A Assembleia do Livre – o órgão mais alargado entre congressos – aprovou esta quarta-feira, por unanimidade”, uma adenda ao congresso que, a ser aprovada, levará ao retirar da confiança política a Joacine Katar Moreira. Na prática, isso significa que, três meses depois da estreia na Assembleia da República, o partido perde a sua representação parlamentar. Uma situação inédita na história da democracia portuguesa, que o Livre justifica com um argumento: depois de meses de desentendimentos e acusações mútuas em público, “não se vislumbra da parte da deputada, Joacine Katar Moreira, qualquer vontade em entender a gravidade da sua postura, nem intenção de a alterar”.
No documento divulgado pela Assembleia, apontam-se diversas falhas à (ainda) deputada única do Livre. Joacine descurou sistematicamente o partido na sua atividade parlamentar, não foi capaz de reestabelecer uma “relação de confiança” com a direção do Livre – ao ponto de não haver contactos pessoais com qualquer elemento do Grupo de Contacto – e há longas semanas que não marca presença nas reuniões de direção de que faz parte, não tendo apresentado qualquer justificação para essas ausências. A resolução faz uma descrição pormenorizada da situação – mas já lá vamos.
Com esta tomada de posição da Assembleia, é a segunda vez, na mesma semana, que Joacine Katar Moreira vê ser posta em causa a sua ligação ao partido pelo qual foi eleita em outubro. Antes, um grupo de cinco militantes já tinha subscrito e apresentado à votação do congresso uma moção onde se defende que, se a deputada não aceitar renunciar ao mandato que conquistou na últimas legislativas, o Livre deve retirar-lhe a confiança política.
Apesar destes dois episódios, Joacine Katar Moreira mantém-se em silêncio. O único sinal público que deu sobre este tema foi uma publicação, no Twitter, esta quinta-feira. Junto com uma notícia que dava conta da decisão da Assembleia, Joacine deixou um comentário: “E isso, que implicação tem no trabalho na Assembleia da República?” A VISÃO tentou obter uma reação da deputada mas não obteve resposta até ao momento.
Uma despedida em nove pontos
O que diz, em concreto, a resolução da Assembleia? Que falhas são apontadas a Joacine Katar Moreira para que o partido tenha decidido dar este passo radical? O documento começa por recordar as nove exigências e reparos que a Assembleia apresentou, em dezembro, sobre este caso. Em três pontos essenciais, considera a Assembleia, Joacine falhou.
Falhou, primeiro, ao “descurar, reiteradamente”, o envolvimento do partido no trabalho que foi desenvolvendo na Assembleia da República. E isso traduziu-se “na reduzida comunicação com o Grupo de Contacto no que concerne às negociações com o Governo relativas ao Orçamento Geral do Estado 2020” e, também, “no desinteresse demonstrado no trabalho preparatório desenvolvido pelos Círculos Temáticos na preparação das propostas do Livre relativas ao OGE 2020”.
Além disso, refere a adenda que deverá ser votada em congresso, “a deputada não foi recetiva e ignorou o apoio técnico disponibilizado pelo partido para elaboração e apresentação de iniciativas legislativas, nomeadamente na proposta da Lei da Nacionalidade”. Um diploma que tinha sido bandeira do Livre durante a campanha para as legislativas e de que o partido acabou por ficar arredado quando viu a sua proposta ser rejeitada em votação na generalidade, sem ter beneficiado – por não ter requerido – da baixa à comissão sem votação. De resto, a direção do partido “só teve conhecimento” do documento “no próprio dia de entrega na Assembleia da República”.
Num segundo momento, Joacine, considera a Assembleia, também não conseguiu “reestabelecer uma relação de confiança com o Grupo de Contacto”. O Parlamento do Livre refere que a sua deputada única “não comunica pessoalmente com nenhum outro membro” da direção e que os contactos entre as duas partes são “realizados por meio do seu gabinete parlamentar”.
Esse esfriar – e anular – de comunicação arrasta-se desde o episódio do voto de condenação de uma “agressão israelita a Gaza”, apresentado pelo PCP em novembro, cerca de um mês depois de o Parlamento tomar posse. Joacine “nunca explicou à Assembleia as razões para esse corte de comunicação, que foi unilateral e contribuiu para a crise, tornada pública” na sequência da sua abstenção (quando o Livre sempre se tinha mostrado favorável àquela causa).
