Estávamos a 4 de janeiro de 2019. Ao gabinete de Eduardo Ferro Rodrigues, por via do correio do cidadão, chegava uma carta assinada pelo então líder da Iniciativa Liberal (IL), Carlos Guimarães Pinto, a solicitar que o presidente da Assembleia da República avançasse com uma queixa-crime junto do Ministério Público (MP) para que a polémica das presenças-fantasma dos deputados em sessões plenárias fossem investigadas. Em vão. Até hoje, Ferro Rodrigues não acedeu ao pedido nem fundamentou a opção.
Na missiva a que a VISÃO teve acesso, a IL (na altura, ainda sem representação parlamentar) frisava que, “tal como o público em geral”, tinha tomado conhecimento nas semanas anteriores de “factos amplamente divulgados na comunicação social” que poderiam configurar “uma séria indiciação da prática de crimes por parte de deputados”. O repto tinha por base a ideia de que poderia tratar-se de uma “prática generalizada”, como assumira Maria das Mercês Borges, ex-parlamentar do PSD acusada da prática de um crime de falsidade informática agravada e de outro de abuso de poderes, conforme a VISÃO noticiou em primeira mão, por ter votado contra o Orçamento do Estado para 2019 em nome do antigo secretário-geral dos sociais-democratas Feliciano Barreiras Duarte.
A essa carta foi anexada a denúncia apresentada pelos liberais à Procuradoria-Geral da República, para a qual era pedido amparo institucional do Parlamento, uma vez que, frisava o partido, a confirmar-se que se tratava de uma conduta corrente nas diversas bancadas, poderia estar em causa “o regular funcionamento e a confiança [dos cidadãos]” no órgão de soberania a que Ferro Rodrigues preside.
Isto porque entre os potenciais crimes que eram elencados pela IL constava o de acesso ilegítimo (previsto na Lei do Cibercrime) ao sistema informático do Parlamento, que, devido à sua natureza semipública, dependeria de queixa do proprietário ou titular do direito do dito sistema que fora alegadamente violado, ou seja, do próprio Ferro Rodrigues, enquanto representante máximo da Assembleia da República.
“Cremos que V.ª Excelência não deixará de reconhecer que a especial gravidade dos factos já conhecidos e os danos, já causados e potenciais, à respeitabilidade do órgão a que preside não permitem outra atitude que não seja a de garantir que sejam levadas até às últimas consequências o apuramento dos factos e a consequente responsabilização, nomeadamente criminal, dos eventuais infratores”, escreveu Guimarães Pinto.
Em todo o caso, além da confirmação da receção da missiva, a VISÃO sabe que a IL não recebeu, até ao dia de publicação deste artigo, qualquer feedback do gabinete do presidente da Assembleia da República. E mais: Ferro Rodrigues chegou a convocar uma reunião da conferência de líderes para debater o registo de presenças e o uso indevido de passwords em plenário, mas o repto da IL nunca foi sequer mencionado, garantem à VISÃO fontes que tinham assento naquele órgão.
“É estranho um silêncio de mais de um ano e é legitimo questionar se será um silêncio conivente para tentar encobrir práticas que, além de serem crime demonstram uma enorme falta de ética e um tremendo desrespeito pelos eleitores e pela democracia”, desabafa uma fonte do partido atualmente chefiado por João Cotrim de Figueiredo.
Interrogado pela VISÃO sobre as razões que o levaram a não aceder ao pedido da IL ou a não avançar ele próprio com uma denúncia às autoridades judiciais, Ferro Rodrigues não respondeu. E também não adiantou se agora, atendendo a que o MP não está a investigar todos os outros casos similares ao que envolveu Mercês Borges e Barreiras Duarte, tenciona diligenciar nesse sentido.
O episódio do voto irregular que a IL denunciou ao MP veio a público em novembro de 2018, através de uma notícia do Sapo 24, tendo depois um vídeo da sessão, divulgado pelo Observador, confirmado a ausência do deputado. Nessa altura, recorde-se, a bancada do PSD já estava a ser fortemente atacada por terem sido descobertas várias situações de presenças-fantasma: de José Matos Rosa, secretário-geral nos tempos de Pedro Passos Coelho, a José Silvano, que passou a ocupar o mesmo cargo no partido com Rui Rio, após a saída de Barreiras Duarte, passando ainda pelo ex-líder da JSD Duarte Marques.
Além de Mercês Borges (já acusada), só Emília Cerqueira (ainda deputada e coordenadora social-democrata na comissão de inquérito às fraudes na reconstrução de Pedrógão Grande) foi constituída arguída pelas alegadas presenças-fantasma. A parlamentar eleita por Viana do Castelo registou “inadvertidamente” José Silvano em dois plenários, usando a password do secretário-geral do PSD, quando este se encontrava a quilómetros de Lisboa.