gouveia. Passado pouco tempo, Santana recebe a notícia e corre para Camarate: “Eu era um jovem e aquilo fez-me muita impressão Para além do desgosto, o horror daquela imagem com que durante meses acordei aos gritos e com pesadelos… foi horrível”.
Ele não queria que ficássemos a olhar para trás. Temos de tratar de Portugal e andar para a frente
Santana lopes
“Era uma pessoa com quem eu trabalhava todos os dias e de repente vemo-lo desaparecer daquela maneira horrível, mas é a vida e tenho a certeza absoluta de que ele não queria que ficássemos a olhar para trás. Temos de tratar de Portugal e andar para a frente. Nunca o vi gostar de pieguices”, conta.
Para Santana Lopes, o que não morreu de Sá Carneiro, ainda hoje, é a figura do político coerente que era, “um homem firme de convicções”, com paralelo noutros líderes, associados a outros partidos, como Mário Soares (PS), Álvaro Cunhal (PCP) ou Freitas do Amaral (CDS). Políticos com P maiúsculo, como descreve Santana. E isso será atualmente fonte de inspiração para gerações de políticos mais recentes.
Miguel Relvas: a filiação, no dia seguinte
Miguel Relvas, 59 anos – ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares durante o primeiro Governo de Pedro Passos Coelho -, filiou-se no PSD no dia a seguir à morte de Sá Carneiro. “Nunca tinha pensado em filiar-me num partido. Simpatizava com o Sá Carneiro mais do que com o PSD. Acreditava na atitude dele, no carisma. Era o desapego: o candidato que não ganha e sai. Não era o político para quem valia tudo”, sublinha.
Todos os outros falam muito de Sá Carneiro, mas praticam pouco Sá Carneiro
Miguel Relvas
No dia 4 de dezembro de 1980, Relvas tinha 19 anos, vivia num colégio interno em Tomar, recebeu a notícia pela televisão, transmitida a preto e branco, num café onde ia depois do jantar e antes da hora de estudo. Menos de 24 horas depois, estava à porta da sede do partido a pedir uma ficha de inscrição, com mais dois amigos. Insiste que as ideias do fundador do partido não foram esquecidas e acredita que, na atualidade, quem as interpretou melhor foi “numa primeira fase, Cavaco Silva e depois, pela frontalidade e resiliência, Passos Coelho. Todos os outros falam muito de Sá Carneiro, mas praticam pouco Sá Carneiro”.
Os muitos alegados herdeiros
O líder histórico do PSD continua a ser muito citado pelos seus correligionários e não só. Passos Coelho evocou-o no dia da sua tomada de posse, Rui Rio, atual presidente do PSD, chegou a dizer, no ano passado, que “se Sá Carneiro não tivesse feito um partido, eu se calhar tinha ido para o PS”, mas também há associações consideradas menos favoráveis, como a contínua evocação do “mestre” Sá Carneiro pelo líder do Chega, André Ventura.
Santana Lopes lamenta o uso compulsivo do nome do político. “As grandes figuras que ganham lugar na história depois são usadas para aquilo que convém. Até se ouve disparates vários, como citar o nome dele para coisas que ele nunca pensou – ou até pensava o contrário. Não há nem herdeiros, nem tradutores ou interpretes personalizados do seu pensamento”, acredita.
Carlos Carreiras: “Aproveitamento político do seu nome”
Carlos Carreiras, 59 anos, presidente da Câmara Municipal de Cascais eleito pelo PSD e antigo presidente do Conselho de Administração do Instituto Francisco Sá Carneiro (2010-2013), segue a mesma linha de raciocínio, neste caso. “Eu próprio me tenho inibido de mencionar o Dr. Francisco Sá Carneiro, porque muitos fazem esse aproveitamento ilógico, egoístico, de terem na boca aquilo que não têm na prática”, diz referindo ao “sentido patriótico” do político, uma das caraterísticas de Sá Carneiro que mais marcou o autarca.
No PSD, infelizmente, acho que resta muito pouco [de Sá Carneiro]
Carlos Carreiras
“No PSD, infelizmente, acho que resta muito pouco [de Sá Carneiro]. No país, o que prevalece são as ações, a substância política e das propostas, que ainda hoje são atuais. Mas perdemos estes anos todos em que não foi possível executar as linhas de orientação do próprio Sá Carneiro”, acrescenta Carlos Carreiras, que assistiu a um dos últimos discursos do fundador do partido, no dia anterior à sua morte, num comício em Tires, Cascais, “muito perto do palco”.
