O caso de Joacine Katar Moreira e do Livre pode ser inédito porque, até agora, nunca um partido tinha ficado sem qualquer representação parlamentar ao retirar a confiança a um representante seu na Assembleia da República.
Só este fim de semana se sabe se deputada e partido assumem a rutura total, que levará Joacine a ficar no Parlamento como “deputada não inscrita”, caso se mantenha em funções. Mas houve outros casos, em vários partidos que já passaram pela Assembleia da República, de divórcio (ou, pelo menos, uma cisão) entre os deputados eleitos e os partidos pelos quais se candidataram.
Do PSD ao PS, do PCP ao CDS, da debandada de meia bancada parlamentar aos “votos desalinhados”, da recusa em ceder o lugar até ao caso do orçamento limiano. Com contornos (e consequências) diferentes, recuperamos as histórias de quando a corda esticou e os deputados se tornaram órfãos partidários no Parlamento ou de quando as divergências entre os dois lados levaram a uma separação de facto.
O deputado limiano
É, talvez, o caso que mais pessoas tenham mais presente na memória, apesar de não ser o mais recente. Últimos meses do ano 2000. Daniel Campelo, deputado do CDS por Viana do Castelo, rompe a disciplina partidária e vota o Orçamento do Estado para o ano seguinte ao lado da bancada socialista.
Não foi um voto qualquer. O “sim” de Campelo foi o balão de oxigénio de que o primeiro-ministro, António Guterres, precisava para garantir a sobrevivência do seu Governo. Campelo tornou-se, simbolicamente, no 116º deputado do PS, que dava a maioria dos votos ao partido, e a situação ficou cunhada com uma expressão que resumiu os contornos do caso: para a história ficou o “Orçamento Limiano”.
Tudo porque Daniel Campelo – que, além de deputado, era também presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima – se recusava a aceitar que a produção do queijo limiano fosse transferida daquele município para Vale de Cambra, depois de a multinacional Lacto Ibérica ter comprado a fábrica responsável pelo produto.
De adversário político, Guterres passou a apoiante estratégico da causa de Campelo. Um apoio conseguido a troco do voto favorável não apenas num mas em dois orçamentos diferentes, em 2000 e em 2001. Pelo caminho, o deputado viu o partilho retirar-lhe a confiança política, em maio de 2001. Era o tempo da liderança de Paulo Portas, que chegou a ser citado, num desabafo sobre o caso, afirmando que “mais vale perder uma câmara do que perder a alma”.
A comunista irredutível
O início público do conflito entre Luísa Mesquita e a restante bancada do PCP começa em 2006, com a recusa da deputada em ceder o seu lugar a outros elementos da lista eleitos por Santarém, nas eleições que deram a maioria absoluta a José Sócrates, no ano anterior.
Um ano depois de o Parlamento entrar em funções, o PCP queria “renovar” os seus protagonistas na Assembleia da República. Mas Mesquita recusou-se a abandonar o lugar, apesar de, segundo lembrava o então líder parlamentar do PCP, Bernardino Soares, esse princípio estar consagrado num “compromisso escrito nesse sentido, de inegável valor ético e político” que a deputada teria assinado ao assumir as suas funções.
O caso arrastou-se durante longos meses e só teria um desfecho – a retirada de confiança política – em outubro de 2007. Sem que a deputada aceitasse abdicar do seu lugar, o PCP chegou a afastar Luísa Mesquita do acompanhamento das questões de Educação, como acontecia até esse momento, para passar a seguir a área da Saúde. Nesse momento, foi-lhe retirada parte da confiança política.
Mas a gota de água aconteceu durante umas jornadas parlamentares da bancada comunista. Luísa Mesquita não apareceu no encontro e chegou a promover uma agenda paralela, com visitas a instituições e declarações à comunicação social. Um artigo do jornal Avante!, sobre o caso, apontava a “postura de crescente afrontamento ao partido” por parte da deputada e “multiplicação de declarações que atingem” o PCP. Estariam em causa declarações recentes da deputada comunista ao semanário Expresso em que Mesquita se dizia “traída pela direção do PCP” e “marginalizada” pela sua própria bancada parlamentar.
Um mês mais tarde, em novembro de 2007, acabaria expulsa do partido. Ficou no Parlamento como “deputada não inscrita”.
O independente que “desalinhou” do PS
Deputado não inscrito foi, precisamente, o estatuto com que Paulo Trigo Pereira terminou a última legislatura – ainda que o caso tenha contornos bem diferentes dos anteriores.
