Professor jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da mesma universidade, Boaventura de Sousa Santos, 79 anos, lança agora, com a chancela da Almedina, um ebook intitulado “A Cruel Pedagogia do Vírus”. Dividido em cinco capítulos, o pequeno volume reflete, sobretudo, sobre os impactos sociais da pandemia da Covid-19 e lança pistas para uma possível reformulação do sistema político e económico que desenvolveu a globalização, tal como a conhecemos. O pequeno volume serve de aperitivo para um novo livro, que se intitulará “O Futuro Começa Hoje”, e que será lançado ainda este ano. Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, EUA (1973), Boaventura de Sousa Santos tem uma longa experiência académica e de trabalho de campo, sobretudo, na América Latina, onde os seus trabalhos são amplamente reconhecidos. O académico foi, durante longos anos, colunista da VISÃO.
Dizem-nos que esta pandemia afeta todos por igual. Mas será mesmo assim?
Não é bem assim. Não é uma doença tão democrática como se diz. Ela está a atingir mais aquelas classes sociais que já estavam mais vulneráveis antes. Se tomarmos dois bairros de São Paulo, uma das cidades brasileiras mais atingidas, verificamos que, na favela Brasilândia, a taxa de mortalidade relativamente às pessoas afetadas é de 60 or cento. Mas no Bairro Morumbi, a taxa é de 2 por cento! Se olhar para as recomendações da OMS, elas pressupõem uma classe média que não existe em grande parte do mundo. Quem é que tem água para lavar as mãos oito vezes por dia? Estima-se que 1% da população mundial nem acesso a água potável tem… Distanciamento social? Em campos de refugiados, por exemplo?…
Ou seja, estas recomendações – mesmo no nosso País – são como que destinadas a uma bolha da sociedade? São inteligíveis ou exequíveis para a generalidade da população?
De maneira nenhuma. A quarentena é algo de concreto para pessoas distintas e tem impactos muito diferentes. O teletrabalho não é possível para todos aqueles que cuidam dos que efetivamente ficam em teletrabalho… E nem se restringe a grupos socialmente mais vulneráveis, como constatamos com os efeitos da exposição do pessoal médico…
Contraditoriamente, o senhor parece congratular-se, no seu livro em formato ebook, com alguns aspetos positivos desta pandemia: o facto de as pessoas terem descoberto vantagens antes desconhecidas, mais tempo para dedicar aos filhos, para refletir e estudar, um ambiente mais limpo, uma disposição menos consumista… Mas os grupos sociais com os quais o senhor se preocupa não sentem nada disto, na prática… Há um mundo real que não joga com os aspetos positivos que identifica… Essa nova vida é sustentável para o futuro? Ou apenas estamos a passar por um limbo, um lapso temporal?…
Tem razão: é que, além do mais, o vírus agrava as desigualdades.
… Que são pré-existentes ao vírus, não foi a Covid-19 que as criou…
Claro, mas o vírus coloca tudo isso mais evidente. O novo coronavírus chega a zonas e bairros que acabam de lidar com outras epidemias, como alguns casos identificados de dengue. Eles nem sequer se libertaram anda do dengue e já têm esta pandemia a bater-lhes à porta… Quando eu falo das liçoes do vírus é outra coisa: há aqui uma oportunidade para uma mudança no futuro ou não há? É isso que quero dizer, e que me interessa refletir…
O senhor fala das lições e da forma como podemos tirar ilações positivas para o futuro. Critica o capitalismo e o consumismo, dizendo que, tal como estava antes, não é solução. Mas, na China, assim que a loja da Hermès foi aberta, bateu logo recordes de vendas… Não acha que o que as pessoas querem é exatamente aquilo que, durante algum tempo perderam? E que, recuperados da crise, voltaremos todos ao mesmo? As pessoas estão sequiosas de recuperar o que perderam e, na primeira oportunidade, fá-lo-ão… Isto parece desmentir a tese de que podemos vir a pensar diferente…
É e não é… Num primeiro momento, haverá esse movimento, que é normal. Mas a “normalidade”, como a identificávamos, não poderá existir, perante a perda de rendimento que afetará toda a população. E, nos próximos 18 meses, pelo menos, também por razões sanitárias. Temos uma pandemia intermitente. O que eu quero enfatizar é que nós vivemos num sistema no qual nos disseram que não havia alternativa. O mercado comandava tudo. Ora, veio a pandemia e deixou de se pensar em mercado… Tivemos que arranjar alternativas… As pessoas procuraram o Estado…
Mas as pessoas procuram o Estado num momento de aflição. Não quer dizer que isso funcione assim em tempos normais… O que nos faz supor que é de prever o regresso à tradicional narrativa de mercado como principal regulador das relações sociais…
Não é só isso: isto pode evoluir para pior. Até já há alguns sinais disso, com a especulação financeira a atacar a dívida dos países. Pode haver uma austeridade muito pior do que a que já conhecemos. Há um comportamento a que chamo uma espécie de capitalismo corsário, como o do desvio de máscaras e de outro equipamento de proteção ou médico. Mas a sua pergunta pressupõe o regresso à normalidade. E essa perspetiva não se vislumbra, neste momento.
