Numa rápida viagem entre Washington, Bruxelas, Berlim e Pequim, detemo-nos um pouco em Lisboa. Nuno Severiano Teixeira, 62 anos, ex-ministro e especialista em temas de Segurança e Relações Internacionais, não vai tão longe ao ponto de falar num milagre nacional na resposta ao surto mundial. Reconhece que houve “desacertos” entre Governo e Presidência e que, num primeiro momento, nem todos os responsáveis políticos compreenderam o que estava em causa com o novo coronavírus. Chapeau, Marcelo! E, ainda que acabe a aplaudir a forma como o Governo geriu a crise de saúde pública, avisa: em momentos de exceção, o escrutínio do poder é mais vital do que nunca. Uma nota a registar, quando se desenvolvem apps de apoio ao controlo sanitário em tempos de pandemia.
Como viveu o seu estado de emergência?
Como milhares de portugueses, confinado em casa, com a família. Mas, felizmente, com saúde. Fui daqueles privilegiados que estiveram em teletrabalho.
Essa é uma das novidades que podem sobreviver à pandemia?
Vai perdurar. Haverá tendência a acentuar-se a utilização deste mecanismo que estamos a usar [conversações via meios digitais], e isso, além do efeito que tem no mundo do trabalho e nas relações de trabalho, terá também um impacto muito grande na vida. Vai apagar a diferença entre a esfera pública e a esfera privada, entre a vida profissional e a vida familiar. Estando a trabalhar a partir de casa, as duas coisas confundem-se. Esta pandemia vai trazer muitas alterações ao nível profissional e pessoal.
Estamos a cumprir uma semana e meio de desconfinamento. Foi o momento certo para virar a página da emergência?
A Imprensa internacional disse que a forma como Portugal reagiu a esta pandemia era o “milagre português”. Eu não vou a tanto. Foi a reação de uma democracia madura, e isso deve orgulhar-nos.
Mas o timing foi o correto?
Quer do ponto de vista sanitário, quer do ponto de vista político, essa resposta foi altamente positiva. Do ponto de vista sanitário, o País respondeu de forma séria e proporcional. Nunca desvalorizou a gravidade do problema, mas também não se deixou cair em alarmismos e utilizou sempre um critério científico. Não só no confinamento mas também no desconfinamento, houve um critério científico – o R0. A partir do momento em que esse valor se aproximou do zero, foi possível fazer o desconfinamento. A estratégia revelou-se correta. O objetivo era não deixar colapsar o sistema de saúde, em particular os cuidados intensivos. O confinamento permitiu achatar a curva, e a situação, ao contrário do que aconteceu em Espanha ou Itália, nunca esteve fora de controlo. Isso foi positivo. Depois, do ponto de vista ético, as coisas também correram bem, porque nunca houve hesitação sobre qual era a prioridade: a vida humana e a saúde pública. Só depois de isso estar assegurado se pensou nos interesses económicos e na reabertura.
Em março, o Presidente da República queria decretar o estado de emergência e o primeiro-ministro resistiu a essa solução.
No início, pareceu haver essa não coincidência de compreensão da situação.
Ou terá sido o custo económico a pesar sobre a decisão política?
Não sei o que foi. Mas, apesar desse desacerto inicial, a partir daí a democracia funcionou. Houve cooperação institucional entre o Presidente da República, o Governo e a Assembleia. O estado de emergência foi decretado dentro do figurino constitucional. Mais importante: durante o estado de emergência, o Governo agiu sempre sob controlo democrático. A Assembleia da República esteve sempre a funcionar e o controlo democrático existiu sempre. E com tempo limitado. Acabou a emergência, acabaram os poderes excecionais do Governo. Além disso, o Governo e a oposição deram provas de cidadania. O Governo usou com proporcionalidade os poderes que lhe foram dados e a oposição cumpriu muito bem a sua missão, apoiando o Governo na emergência, mas nunca deixando de o fiscalizar. E há uma palavra que tem de ser dada aos cidadãos. Os portugueses, como tinha acontecido na crise do euro, mostraram um comportamento cívico extraordinário ao interiorizar as regras decretadas, que eram difíceis. Globalmente, a minha avaliação é positiva.
Dois momentos suscitaram fortes críticas: o 25 de Abril e o 1º de Maio. Com a generalidade dos cidadãos privados de liberdades e direitos, compreendeu a realização destas cerimónias?
São datas importantes e que devem ser assinaladas. Particularmente, o 25 de Abril. É algo absolutamente fundamental para afirmar a existência da democracia, mesmo em estado de emergência.
