A traição dos paulinhos das feiras

A traição dos paulinhos das feiras

As feiras e mercados foram sempre um cenário preferencial de políticos de todos os quadrantes, em contexto de campanha eleitoral. E os feirantes foram sempre excelentes figurantes, para ajudar a humanizar os políticos, na sua época sasonal de contacto como o povo – e de caça ao voto.

As feiras, os diálogos com os vendedores e as bandeirinhas em caravana, através do colorido das barracas, constituem uma imagem icónica do que pode ser uma campanha política, à antiga, ainda longe do modelo pós-moderno das redes sociais. Tais preparos são, sobretudo, centrados no instantâneo televisivo imagético e primário. Passar a mensagem mais básica dos vários candidatos a eleições, sejam elas legislativas, autárquicas, presidenciais ou, até mesmo, europeias. O paroxismo deste modelo foi atingido por Paulo Portas que, munido do seu indispensável “boné de lavrador”, protagonizou as partes gagas mais divertidas com feirantes e frequentadores. Sobretudo porque, pelas suas origens pessoais e familiares, bem como pelo seu ideário político, seria insuspeito de tal amalgamento de personalidade com a ideia de feira e de Zé Povinho. Esquecido das suas “origens bem” e trasnfigurado na sua segunda pele de personagem bordaliana, Portas parecia genuinamente divertido naqueles banhos de multidão e devidamente integrado no espírito da coisa. Ignora-se se tomava banho a seguir ao contacto como o bom suor do povo, mas o então líder do CDS dava cartas à esquerda, na identificação com esse povo simples, que era, afinal, o seu público-alvo. Nas feiras, Paulo Portas exercia uma espécie de populismo benigno de que havemos de ter saudades…

Mais do que se poderia esperar de uma estratégia bem pensada – e bem pensante – de marketing político, Paulo Portas era o objeto vivo da campanha, o outodoor animado da rua empoeirada do “terrado”, o compincha insuspeito de feirantes sem outra voz que não fossem aqueles minutos de fama, em horário nobre de Telejornal. Arrastando consigo florestas de câmaras televisivas, legiões de jornalistas de bloco em punho, emaranhados de microfones, estalagmites de tripés e máquinas fotográficas, cada ação de campanha de Portas, em feiras, era garantia segura de um boneco que salvava o dia dos operadores de imagem. Dali podia sair um pezinho de dança, uma tirada brejeira, um beijinho repenicado, um palavrão en su sitio, uma revoada de vivas ou de morras. Por isso, Paulo Portas se tornou um príncipe dos “terrados” com o cognome de “Paulinho das Feiras”.

Mas a chacota política, feita, a propósito, pelos seus adversários, perdia autoridade moral quando todos o imitavam. Se antes os políticos já visitavam feiras e mercados, foi Paulo Portas quem conferiu a estes espaços o estatuto nobre de locais inevitáveis. E enquanto uns se revelavam mestres na arte de bem dominar os sofisticados códigos da feira – onde, no diálogo político-feirante havia afetos, frustrações, reclamações, reconhecimento, humor, carinho, hostilidade, converseta e picardia – outros, menos à vontade, se revelavam desastrosos no confronto com esta realidade imprevisível.

As discípulas bloquistas do Paulinho

Num mercado, ainda nos anos 70, Mário Soares, apelidado de ladrão, por uma peixeira, podia ter fingido não ouvir e prosseguir – como faria qualquer outro. Em vez disso, estacou, enfrentou a agressora e devolveu-lhe o insulto, com juros: “Ladrão, eu, minha p… de m…?!” A presença de espírito – e a coragem – do Velho Leão granjeou-lhe, logo ali, e no eleitorado, a admiração dos que julgam que quem não se sente não é filho de boa gente. Mais boazinha – e desempenhando um papel de que Paulo Portas, se fosse seu professor, se orgulharia… – Marisa Matias, na sua campanha presidencial de 2016, espalhou charme pela Feira de Espinho – que, por ter rendido tão bons dividendos televisivos, voltou a ser visitada por Catarina Martins, na campanha para as legislativas de 2019. O Bloco, tantas vezes identificado como “esquerda caviar” e urbana, passou, sucessivamente, nos vários testes das feiras. No campo político oposto, Assunção Cristas, discípula de Portas, também fez furor, em 2019, na Feira da Senhora da Hora, em Matosinhos, quando comprou uns ténis de marca, pela módica quantia de… cinco euros. O quê, um político a cooperar com atividades de contrafação? As virgens ofendidas podem descansar: aquilo deve ter sido um generoso desconto.

