O líder socialista não falou no PSD, não pronunciou o nome do seu principal adversário nem falou em Tancos. Não precisou. Esta segunda-feira, em Coimbra, em mais um comício do PS – o primeiro da última semana de campanha –, António Costa deixou um recado (mais um) a Rui Rio sobre o caso que está a abalar o regime: “Não respeitamos o poder judicial ao sabor da nossa conveniência ou da oportunidade eleitoral.”
Manuel Alegre era convidado de honra da noite. E, também ele, minutos antes, tinha apontado ao mesmo alvo. “Não precisamos de lições de moral de quem, há alguns dias, criticava a justiça de tabacaria e agora se arvora em justiceiro eleitoralista”, disse o histórico socialista. As referências surgem no mesmo dia em que Rui Rio deu conta de que ia pedir ao presidente da Assembleia da República, através da sua bancada parlamentar, que convocasse uma conferência de líderes para marcar um debate de urgência sobre Tancos. O social-democrata não larga a ideia de que Costa não podia não saber do plano de recuperação das armas. E, se sabia, que era um primeiro-ministro sem mão na sua equipa.
O tema tem marcado os últimos dias de campanha e não sairá da agenda tão cedo (a conferência de líderes está prevista para esta quarta-feira, a quatro dias das eleições). Alegre apontou à direita e ao timing de PSD e CDS para navegar a onda de Tancos, mas também tinha uma mensagem reservada para a esquerda à esquerda do PS – aquela de que os socialistas dependeram para formar Governo e assegurar que cada um dos orçamentos da legislatura era aprovado a experiência sobrevivia aos quatro anos. “Não nos arrependemos” da geringonça, “mas também não precisamos de professores de esquerda”, avisou Alegre – como quem diz que não há uma esquerda de primeira (a do Bloco e do PCP) e uma esquerda de segunda (a do PS).
O foco dos socialistas deve, aliás, para o histórico do partido, estar noutro lado que não na discussão sobre quem é mais socialista. “Não temos de nos preocupar com esquerda e direitas, temos de ter confiança em nós próprios, na nossa identidade, nos nossos valores e na nossa força como grande partido da modernidade, da liberdade, da justiça social e do futuro”, apontou Alegre, no mesmo pavilhão onde, há 40 anos, discursou pela primeira vez num comício do PS. Até porque, concluiu, ao contrário do que defende Catarina Martins, a experiência política inédita dos últimos quatro anos não ficou marcado pela “luta da esquerda contra o PS” mas, antes, pelo “trabalho de todos com todos, fruto de um diálogo que só o PS é capaz de promover e assegurar”.
Alegre tinha prometido uma intervenção com peso simbólico e a promessa não foi em vão. “Falo por Mário Soares, por Salgado Zenha, Miguel Torga, António Arnaut, António Portugal, Fausto Cordeiro”, foi enumerando, à medida que a sala aplaudia aquela que foi a intervenção com mais reações da noite. Esses são nomes da história do PS. “Já cá não estão mas, de certo modo, estão comigo e com todos nós” e “eles são o PS em que é preciso votar, são o PS que António Costa representa.”
PS não aceita “tutela” da esquerda
Estava passada a pasta com uma intervenção que foi das poucas notas de relevo da noite. O palco, o decor de fundo vermelho e o slogan “fazer (ainda) mais e melhor” a letras brancas, as cadeiras no mesmo tom, as bandeiras agitadas no ar. Cada um dos elementos que enchem a sala dos comícios do PS vão sendo uma cópia da noite anterior. Até o discurso de António Costa, no arranque da segunda e derradeira semana de campanha é, em muitos momentos, tirado a papel químico da intervenção que o secretário-geral socialista fez 24 horas antes, mais a norte ou mais a sul no mapa do país. Depois, lá surge uma passagem ou uma ideia que soa a novidade. No Pavilhão dos Olivais onde, esta segunda-feira, além de Alegre e da ministra da Saúde Marta Temido, falaram também o presidente da Câmara Municipal de Coimbra, Manuel Machado, e o presidente da federação do PS, Pedro Coimbra, essa nota de novidade soou quando Costa falou nos “muros” que se derrubaram há quatro anos.
Aproveitando a deixa de Alegre, Costa puxou a fita do tempo a outubro de 2015 e à mudança de paradigma que se concretizaria pouco depois dessas eleições. “Pudemos derrubar o último muro que a história nos tinha deixado, o muro que dividia a esquerda, uma esquerda que nos quis destruir em 1975 e que, graças a Mário Soares, a Salgado Zenha e a Manuel Alegre, o PS não se deixou destruir.”Nessa tarde, António Costa tinha andado pelas ruas de uma freguesia de Almada que o PS “roubou” ao PCP nas últimas autárquicas. Houve muitos abraços e beijos, algumas selfies e umas quantas mensagens de apoio, numa arruada que se prolongou por pouco mais de uma hora e em que não houve momentos de desconforto para o líder socialista. Foi a pensar nesse passeio pelas ruas de Cacilhas que Costa recordou as missivas que tem ouvido: “Força, camarada, vamos ganhar com maioria; força, camarada, vamos ganhar sem maioria; é para continuar com a geringonça; continuamos, mas sem geringonça”, foi recordando. Mas, seja em que modelo for, “há uma coisa que todos querem: é o PS e um governo do PS”. É esse, defende António Costa, “o grande partido da esquerda portuguesa, que não tutela mas também não aceita qualquer tutela na esquerda” nacional. Estava dado o recado.
Três horas antes de entrar no histórico Pavilhão dos Olivais de Coimbra, o líder socialista concluía a arruada a pouco mais de 200 quilómetros a sul dali. Estavam lá o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, o secretário de Estado João Galamba, a secretária-geral adjunta e cabeça de lista pelo distrito de Setúbal, Ana Catarina Mendes, entre outras figuras do PS. E todos eles assistiram à forma como, questionado pelos jornalistas, António Costa fintou a entrada de José Sócrates na campanha.
O Expresso publicou este domingo um artigo em que o antigo primeiro-ministro sai em defesa de Costa, ao apontar o dedo àquilo que considera ser uma orientação “política” do Ministério Público na divulgação do despacho de acusação do chamado Caso de Tancos em plena campanha eleitoral. A essa tempestade, o líder do PS respondeu com outro fenómeno natural, o furacão dos Açores. É isso, garante, aquilo que verdadeiramente o preocupa – ainda que o primeiro dê sinais de provocar estragos bem mais avultados que o segundo.