Mas não estaremos a observar a realidade com lentes de ver ao pé? Influenciados pelas expectativas do presente? Tivemos outras catástrofes. Na II Guerra Mundial, 50 milhões de mortos e a Europa destruída. Quais seriam as expetativas de um cidadão europeu em 1945?… Ora, não só se voltou à normalidade, como tudo melhorou, relativamente ao que existia antes…
Sim, mas, por outro lado, nos últimos 30 anos, assistimos a grandes perdas sociais. Assistiu-se a uma grande deterioração dos serviços nacionais de saúde. Os países que pior geriram esta crise, como a Itália e a França foram dos que mais privatizaram a saúde. Portugal aguentou-se bem porque o nosso SNS ainda não foi totalmente privatizado… Ora, há aqui uma oportunidade. Gastar dinheiro em Saúde e Educação públicas não são um custo, mas um investimento, e talvez tiremos a lição de que precisamos de um pouco mais de soberania industrial. É extraordinário que um país tão poderoso como os EUA nem sequer produza as máscaras em quantidade para prover às necessidades, nesta pandemia, e tenha que as importar da China. Ora aqui está outro aspeto que tem de mudar. Portanto, eu vejo aqui uma oportunidade. A depressão de 1929 permitiu que se criassem, depois, sistemas de segurança mais eficazes… O que nós sabemos é que a dinâmica do vírus se agrava e que este modelo de extração dos recursos naturais, de exploração de energia fóssil, de desmatamento da Amazónia, com o aquecimento global e a crise climática, não é um modelo capaz de enfrentar esta crise e as que se seguem, por via, por exemplo, desses problemas ambientais. Será que vamos agora aproveitar esta oportunidade para fazer uma reconversão da política energética, para acabar com os mega projetos? Até há pouco tempo, quando falávamos nisto, parecíamos uns “dissidentes” ou uns “lunáticos” marginais. Ora, agora, tudo isto passou a estar nos editoriais do Finantial Times… Ou seja, o próprio sistema chegará à conclusão, no mínimo, que, para que tudo fique na mesma, é preciso que mude alguma coisa…
O senhor dá exemplos de países com menos lealdade à lógica neoliberal, e que lidaram melhor com a crise. Todos países asiáticos: Japão, Coreia do Sul, Singapura, Taiwan o a própria China. Mas não será que isso tem mais a ver com questões culturais? As populações já usavam máscaras antes e têm uma cultura de disciplina e obediência e de temor ao Estado que não se verifica no Ocidente… Mas são sociedades altamente consumistas…
Dei esses exemplos para demonstrar que a questão não tinha a ver com o regime político, dado que, na Europa, se dizia que a China controlou a crise graças às medidas draconianas só possíveis em ditadura. A maior parte dos outros citados são democracias, e também conseguiram resultados positivos. Acontece que, sendo sociedades consumistas, têm uma enorme presença do Estado na economia. Como regulador. As empresas – uma Samsung, uma Toyota – não fazem nada sem se coordenaram com as políticas estratégicas estatais. A China tem milhões de estudantes a estudar no ocidente, para melhor conhecerem as lógicas ocidentais e para, depois, aplicarem os seus conhecimentos no seu país e nas suas empresas. Há quem diga que a cultura confucionista criou muito essa ideia mais coletivista. E que nós somos mais sensíveis aos direitos individuais. Mas mesmo aqui na Europa há diferenças. A Grécia está com bons resultados, mas tomou medidas muito duras, ao nível das asiáticas, no controlo da população…
Mas a Alemanha, que tem sido vista como paladina de ideias neoliberais na zona euro, está a ter excelentes resultados no controlo das pandemia, sobretudo na taxa de recuperação de doentes e na mortalidade baixíssima…
A Alemanha é muito neoliberal para o exterior, para vender… Internamente, sempre tiveram uma disciplina e uma presença do Estado muito forte. As grandes empresas são administradas pelos empresários, mas também com a participação dos trabalhadores… É um outro modelo!
