Aborto, eutanásia, barrigas de aluguer, procriação medicamente assistida (PMA), casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção por casais homossexuais, linguagem. Todos estes são temas que queimam e que vão estar em discussão este fim de semana, 25 e 26, quando o CDS se reunir para o 28º Congresso. No conclave que vai definir o homem que se vai sentar no lugar da mulher que foi acusada de relativismo moral e de ignorar o ADN do partido, a agenda “fraturante” promete aquecer os ânimos em Aveiro.
Se em 1978 Mário Soares garantiu que não poria o socialismo na gaveta, em 2020 Abel Matos Santos, Carlos Meira, Filipe Lobo d’Ávila, Francisco Rodrigues dos Santos e João Almeida evitam guardar o conservadorismo no baú. No entanto, entre as juras de fidelidade à pureza doutrinária, há declarações de intenções a menos e omissões a mais. Num partido mergulhado numa crise (eleitoral e identitária), cautela e timidez são palavras de ordem. Mesmo os que defendem uma direita descomplexada percebem que, nos costumes, podem ser conservadores, sim, ma non troppo.
O caso mais flagrante é o de Francisco Rodrigues dos Santos, que é tido como o herdeiro do conservadorismo hard. Conhecido por posições polémicas nas questões culturais e depois de ter acusado a direção de Assunção Cristas de “contorcionismo”, o texto que leva a votos é bastante desnatado. Exemplo? A inexistência de referências à alteração da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez (IVG).
Confrontado pelo Expresso, o presidente da Juventude Popular (JP) procurou minimizar os danos junto dos seus fiéis: “O aborto, fora dos casos previstos na lei, continua – e bem – a ser crime. Se a pergunta é se passámos a concordar com o facto de o Estado promover a liberalização total da IVG até às dez semanas, a pedido exclusivo da mãe, independentemente de quaisquer circunstâncias, não, não passámos.”
A formulação também é travada quando se trata da eutanásia. Rodrigues dos Santos sublinha apenas que o partido deve fazer uma “defesa intransigente da vida humana, desde a conceção até à morte natural”. Há dois anos, ao Diário de Notícias, vincava que a morte assistida vinha “colocar em perigo as franjas mais desfavorecidas e vulneráveis da nossa sociedade”. A solução, reforçava, tinha de passar por “cuidar das pessoas, e não matar o problema”.
Sobre as barrigas de aluguer e a PMA, nada adianta. Já o casamento de homossexuais é um problema que “perdeu atualidade”, ao passo que acerca da adoção de crianças por casais homossexuais, não escreve nada na moção. Há dois anos, era perentório: “O grande erro deste debate tem sido o de centrar-se na questão da homossexualidade e não no interesse das crianças. Mais do que avaliarmos a vontade de ter filhos, devemos procurar saber o que é melhor para a formação e desenvolvimento de uma criança; e eu entendo que deve haver uma complementaridade de sexo no seu desenvolvimento e crescimento.”
Contra o “animalismo” e o “multiculturalismo guetizante”
Aquele que é visto como o candidato da continuidade, João Almeida, também não se compromete demasiado. Na moção, o porta-voz da direção cessante só não passa ao lado de dois assuntos muito caros às bases: a eutanásia e o dito policiamento da linguagem. Sobre a primeira, não se desvia do guião: defesa da “dignidade da pessoa humana, em todas as fases da vida” e a construção de “políticas positivas, nos diversos momentos da vida”, isto é, da “promoção da natalidade à proteção na velhice”.
O ex-secretário de Estado da Administração Interna respondeu ao Expresso que a despenalização da morte assistida “representaria um grave retrocesso civilizacional”, mas não se manifestou sobre a hipótese de referendo. Na moção, o deputado é incisivo na recusa de novos ditames sociais: “Instalada nos meios de comunicação e nas universidades, a esquerda totalitária, que colonizou intelectualmente o PS, quer decidir o que os portugueses têm de pensar, que palavras e conceitos podem usar, que espetáculos lhes é permitido frequentar e o que devem comer. Enquanto apregoa a tolerância, a diversidade e a inclusão, esta mesma esquerda proíbe o respeito pela História de Portugal, insulta as Forças Armadas e de segurança, ofende e hostiliza o mundo rural, degrada a condição humana enquanto exalta o animalismo, promove o ‘multiculturalismo’ guetizante e vigia o sentido de humor.”
Embora não fale de casamento homossexual na moção, já recordou que votou “numa solução diferente”, a união civil, mas sustentou que “leis com este impacto” não podem ser mudadas “a toda a hora”. E aborto? Mudanças “só poderiam resultar de nova consulta popular”.
O candidato que personifica uma espécie de terceira via nos democratas-cristãos, Filipe Lobo d’Ávila, é cristalino sobre as chamadas questões da vida. “Não tivemos receio de enfrentar o aborto livre, não desistimos de o ir enquadrando – apesar da sua legalidade. Não poderemos jamais abandonar a defesa da vida que se perde, não poderemos jamais deixar de lutar com civilidade – mas muita firmeza – pela reversão gradual deste retrocesso civilizacional apoiando as mães, enquadrando socialmente as famílias, ajudando a construir projetos de vida viáveis”, propõe na moção, tendo clarificado, porém, ao Expresso, que não advoga a criminalização do ato, por esta implicar “uma pena, um castigo social público e notório”.
Quanto à eutanásia, critica o Governo por não a ter inscrito no programa e denuncia a estratégia de “repetir votações até obter o resultado pretendido”. E aponta o seu caminho: “Neste quadro de democraticidade muito duvidosa, o CDS terá de o denunciar veementemente, advogando, como via única e última de revisão da lei atual, a consulta popular por via de referendo. Entendemos que a vida não se referenda, mas se necessário for entendemos que não se poderá deixar de recorrer a essa última ratio.”
