A eleição da direção do Conservatório de Música de Santarém (CMS), prevista para sexta-feira passada, foi adiada unilateralmente por alegadas irregularidades e está agora envolvida numa batalha jurídica entre as duas listas concorrentes, prestes a chegar ao Ministério Público.
Em causa está a reafirmação da validade do caderno eleitoral existente, que é contestada pela lista B, liderada por Nuno Martins e opositora dos atuais órgãos diretivos que se recandidatam. Aquela lista alega que o caderno contém mais eleitores do que devia, já que os estatutos da entidade preveem que qualquer sócio cooperador possa votar, enquanto o Código Cooperativo determina que apenas o podem fazer os sócios efetivos – ou seja, aqueles que prestam serviços ou usufruem deles (pais e alunos).
Terá sido esta, também, a recomendação da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), o órgão que tem como missão garantir a aplicação da lei nas Cooperativas e ao qual foi pedido um parecer jurídico pelo presidente da Comissão Eleitoral. Segundo fontes deste órgão, “a aceitação do parecer da CASES foi aprovada por maioria” antes das eleições, o que levou a comissão a decidir expurgar do caderno os sócios sem direito a voto.
Contudo o Conselho Fiscal do CMS ignorou a decisão da Comissão Eleitoral, argumentando em comunicado que “até que exista qualquer decisão judicial que declare a anulação das normas estatutárias estas mantêm-se plenamente em vigor.” E decidiu adiar as eleições para 14 de setembro mantendo o mesmo caderno eleitoral, o que a lista B considera “incompreensível.”. Por essa razão, “estamos a preparar uma ação que entrará em breve no Ministério Público, onde arguiremos as diversas irregularidades que podem culminar num processo crime”, confirmou uma fonte da lista B à VISÃO.
A lista B defende ainda que o Conselho Fiscal “não tem legitimidade” para cancelar o processo eleitoral, ato que caberia à Mesa da Assembleia-Geral com conhecimento da Comissão Eleitoral. Mas como o presidente da mesa se demitiu nos dias anteriores à eleição, o Conselho Fiscal assumiu as rédeas do processo, justificando que perante esta renúncia é a si que compete liderar o processo eleitoral.
“Está em causa a desautorização da Comissão Eleitoral e uma vontade deliberada de não cumprir ordens dadas por este órgão. O Conselho Fiscal substituiu-se à Comissão Eleitoral”, acusa à VISÃO um dos membros desta comissão, que preferiu não ser identificado.
Várias fontes presentes na passada sexta-feira na sede do CMS deram conta de um clima de descontentamento, com a PSP a ser chamada ao local por alguns dos votantes, que foram apanhados de surpresa pela suspensão das eleições e esgotaram o espaço existente nos livros de reclamação da instituição em protesto contra a decisão. Fonte próxima do processo afirmou que uma queixa foi também apresentada na PSP de Santarém já no início desta semana, dando conta destas alegadas irregularidades.
Como tudo começou?
O desconforto entre a atual direção e seus opositores, segundo contam alguns docentes à VISÃO, já se faz sentir há algum tempo, mas o clima adensou-se em março deste ano, durante uma Assembleia Geral em que ficaram sem resposta vários pedidos de informação sobre as contas do Conservatório. Em causa está um valor de 121 mil euros que terá sido investido pela direção da escola, e que os cooperadores presentes em Assembleia Geral exigiram saber em que moldes e onde foi aplicado. Na mesma ocasião, os cooperadores referiram o facto de as contas só lhes terem sido entregues dois dias antes da reunião magna, ao invés de com duas semanas de antecedência, tal como está previsto na lei.
A VISÃO questionou a direção, que disponibilizou o balanço das contas de 2017, afirmando que “a Direção do Conservatório de Música de Santarém preza, e sempre prezou, pautar a sua atuação pelos princípios da legalidade de transparência, e as suas contas sempre estiveram disponíveis na sua sede, para consulta, depois de aprovadas”. No entanto, deixou sem resposta a questão sobre o destino dos investimentos.
Conflito de interesse?
Vários outros episódios administrativos têm sido relatados, com pais e professores a alegarem a existências de irregularidades no mandato da atual presidente do CMS, Beatriz Martinho, que motivou o envio de uma série de pedidos de pareceres jurídicos à CASES, numa base quase semanal durante os últimos dois meses.
A VISÃO teve acesso a algumas das reclamações que foram entregues a esta cooperativa, na qual eram denunciadas práticas passíveis de configurar conflitos de interesse, no entender dos queixosos. Entre elas estão os factos de alegadamente o advogado da instituição ser casado com a atual presidente em exercício com direito a uma avença fixa por parte da instituição. Algumas das questões estão ainda a aguardar resposta, outras já foram reencaminhadas com pedidos de esclarecimento para a direção do Conservatório.
Fonte próxima do processo garantiu ainda à VISÃO que a demissão recente do presidente da Mesa da Assembleia Geral – justificada com motivos de saúde – terá estado relacionada com estas dúvidas levantadas nos últimos tempos. A atual presidente da instituição, por seu lado, diz-se, em entrevistas recentes ao jornais e rádios da região, alvo de calúnias e lamenta que estejam a ser postas em causa as mais de duas décadas de serviço à frente do CMS que, garante, sempre serviu com toda a transparência e rigor.
Presidente da Lista B rejeitado pela atual direção
Outro dos assuntos que tem estado a ensombrar este processo eleitoral é a rejeição do candidato à presidência da Lista B por parte da atual direção do Conservatório de Santarém. Nuno Martins é atualmente professor de saxofone da instituição, uma atividade que não poderá continuar a exercer se for eleito, uma vez que a lei não permite que um trabalhador de uma cooperativa ou sociedade comercial acumule funções de direção ou administração.
No entanto, a atual direção do Conservatório alega que, por ser professor, não pode sequer candidatar-se ao cargo, ainda que a lei contemple que, em caso de eleição, o vínculo anterior se extingue imediatamente. Que é como quem diz: se for eleito, Nuno Martins cessa imediatamente as funções enquanto docente.
No entanto, a direção do Conservatório acredita que ele nem deve poder ser candidato pelas funções que desempenha, pelo que pediu a Ramiro Matos, presidente da Delegação de Santarém da Ordem dos Advogados, um parecer sobre o assunto. O documento de 12 páginas a que a VISÃO teve acesso admite que a lei não é clara, mas que devem prevalecer “os princípios da transparência, independência e boa fé” e que, como tal, Nuno Martins não deve candidatar-se. Apesar de o parecer estar datado de 22 de junho, a constituição das listas manteve-se inalterada até ao dia em que era suposto ter havido eleições.
Fundado em 1985, o Conservatório de Música de Santarém (cooperativa de ensino passível de receber verbas do Estado) reveste-se de especial importância na cidade, ao integrar mais de 500 alunos e cerca de 40 professores, que lecionam os cursos básicos e secundários de música em duas dezenas de instrumentos. Para além disso, ainda tem à disposição aulas de dança contemporânea e ballet e cursos livres de baixo e de guitarra elétrica.