Ainda sobre a relação de confiança, que deixou de existir, o Livre considera que Joacine “desrespeitou o compromisso institucional”, que a direção de que fazia parte tinha assumido. Em causa está o facto de a deputada não ter consultado a direção do partido sobre a composição de uma comitiva que deveria participar “numa reunião de alto nível”.
Há um terceiro ponto – ou uma terceira falha – diretamente ligada à resolução da 40ª Assembleia do partido e que é agora apontada a Joacine: a indisponibilidade para se “articular” semanalmente com o Grupo de Contacto. A deputada terá rejeitado esse solução, argumentando que essa articulação se faria nas reuniões semanais do Grupo de Contacto. No entanto, Joacine, garante a Assembleia, “não esteve presente nas reuniões subsequentes, nem indicou justificação para essa ausência”. Ou seja, pelo menos desde o início de dezembro que a dirigente do Livre e deputada única do partido à Assembleia da República não ocupa o seu lugar nas reuniões da direção.
O ajuste de contas
Estes “factos”, como lhes chama a Assembleia, justificariam, só por si, uma tomada de posição daquele órgão dirigente do Livre, ao qual cabe a decisão de, por exemplo, retirar a confiança política a um membro eleito pelas suas listas. Mas o partido destaca outros “elementos políticos gravosos” que pesaram nessa decisão.
Nem Joacine nem qualquer elemento do gabinete parlamentar do Livre compareceram na Assembleia do Partido em que fez a preparação do Orçamento do Estado para 2020. Da mesma forma, Joacine não deu quaisquer “contributos” para essa reunião.
Pelo mesmo deste conflito mais ou menos público, a deputada acusou o Livre de um certo abandono político, nomeadamente quando defendeu que tinha sido eleita “sozinha”. O Livre devolve, agora, a acusação, alegando que foi a sua deputada quem “comprometeu, reiteradamente, processos de escrutínio democrático por parte da Assembleia”. Quando os membros do partido tentaram obter esclarecimentos sobre votações, declarações ou ações políticas de Joacine, a deputada “não respondeu de forma direta” às questões.
Outro exemplo: a reunião entre Joacine e António Costa, que serviu de preparação para o processo de votação do Orçamento do Estado para 2020 na Assembleia da República. A direção do partido só teve conhecimento dessa reunião “no dia seguinte, apesar de ter reiteradamente solicitado a marcação desta reunião e indicado o interesse em estar presente, como havia estado em ocasiões anteriores”.
Num ponto da adenda, a Assembleia refere que Joacine mostrou “desrespeito e deslealdade” para com os órgãos dirigentes do partido. E dá (vários) exemplos das “condições, regras e ultimatos” que terão sido impostos e feitos. Joacine “recusa partilhar informação” sobre o seu trabalho parlamentar; “lançou um ultimato relativo à presença de uma assessora na reunião de caráter reservado” e recusou-se a participar no encontro se a assessora fosse excluída do mesmo; “recusou expressamente ouvir a intervenção de um dos membros da Assembleia” e saiu da sala durante todo o tempo dessa intervenção; no início de janeiro, recusou-se a apresentar à Assembleia a sua análise sobre o Orçamento do Estado para 2020, abandonando o encontro “sem justificação” – acabaria por voltar à sala, mas sem fazer essa avaliação ou, sequer, apresentar o sentido de voto que defendia para o documento.
O documento torna claro que o distanciamento entre Joacine o Livre tem longas semanas – até meses. E, em todo este processo, as setas de responsabilização vão sempre na mesma direção: a da deputada única. A única leitura crítica que a Assembleia faz do trabalho do Grupo de Contacto, em todo este processo, é quando aponta “lacunas e defeitos na ação executiva” aos seus membros, porque demoraram demasiado tempo a informar a Assembleia das dificuldades de relacionamento com a deputada. Fora, isso, “não encontra vícios éticos nas ações” daqueles dirigentes. Reafirma, aliás, “sua confiança política” no Grupo de Contacto.