Naqueles moldes?
Era possível fazer essa comemoração com a mesma solenidade noutros moldes, mas pareceu-me que era aceitável dentro daquilo que eram as regras estabelecidas.
E o 1º de Maio?
Houve duas reações diferentes das centrais sindicais. A UGT optou por celebrar online e a CGTP, por celebrar no terreno com aquela manifestação de coreografia norte-coreana a que assistimos. Há um desfasamento entre o sacrifício que os portugueses fizeram, obrigados a ficar em casa, e essa comemoração. Mas, mais importante, pareceu uma comemoração voltada para trás, não compreendendo aquilo que será o futuro do trabalho.
Primeiro-ministro, Presidente da República e autoridades de saúde afastaram responsabilidades sobre o episódio. Quem foi o responsável?
Quem decidiu fazê-las. A autorização existia, e houve uma diferença muito clara entre uma central sindical que decidiu fazê-lo online e outra que decidiu fazê-lo no terreno.
Enquanto especialista em Segurança e Defesa, usaria uma aplicação de telemóvel que o notificasse por ter estado em contacto com alguém contagiado com o novo coronavírus?
Tempos excecionais exigem poderes excecionais. Em todo o lado, em todos os regimes, para responder às emergências, os governos têm poderes excecionais. A diferença é que, nas democracias, como vimos no caso português, os poderes estão sempre sob escrutínio democrático e sob controlo parlamentar. E são limitados no tempo, duram enquanto a exceção existe e extinguem-se com o fim da exceção.
E o eventual controlo que pressupõe este tipo de aplicações?
É preciso muita vigilância para que, finda a crise, a democracia plena regresse.
É um alerta que lança?
A toda a comunidade. Isso é válido para todo o tipo de medidas que podem ser tomadas nesta altura e que têm de ser escrutinadas quando termina o estado de emergência.
Compreende que haja uma maior valorização da segurança em detrimento da liberdade?
Por princípio, sou contra que se tomem medidas de carácter permanente sob o efeito da crise, no calor dos acontecimentos, porque não há distanciamento para legislar a quente. Sobretudo, quando se trata de direitos, liberdades e garantias.
Se o Governo decidir avançar por aí, não há como não legislar a quente.
Mas há condições que podem ser atendíveis para conciliar os dois valores: que esse tipo de aplicação não seja obrigatória; que se garanta o anonimato e a privacidade de quem fornece a informação; e que esses dados permaneçam durante o período em que são absolutamente necessários para garantir a saúde pública.
Neste momento, ainda nem é claro que entidade ficará responsável por gerir uma aplicação deste tipo. Isso é motivo de particular preocupação?
Tudo o que tenha que ver com direitos, liberdades e garantias é motivo de preocupação. Mas uma aplicação dessa natureza terá de ter parecer positivo da Comissão Nacional de Proteção de Dados
É justo concluir que, em momentos excecionais, as defesas baixam e há maior disponibilidade para trocar liberdade por segurança?
É. Mas por isso é cada vez mais necessária a vigilância da sociedade civil e o permanente controlo democrático.
A resposta à crise joga-se muito no plano europeu. Já defendeu que, depois da crise do euro e da crise dos refugiados, esta seria uma terceira hipótese para garantir o futuro da União Europeia (UE). É agora ou nunca?
Nunca há agora ou nunca, mas esta é uma hipótese decisiva, que vai condicionar seguramente o futuro da União. A UE sempre aproveitou as crises como uma oportunidade, saiu mais forte e coesa.
Mas continuamos a ver um grupo que roga por solidariedade e outro grupo que veste a capa de arauto da moral. A UE aprendeu alguma coisa com os erros dos últimos dez anos?
É o que vamos ver agora, com esta crise. A UE está confrontada com dois desafios muito importantes, ambos relacionados com princípios constitutivos da União: o da solidariedade e o do Estado de direito.
Está confiante num consenso para o fundo de recuperação europeu?
Confiante, não estou. E o facto de a Comissão Europeia não ter apresentado a proposta na data prevista não é um sinal positivo, dá a ideia de que não houve consenso. O essencial vai jogar-se nas negociações entre os vários Estados-membros. Sabemos que há quatro Estados do Norte absolutamente intransigentes em que a fórmula de concessão desse dinheiro seja a título de empréstimo. Isso tem impacto na dívida dos Estados….
Já de si fragilizados.
E os outros Estados, que defendem o modelo de subvenção, a fundo perdido.
