As decisões do juiz Ivo Rosa têm causado ressentimentos no departamento do Ministério Público que investiga a criminalidade mais complexa. Os desentendimentos atingiram o auge na passada semana, quando dois procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) apresentaram no Tribunal da Relação de Lisboa argumentos para que aquele juiz de instrução seja proibido de continuar a acompanhar três processos judiciais em que são investigados crimes de corrupção. Um deles é o processo que investiga as rendas da EDP.
Para contar toda a história dos desentendimentos é preciso recuar ao verão de 2016 e reconstituir os bastidores do processo em que Manuel Pinho é suspeito de, enquanto ministro da Economia, ter aprovado medidas que terão beneficiado a EDP, já então liderada por António Mexia.
Tudo começou em junho, quando o juiz Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal, decidiu impedir buscas à casa de Manuel Pinho, alegando não existirem indícios “mínimos” de corrupção por parte do ex-ministro da Economia. Em outubro, o juiz voltou a fazer uma proibição aos procuradores. Aqueles estavam impedidos de usar no processo os dados bancários e fiscais do presidente da EDP e de Manso Neto, presidente da EDP Renováveis. Toda esta prova já recolhida deveria ser selada.
Os procuradores não concordaram e recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, acusando o juiz de instrução de boicotar a investigação e prestar um favorecimento “injustificado aos arguidos”, ao dar sucessivos despachos favoráveis aos arguidos e sucessivos despachos desfavoráveis aos investigadores.
O juiz não gostou do tom do recurso – que dizia, entre outras coisas, que decisões daquelas só podiam ser tomadas “por displicência” ou “desconhecimento” – e, em novembro, apresentou queixa contra os dois procuradores à procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, com o argumento de que se sentiu ofendido. De imediato, o Conselho Superior do Ministério Público, órgão de disciplina dos procuradores, abriu um inquérito disciplinar contra os dois magistrados.
Os dois procuradores entendem agora ser “insustentável” continuar a trabalhar com Ivo Rosa e decidiram avançar com três incidentes de recusa contra o juiz de instrução. Nesses pedidos enviados ao Tribunal da Relação de Lisboa, e a que a VISÃO teve acesso, Carlos Casimiro Nunes e Hugo Neto apresentam sobretudo dois argumentos. Por um lado, que as recentes decisões do juiz de instrução no caso das rendas da EDP, e já tornadas públicas, criaram na opinião pública a percepção de que o juiz não será imparcial. Por outro, que será difícil manter uma relação saudável e imparcial com um juiz que apresentou queixas disciplinares contra os dois procuradores do processo sem disso os avisar previamente.
Os magistrados que conduzem a investigação do processo EDP argumentam que a primeira circunstância poderá prejudicar a instrução do processo que envolve “empresas cotadas em bolsa como a EDP e a REN e diversas pessoas politicamente expostas, com elevada ressonância social ao nível nacional e internacional” porque “todo este patenteado antagonismo” entre os procuradores e o juiz de instrução “faz criar a convicção, no homem médio, de que o juiz de instrução terá uma predisposição para prejudicar, com a sua decisão, a posição que o Ministério Público assumiu durante a investigação.”
Sobre o segundo argumento, os procuradores alegam ser “pessoas cordatas e educadas” que nunca escreveram qualquer “consideração desprimorosa” para Ivo Rosa ou para outro qualquer juiz. E sublinham até que os argumentos que ofenderam o magistrado já tinham sido usados noutros recursos anteriores sem que causassem qualquer repúdio ao próprio juiz Ivo Rosa ou aos colegas do Tribunal da Relação de Lisboa.
A estes argumentos, os procuradores juntam ainda o facto de Ivo Rosa estar a ser alvo de uma inspecção extraordinária do Conselho Superior da Magistratura, por sucessivas participações disciplinares contra o seu desempenho no Tribunal Central de Instrução Criminal. Só o procurador Carlos Casimiro Nunes terá apresentado três participações disciplinares contra aquele juiz de instrução – fora do âmbito do caso EDP, por Ivo Rosa recusar “a prática de atos urgentes” em processos de prevenção de branqueamento de capitais. Essa participação, alega o procurador, “só foi tomada na convicção de que não existindo possibilidade de conseguir efeito útil do recurso das decisões judiciais respetivas era necessário procurar obstar à sua futura repetição da única forma que parecia viável.”
Mas, ao que a VISÃO averiguou, as participações que terão dado origem a um processo disciplinar contra Ivo Rosa – e a uma consequente inspecção extraordinária – não serão só deste procurador. Ivo Rosa tem-se tornado cada vez mais incómodo entre os procuradores do DCIAP, havendo queixas frequentes nos corredores sobre os seus alegados “boicotes” a investigações, sobretudo na área da criminalidade económico-financeira.
O processo da EDP é o único que Hugo Neto e Carlos Casimiro Nunes investigam em conjunto e cuja instrução está nas mãos do juiz Ivo Rosa. O primeiro quer afastar o juiz de um outro processo que tutela, por razões semelhantes. E Carlos Casimiro Nunes quer também afastá-lo do processo em que quatro quadros da TAP foram acusados de, através de um esquema de falsa prestação de serviços com a Sonair, da petrolífera Sonangol, terem permitido que 25 milhões de euros com origem ilícita fossem branqueados em Portugal.
Neste incidente de recusa, Carlos Casimiro Nunes acrescenta novos argumentos aos que já apresentara no caso EDP. O procurador do Ministério Público alega que o juiz Ivo Rosa, na fase de instrução deste processo que envolve a TAP e a Sonangol, pediu que acrescentasse ao processo uma prova que, legalmente, está proibido de tornar pública. Ivo Rosa quer que seja junta uma cópia integral do processo administrativo que deu origem ao processo-crime. O procurador recusa-se a fazê-lo, invocando que as averiguações preventivas de prevenção de branqueamento são secretas, sob pena até de vir a ser alvo de um processo-crime por não ter mantido em sigilo a identidade de quem denunciou a operação suspeita.
Caso o Tribunal da Relação de Lisboa venha a concordar com a posição dos procuradores, o mais provável é que estes três processos passem para as mãos do juiz Carlos Alexandre, que até à chegada de Ivo Rosa era o único juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal. Resta agora saber quem, entre juiz e procuradores, vencerá o braço-de-ferro.