O senhor segue muito atentamente os media. Os órgãos de comunicação social estão a ter um bom desempenho nesta crise?
Esta pandemia já serviu para reabilitar os órgãos de comunicação de referência em países onde a “indústria” de produção de fake news ia tomando a dianteira. Sobretudo no Reino Unido, nos EUA e no Brasil. Na hora da verdade, apertados pela incerteza e pelo medo, as pessoas selecionam a informação mais credível. A TV Globo já tinha perdido a liderança, no Brasil, e recuperou-a.
O senhor fala, no seu texto, da necessidade de uma maior articulação entre “processos políticos” e “processos civilizatórios”. O que é que quer dizer com isso?
Esse é um dos meus temas favoritos (sorrisos). Processo civilizatório acontece sempre que nós discutimos alternativas. Exemplo: a gente hoje trabalha com energia fóssil nos nossos táxis. E se fossem obrigatoriamente elétricos? E se a energia nuclear fosse abandonada? São exemplos, da agenda ambiental, só para dar exemplos. Pelo menos simbolicamente, ate à queda do Muro de Berlim, havia dois modelos alternativos. Depois veio a narrativa da ausência de alternativas e do fim da História. Ora, no processo político, tende a gerir-se o corrente, sem discutir os processos civilizatórios. A política tem hoje atores mais medíocres do que já teve, na Europa, têm menos mundo e menos cultura, e isso também conta.
Também, houve um período de expansão e crescimento na Europa, em que era mais fácil ser-se um grande político… Era mais fácil fazer omeletes… O senhor refere-se, no seu texto, à degradação do Estado Social. Bem, mas ele só existia na Europa Ocidental, e foi mais forte enquanto outras latitudes não começaram a competir connosco – e a deixar de morrer de fome…
Tem razão quando sugere que a social-democracia, que pretendia combinar altos níveis de produtividade com altos níveis de proteção social, se aguentava à custa da exploração sem limites das riquezas do 3.º mundo. Mas acontece que essa exploração continua – e os direitos sociais perderam-se! O que ocorreu nos últimos 30 anos foi uma grande concentração da riqueza.
Sim, os próprios números do Banco Mundial indicam o aumento das desigualdades, neste período. Mas dá a ideia de que, mesmo com maior diferença entre ricos e pobres, os pobres evoluíram alguns patamares e vivem com mais rendimento do que antes… Números do programa das Nações Unidas com os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio dizem que a taxa de pobreza extrema era de 36% em 1990, de 18% em 2010 e de apenas 10% em 2015. E que 52% viviam, em 1981, com menos de 1,25 dólares por dia e que, em quantias equivalentes, apenas 10% estavam nessa situação, em 2015… A globalização não tirou milhões da miséria?
Esses números baseiam-se em indicadores do PIB. Não nos dizem absolutamente nada sobre a distribuição da riqueza. É a velha história do frango comido por duas pessoas, em que uma come o frango todo mas, estatisticamente, cada um comeu meio frango. A deslocalização industrial baseou-se em mão de obra mais barata e com um ritmo de trabalho que nenhum ocidental aguentaria.
Progressivamente, a economia produtiva tem perdido valor, em comparação com a economia financeira e especulativa. Até já vimos bancos a emprestar dinheiro para investimentos no mercado de capitais, em vez de o emprestar ao setor produtivo…
Há uma noção relativamente recente que pode ajudar a mudar esse estado de coisas: a relocalização. A deslocalização terá ido longe de mais, os EUA estão traumatizados pela perda industrial – o Trump teve de invocar uma lei do tempo da Guerra da Coreia para obrigar a General Motors a fabricar ventiladores! Portanto começa a haver uma ideia de regresso à produção industrial. O Presidente Marcelo, que não é um homem de esquerda, já chamou os cinco presidentes dos maiores bancos para lhes pedir que, tendo os contribuintes salvado a banca, sejam agora os bancos a salvar as famílias e as empresas. Isto revela já alguma mudança de adenda – e de mentalidades. Se não houver uma regulação do capital financeiro e uma refundação do Banco Mundial e do FMI, teremos outra crise global a somar à do novo coronavírus.