O que seria um desfecho positivo?
O consenso vai ser um compromisso entre ambos, e tudo se vai jogar nos detalhes. Há muitos fatores de natureza técnica mas que têm um reflexo político e que vão condicionar o resultado final. Tudo vai estar na mão da Alemanha, é ela que tem a capacidade de poder influenciar os quatro Estados do Norte. Vai depender da forma como a Alemanha encarar o futuro da UE. Até agora, Berlim encarou a crise europeia como um custo económico que tem de pagar e, portanto, é um fardo. Se continuar a vê-lo como um custo económico, o resultado não vai ser positivo. Se disser que é na Europa que joga o seu destino geopolítico, aí fará pender o fiel da balança para um compromisso favorável aos países do Sul.
António Costa fez questão de distinguir Berlim do restante grupo dos chamados “frugazes”.
E muito bem. A senhora Merkel tem aqui um papel muito importante e tem condições para jogar esse papel histórico. Está no último mandato e não vai submeter-se a eleições. Portanto, está menos condicionada pela política interna alemã. Pode, nesta altura, achar que o seu destino é um destino europeu e que quer ficar na história da construção europeia como ficou Helmut Kohl no fim da Guerra Fria. Mais livre dos condicionalismos políticos internos, pode jogar essa cartada para ficar na história europeia.
Noutro polo geográfico, a China partilhou equipamentos médicos com meio mundo depois de ser acusada de negar informação sobre a disseminação do vírus. Como sai a imagem de Pequim deste episódio?
Esta tensão entre Pequim e Washington é o exemplo mais acabado de como estão as relações internacionais entre as duas grandes potências, uma ainda dominante e uma emergente. Ambas tiveram reações à crise paradigmáticas de um Estado autoritário e de um Estado de um líder populista. A China acaba por perder um mês, mês e meio que teria sido essencial para o controlo inicial dos contágios. Aí, há uma responsabilidade clara do Governo chinês. Quando a situação se tornou incontrolável, tomou medidas draconianas, independentemente dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E, como acaba por controlar a pandemia, o seu último comportamento é de aproveitamento político. No plano interno, glorificando os seus dirigentes e, no plano externo, aproveitando a situação para se apresentar como a potência que é capaz de ajudar os outros Estados. No fundo, para dizer que é a potência útil.
A ação errática de alguns países ocidentais, com os EUA à cabeça, contribui para que Pequim saia com uma imagem menos fragilizada desta crise?
Esse é um ponto. Os EUA foram, até esta crise, a grande potência hegemónica em termos internacionais, desde o fim da Guerra Fria. Com a Administração Trump, muda-se o pressuposto da política externa americana de ser o líder global e liderar todas as crises internacionais até este momento. A Administração Trump faz o contrário. Fecha o país sobre si próprio – “America First” – e abandona a ideia da hegemonia internacional. Foi muito claro que, na crise do coronavírus, não houve liderança americana. Houve um vazio de estratégia, não houve liderança da crise. E esse vazio, é a China quem vai tentar ocupá-lo.
Foi a oportunidade de que Pequim precisava?
A ausência de liderança de Washington criou o vazio internacional para que a China se tornasse a potência útil. Ainda é cedo para saber como vai ser o futuro, mas podemos traçar cenários.
Que cenários?
Podemos imaginar três. O primeiro é o de business as usual, em que a crise, apesar de tudo, não tem um impacto profundo na evolução da cena internacional e em que a rivalidade entre China e EUA se retoma no ponto em que estava antes da crise. O segundo cenário é o da aceleração do declínio americano e de consolidação da emergência chinesa, aquela que era a tendência aparente.
E a terceira hipótese?
Que a crise sirva para os EUA como uma vacina, não para o vírus, mas para evitar o seu próprio declínio e a consolidação da China como grande potência. E para que os EUA regressem à ideia de multilateralismo e de hegemonia internacional. Mas isso tem um pressuposto: que a Administração Trump não continue em funções depois das próximas eleições.
Em nenhum desses cenários a UE assume um papel particularmente relevante.
Neste terceiro cenário, a nova política externa americana precisaria de refazer a aliança com o Ocidente e retomar a aliança com a UE. Isso significaria que, contra uma ordem internacional pós-democrática chinesa, era preciso restaurar uma ordem internacional liberal, com as potências defensoras da democracia liberal: o Ocidente e, em particular, a Europa. Desejava que desta crise saísse o reforço de uma ordem internacional liberal renovada. Mas não temos, neste momento, a certeza daquilo que vai acontecer.