Já a atual presidente do Instituto Francisco Sá Carneiro, a engenheira e eurodeputada Maria da Graça Carvalho, realçou, em entrevista, ao Irrevogável, o programa de entrevistas da VISÃO, que o político era uma pessoa tão “multifacetada, tão aberta a novas ideias que a consequência é que muitas pessoas se revejam em, pelo menos, parte de Sá Carneiro”.
“O pensamento de Sá Carneiro é intemporal e acho que há muito de Sá Carneiro em Portugal, no PSD mas também fora do PSD. Os militantes do PSD têm em Sá Carneiro a referência dos valores, da forma de pensar, da abertura ao mundo. E o PSD de que eu gosto é assim: aberto à sociedade”, aponta Maria da Graça Carvalho.
Helena Roseta: “Há muitas ‘viúvas’ de Sá Carneiro…
“O que ele deixa é de todos os portugueses”, refere também Helena Roseta, 72 anos, ex-deputada da Assembleia da República e da Assembleia Municipal de Lisboa, eleita pelo PS, embora tendo sido filiada no PSD até ao final da década de 1980, tendo sido deputada na lista da Aliança Democrática em 1979. “Muitos estão armados em ‘viúvas’ do Sá Carneio, mas as pessoas são o que são e o legado que ele deixa não é propriedade de ninguém. Deixa uma memória que ultrapassa a área política, que tem a ver com a pessoa que ele era: corajoso e frontal. Um homem que lutou pela liberdade [mesmo antes do 25 de abril] com valores éticos muito importantes e que construiu uma visão da social-democracia numa altura em que esta era mal vista”.
Miguel Poiares Maduro: Um olhar com profundidade
Miguel Poiares Maduro, 53 anos, professor universitário e antigo ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional de 2013 a 2015, tem uma memória de Sá Carneiro mais incerta. Apesar de o ter conhecido em Congressos – em que acompanhava o pai, primeiro presidente da Câmara de Mira eleito em democracia pelo PSD -, tinha apenas 13 anos aquando da sua morte. Guarda apenas, primeiro, “uns tacões muito altos” de Sá Carneiro, que ecoavam no palco de um desses encontros a que assistiu presencialmente; depois o dia do acidente de Camarate e as imagens que chegaram pela televisão à casa da família na Figueira, onde então moravam, e “o silêncio do meu pai e as lágrimas que lhe caiam”.
Só mais tarde, racionalizou Francisco Sá Carneiro, “a forma como ele praticava a política, com ousadia, com coragem, com aspetos genuínos, sem medo de correr riscos e preferindo ser fiel às suas convicções do que fazer compromissos por mero oportunismo. Essa prática política acho que ainda hoje está em mim e acho muito importante para o PSD”.
O pai de Miguel Poiares Maduro viria a morrer quatro anos depois e, nessa altura, a curiosidade leva-o a ler um livro que o pai guardava com muita estima, enviado por Sá Carneiro com uma dedicatória, “Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social Democracia”, de Bernstein, editado pela D. Quixote. Foi um dos primeiros livros que Miguel Poiares Maduro leu e que marcou a sua “educação política” e ainda marca. Não só o livro, mas o que Sá Carneiro incorporou dele.
Já Carlos Carreiras, atual presidente da Câmara de Cascais, também só depois viria a “tomar consciência política” das ideias de Sá Carneiro. Mas o primeiro impacto é, mais uma vez, a descoberta do líder “carismático”. “Só de ouvi-lo saíamos dali empolgados e com vontade de ação”, diz Carlos Carreiras.
“Não há pessoas perfeitas. Com certeza tomou opções discutíveis”, continua Pedro Santana Lopes. “Mas tinha sentido de Estado. Nunca o vi entrar em tricas. Para uns podia ser teimoso, porque pensava sempre a mesma coisa. Para outros, era coerente; sabíamos sempre com o que podíamos contar dele. E aquele olhar… tinha um olhar com muita profundidade, – e tinha carisma”.