Trigo Pereira foi eleito como independente pelas listas do PS de Setúbal. Mais ligado à área da economia, chegou, aliás, a ver-lhe ser confiada a vice-presidência da Comissão de Orçamento e Finanças (COFMA). Mas, em dezembro de 2018, depois da entrega do último Orçamento do Estado da legisltura, e quando faltava cerca de meio ano para o fim da legislatura, a sua relação com o PS chegou ao fim.
“Os meus votos desalinhados, mas justificados em declarações, levaram a um afastamento mútuo entre mim e a direção do grupo parlamentar do PS”, assumia na nota enviou ao secretário-geral do PS, António Costa, ao presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e então ao líder da bancada parlamentar do PS, Carlos César, com o qual manteve abertas divergências.
Apesar da cisão, que levou a que se mantivesse como deputado não inscrito até ao final da legislatura, Paulo Trigo Pereira garantia a lealdade às posições assumidas pelo partido. “Cumpri e continuarei a cumprir, escrupulosamente, a disciplina de voto e o compromisso ético que subscrevi antes de ser eleito como deputado independente nas listas do PS.”
A debandada que deixou Sá Carneiro sem bancada
A ideia que dá corpo a este subtítulo é relativamente exagerada – em 1979 houve, de facto, uma debandada entre os sociais-democratas, mas o líder do PSD não ficaria sozinho. Verdade inegável é que o caso da Ação Social-Democrata Independente (ASDI) deixou marcas num PSD ainda em profunda convulsão e à procura da sua identidade própria, naqueles anos que se seguiram à Revolução de Abril.
A história passa-se na segunda metade da década de 1970 e acaba com a saída de 37 (portanto, a maioria) dos 73 deputados que o PSD então somava no Parlamento. Formavam o grupo dos “inadiáveis” e opunham-se à orientação que Francisco Sá Carneiro (recém-regressado de Paris para conquistar a liderança) queria dar ao partido e à sua bancada parlamentar. Como o jornal Público recordou, em 2018, o grupo juntava figuras como Sousa Franco, Magalhães Mota, Cunha Leal, Sérvulo Correia, António Marques Mendes, António Rebelo de Sousa, Figueiredo Dias, Costa Andrade, Jorge Miranda, Ernâni Lopes, Guilherme d’Oliveira Martins e Rui Machete.
Inconformado com o convite de Ramalho Eanes a Carlos Alberto da Mota Pinto – ex-líder da bancada do PSD – para liderar o IV Governo, Sá Carneiro defende o voto contra o programa de Governo que tomaria posse no final de novembro de 1978. O partido divide-se: de um lado, o líder em funções, do outro, o ex-líder parlamentar e figura de peso entre as linhas sociais-democratas. Vence a fação pró-Mota Pinto.
No início do ano seguinte, Sá Carneiro toma a dianteira do jogo e inscreve novas regras, atribuindo à comissão política do partido a decisão sobre o sentido de voto da bancada em determinados momentos. Na discussão do Orçamento do Estado de 1979, já em março desse ano, Sá Carneiro determina a abstenção do PSD na votação. A bancada segue a linha da direção, o Orçamento é chumbado e Mota Pinto acabaria, meses mais tarde, por apresentar a sua demissão.
Sá Carneiro enfrenta, depois, uma verdadeira uma humilhação política. Ainda na discussão do Orçamento na generalidade, o líder do partido apresenta as suas exigências para que o PSD pudesse dar o seu voto favorável ao documento, mas vê a sua proposta rejeitada e regressa à posição inicial: abstenção. No momento da votação, os inadiáveis não estão no plenário – recorreriam aos estatutos para alegar objeção de consciência – e, dos 32 deputados presentes para a votação, sete votações rompem a disciplina de voto (duas votações a favor das Grandes Opções do Plano e cinco do Orçamento)
Os acontecimentos precipitaram-se a partir daí. Com o PSD reunido em Conselho Nacional, entre 31 de março e 1 de abril, Sá Carneiro volta a blindar as regras e consagra o princípio de que os deputados sociais-democratas passam a ter de assinar um compromisso de honra, uma forma de comprometer os seus parlamentares com a direção do partido. Sousa Franco é ainda convidado a abandonar o partido, depois de assumir a liderança entre janeiro e julho de 1978.
Fiel ao seu ex-líder de partido, a direção da bancada parlamentar rejeita a proposta de Sá Carneiro. A 4 de abril, dá-se a rutura, naquela que foi a maior desvinculação de um grupo de deputados ao seu partido. Os 37 deputados alinhados com Sousa Franco abandonam o PSD e formam a Ação Social-Democrata Independente. De 73 representantes, a bancada do PSD fica reduzida a 36 elementos. Sá Carneiro assumiria a liderança do grupo de irredutíveis.