Ainda que não considere “sensato, justo ou humano” reverter a legalização do casamento entre casais do mesmo sexo, o dirigente que fez oposição interna a Cristas é categórico sobre a adoção. “Para nós, a adoção será sempre, pela sua natureza, o processo mais discriminatório possível em relação aos candidatos a adotantes. A criança e o seu superior interesse são a única premissa que deverá nortear todo o processo, tendo o absoluto direito a que o Estado lhe proporcione a família mais adequada ao seu desenvolvimento harmonioso. Não escondemos que o critério de dar um pai e uma mãe a estas crianças deve estar na linha da frente dos mecanismos de decisão (…)”, fundamenta o antigo secretário de Estado da Administração Interna, para, de imediato, concluir: “Questões de moda, de desconstrução do modelo social vigente, conducentes ao experimentalismo social com as crianças que toda a sociedade tem o dever de proteger não contarão com a nossa compreensão, muito menos o nosso apoio.
Lobo d’Ávila lamenta ainda o problema de “controlo ideológico do ensino”. “A esquerda, muito influenciada pela extrema-esquerda e por correntes de pensamento internacionais militantes do chamado politicamente correto, envolveu-se numa cruzada de formatação do pensamento através da escola. A questão da ideologia de género, pelo ridículo e pelo choque aviltante que provoca em muitas circunstâncias, tal como a adulteração do ensino da História, são os pontos mais visíveis do processo de ideologização em curso”, explicou.
Os candidatos
São cinco, tal como os deputados que o partido elegeu, e têm perfis completamente diferentes
1 – Abel Matos Santos
Porta-voz da Tendência Esperança em Movimento
Psicólogo clínico e sexologista, 46 anos
2 – Carlos Meira
Ex-presidente da concelhia de Viana do Castelo
Empresário, 34 anos
3 – Filipe Lobo d’Ávila
Conselheiro nacional e líder do grupo Juntos pelo Futuro
Advogado, 45 anos
4 – Francisco Rodrigues dos Santos
Presidente da JP
Advogado, 31 anos
5 – João Almeida
Deputado e porta-voz do partido
Jurista, 43 anos
Uma moção em branco e um texto à Tea Party
Opaca sobre todos estes pontos é a moção de Carlos Meira. O ex-presidente da concelhia de Viana do Castelo, outsider na disputa, que tem falado em limpezas do partido com lixívia, tem, assim, respondido a conta-gotas às questões que lhe vão sendo colocadas. Entende que os partidos e os deputados “não estão mandatados” para decidir sobre a eutanásia, opõe-se à revisão da lei sobre o aborto, entende que deveria ser criada “outra figura” para regular as uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Meira socorre-se das raízes minhotas para marcar posição sobre o que é transmitido nas escolas. “Partindo do princípio de que a ideologia de género entende que não se é do sexo a que corresponde a masculinidade ou a feminilidade biológica, mas do género a que cada qual decide pertencer. Ou seja, a substituição do ‘sexo’, que são só dois – o feminino e o masculino – pelo ‘género’… causa-me, perdoando e respeitando opinião contrária, alguma confusão”, disse há poucas semanas, antes de ilustrar com o caso de um funcionário da sua empresa agrícola que lhe apareceu “perturbado” porque ao filho teria sido ensinado que “agora haveria três sexos”.
O mais controverso dos aspirantes ao trono, por liderar uma corrente ultraconservadora, a Tendência Esperança em Movimento (TEM), que foi equiparada ao Tea Party, tem também várias lacunas na moção. Abel Matos Santos não apresenta ideias em domínios como a gestação de substituição ou a PMA (a que o partido se opôs na última legislatura) nem trata de questões como o consumo de drogas leves (sempre delicadas no CDS).
Pelo caminho ficaram as considerações que fazia em 2010, n’O Diabo, sobre “transexualismo” e as alterações legislativas que se discutiam à data. Opondo-se a que a mudança de sexo pudesse ocorrer sem intervenção de tribunais, lamentava aquilo a que chamou “barbaridade jurídica”. Contudo, o líder da TEM deixa de lado as meias-palavras quando escreve sobre aborto. Quer “revogar a admissibilidade” da IVG fundada em “mera vontade” da mãe, exigindo “sempre a existência de uma justa causa”. E adota o mesmo registo em relação à eutanásia, opondo-se à consulta popular: “Este procedimento também é um atentado à vida e precisa de ser combatido. A área de ação não deverá limitar-se somente a ações punitivas contra os seus agentes, mas [passará] por conceber e aumentar a disseminação dos meios e dos equipamentos sociais destinados a permitir que o final da vida seja o mais confortável e natural possível. Passa ainda por prever medidas e dotar de meios de apoio aos que sentem que a sua vida não merece a pena ser vivida.”
O léxico é semelhante quando se bate pela “revogação da legislação permitindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção fora da biparentalidade”. Ainda no plano do matrimónio (ou do seu fim), quer apertar a malha ao divórcio unilateral, ou seja, por vontade de apenas um cônjuge, uma vez que, alega, “é mais fácil cessar o contrato de casamento do que o contrato de trabalho ou de arrendamento”. Além disso, é apologista da “extinção imediata da ideologia de género nas escolas”.
Para a TEM, refira-se ainda, é um ponto de honra escrever à luz das regras antigas. A recusa de adoção do Acordo Ortográfico de 1990 é absoluta. Como gracejava, há umas semanas, Matos Santos, em declarações à VISÃO, esse era só mais um “ponto de contacto” com Francisco Rodrigues dos Santos. Será um sinal?