Santana Lopes (Feira do Relógio, campanhas para a Câmara de Lisboa) ou Jerónimo de Sousa, peixes na água neste tipo de ambientes, nada ficariam a dever a Paulo Portas, se tivessem investido tanto em feiras como o antigo líder do CDS. Ou se tivessem, eles próprios, personalidades tão diversas do espírito de feira como o antigo diretor do elitista Independente. O primeiro, com a escola de rua do bairro popular dos Olivais, em Lisboa, onde cresceu (aliás, paredes meias com o terrado da futura Feira do Relógio), sabe bem o tipo de linguagem que se utiliza nestas situações. O seu savoir faire traz-lhe a necessária contenção para que as cenas possam passar logo à noite, na televisão, sem temer que o exagero o deixe cair no ridículo. Já o segundo, menino pobre de Pires Coxe, Póvoa de Santa Iria, onde os putos se juntavam à saída dos camiões da fábrica de açúcar, para apanhar os grãos que caíam das sacas demasiado cheias, é imediatamente identificado pelos feirantes como um dos seus – mesmo que não votem nele ou, simplesmente, não votem de todo.

Já outros “desgraçados”, como o candidato europeu Paulo Rangel (Feira de Espinho, 2019) lá foram cumprindo, penosamente, a sua missão, procurando convencer os feirantes a votar… nas europeias. Com um sorriso amarelo, mas aparentemente satisfeito, Rangel lá ouvia os habituais piropos, sem saber bem como reagir: “Ai, está tão magrinho, tão bonito”.

Pacheco Pereira, Rui Rio e… António Costa são outros dos políticos menos dados a estas cenas popularuchas, alguns (como Rui Rio, Feira de São Mateus, em 2019) por manifesta falta de jeito e outros, como o primeiro-ministro, pelo rótulo de frieza que, justa ou injustamente, transportam consigo. Ainda assim, nem mesmo ele escapou ao itinerário das feiras, que cumpriu com denodado esforço, como comprovou a sua boa prestação, em setembro de 2016, na pré-História da geringonça, na Feira de Setembro, em Moura.

Ora, por falar no Alentejo, a Ovibeja tornou-se um local obrigatório de peregrinação de todo e qualquer político, faça ele parte do Governo ou da oposição. Claro que esta é uma feita nacional, não é “de levante”, não foi proibida pelas recentes medidas do Governo – mas também deve entrar nestas contas.

Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, nunca se mostrou um frequentador de feiras (talvez com a honrosa exceção da de Cascais e, noblesse oblige, em Boticas, entre enchidos), embora tenha também exibido o seu boné axadrezado à lavrador, imagine-se… na Festa do Avante!. Noutros anos, claro. E esta é uma “feira” muito especial.

Eles não passam fatura…

Ciclicamente, há conflitos entre os feirantes e o poder político: em 2006, o presidente da Associação de Feirantes, Fernando Assunção, reclamava mais condições para a realização e o funcionamento das feiras, e ameaçava barrar a entrada de políticos em campanha nas muitas feiras do país. E mandava-os fazer campanha nos hipermercados.

Desta vez, e de novo, os políticos parecem esquecer-se desta importante atividade, enraízada na nossa cultura popular e no ADN nacional, desde a Idade Média. Comerciantes e consumidores – que têm nestes locais uma alternativa, muitas vezes mais barata, aos estabelecimentos comerciais fixos – vão ficar no limbo angustiante da suspensão. E, excetuando algumas situações em que os autarcas prometem dar uma ajuda – Cascais, Paredes, entre outros municípios – ficarão entregues à sua própria sorte e à da pandemia. A decisão do Governo, de suspender a atividade das feiras de levante, ainda não encontrou qualquer voz grossa de indignação, na oposição parlamentar. Os feirantes têm uma voz reivindicativa fraca e não suficientemente organizada. E, geralmente, não passam fatura.

Neste caso concreto, o Paulinho das Feiras, que não ocupa qualquer cargo político, está inocente. E os outros, terão coragem de voltar a aparecer?…

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