Haver um relógio em contagem decrescente para o dia 13 de maio de 2017 junto à Basílica da Santíssima Trindade no Santuário de Fátima é apenas um pormenor. O frenesim está no ar e é difícil ser-lhe indiferente. Nem é preciso olhar para o calendário.
Ângela Coelho também se deixou contagiar. O orgulho de receber o Papa Francisco poucas semanas depois do anúncio da canonização dos Pastorinhos Francisco e Jacinta Marto é indisfarçável. Numa rápida visita guiada à Casa das Candeias, a escassos 500 metros do Santuário de Fátima, a Postuladora dos Pastorinhos junto da Congregação da Causa dos Santos, em Roma, vai revelando os tesouros que mostram o caminho dos irmãos Marto para a santidade.
O maior deles é o Grande Livro da Beatificação, a partir do qual João Paulo II decretou os Pastorinhos beatos, em 2000, chamando-lhes “duas candeias que Deus acendeu” (a Casa das Candeias também conserva um fragmento do ramo de oliveira que o “Papa de Fátima” segurou na sua última aparição em público). Os relicários em forma de candeias, um com um pequeno fragmento de uma costela de Francisco e outro com uma mecha de cabelo de Jacinta, estão prontos para serem usados na canonização.
Se o Santuário de Fátima é a medida de todas as coisas, a verdade é que o seu efeito multiplicador se faz sentir muito para lá das fronteiras do recinto. Há mais vida além do Santuário. E mais fé. Os números são reveladores da atração espiritual e social da diocese de Leiria-Fátima. Só instituições religiosas ali fixadas são 63 (15 masculinas e 48 femininas), além de uma centena de comunidades e associações de espiritualidade. Há meia dúzia de escolas católicas. Existem, ainda, 45 instituições de solidariedade social com ligações à Igreja.
A Casa Diocesana do Clero de Leiria-Fátima, por exemplo, foi construída na freguesia devido à ligação dos sacerdotes com o Santuário. Este “lar eclesiástico”, com 22 residentes (13 homens e 9 mulheres), tem a particularidade de incluir a oração nas atividades diárias. Laudes, missas, vésperas e, claro, o terço, fazem parte da rotina. Ao todo, vivem na diocese 880 pessoas consagradas à vida religiosa.
Ângela Coelho, ou melhor, a Irmã Ângela Coelho, 45 anos, é uma delas. Pertence à Aliança de Santa Maria, uma congregação que tem como missão a difusão da mensagem de Fátima. “Lembro-me de ver uma religiosa de hábito e de pensar que queria ser assim. Tinha 6 anos”, conta. Curiosamente, uma das particularidades da sua comunidade é a ausência de hábito. Além disso, as irmãs da Aliança de Santa Maria trabalham inseridas na sociedade. Ângela é médica de clínica geral com uma vasta experiência na Urgência do Hospital de Leiria. “Sempre fiz questão de dizer que era consagrada. Obviamente que uma freira-médica causava curiosidade, mas nunca achei que isso afastasse as pessoas. Até aproximava, sobretudo em conversas que tocam a vida íntima”, revela a portuense, chegada a Fátima uma semana depois de concluir o curso de Medicina.
Atualmente, a comunidade de Fátima tem oito irmãs, unidas nos votos de pobreza, castidade, obediência e de vida em comum. No noviciado estão doze raparigas. “Graças a Deus estamos a ter vocações”, anuncia no seu tom bem-disposto. “Começámos agora. Se não tivéssemos este ‘boom’ vocacional alguma coisa estaria mal.” Apesar de ter surgido nos anos sessenta, a congregação só foi formalizada em 2002. Tem 40 religiosas com idades entre os 18 e os 69 anos. “A média etária está abaixo dos 40, por isso é natural que tenhamos a capacidade de atrair jovens.”
Uma realidade que contrasta com a falta de vitalidade dos seminários de hoje, admite o Padre Elísio Assunção, 74 anos, entrado no seminário aos 11. Quénia, Tanzânia, República Democrática do Congo ou Brasil são alguns dos países por onde passou ao serviço dos Missionários da Consolata. A temporada mais longa, de cinco anos, foi em Moçambique. Tinha 24 anos quando lá chegou, em plena Guerra Colonial. “A maior dificuldade era a sociedade branca considerar os africanos menores. Quanto mais convencidos disso eles estivessem, mais subordinados ficavam ao Regime.”
O Museu da Consolata, a 900 metros do Santuário, tem uma coleção de arte sacra e outra etnográfica, composta por objetos trazidos pelos missionários. A peça mais antiga é um Cristo de madeira do séc. XIV, mas a mais emblemática é a arca onde esteve escondida a imagem de Nossa Senhora depois do atentado de 1922 à Capelinha das Aparições.
Encontros com a fé
Em Aljustrel, a 2,5 quilómetros do Santuário, visitam-se as casas onde viveram Francisco e Jacinta Marto, a Irmã Lúcia e a Casa-Museu de Aljustrel, que procura transportar os visitantes para o início do séc. XX. É lá que está, também, a personalidade viva mais popular da terra. Maria dos Anjos, 97 anos, é sobrinha da Irmã Lúcia. Vestida de negro e com um terço na mão, passa os seus dias à porta de casa, mesmo em frente à primeira morada da tia. Apesar da idade avançada, lembra-se bem das visitas ao Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, onde a Irmã Lúcia se refugiou até à morte, em 2005. As memórias desses encontros ficam adiadas com a chegada de mais um grupo de peregrinos.
A britânica Katherine Murphy, 85 anos, veio de Liverpool. Pede para tirar uma fotografia e oferece-lhe um donativo. A italiana Francesca Dilaura, 40 anos, aproxima a cadeira de rodas do filho adolescente. Emociona-se quando a idosa o beija e pede-lhe que reze por ele. Confessa ter esperança que a bênção daquela mulher possa fazer alguma coisa pelo filho, como se Maria dos Anjos tivesse herdado da tia a relação direta com Nossa Senhora. “Acredito em milagres.”
Marco Gomes, 38 anos, também é crente no milagre de Fátima e já presenciou quatro visitas de papas à Cova de Iria. Criou uma empresa especializada nos caminhos para Santiago de Compostela e Fátima, a Outmore, e tem a agenda cheia. Noventa e cinco por cento dos clientes são estrangeiros. Filipinas, Coreia do Sul, Nicarágua ou Polinésia Francesa são alguns dos seus países de origem. “Há quem venha pela parte desportiva ou pela parte espiritual. Às vezes, a desportiva também se torna espiritual.” Cresceu com a história de o bisavô ter assistido ao “milagre do sol” a 13 de outubro de 1917, mas só em adulto percebeu como gostaria de ter estado no lugar dele.
“Quando não havia luar, dizíamos que a candeia de Nossa Senhora não tinha azeite”, escreveu a Irmã Lúcia nas suas memórias. O presidente da Cooperativa de Olivicultores de Fátima, Pedro Gil, 42 anos, não tem dúvidas sobre o simbolismo do azeite e acredita que alguns consumidores atribuem uma carga espiritual ao Azeite de Fátima. “A nossa marca registada é uma grande mais-valia”, admite. Chamam-lhe “um segredo bem guardado”. O bisneto do fundador da cooperativa nota um aumento da afluência de turistas brasileiros. “Eu exporto sem sair do lugar”, brinca. A visita ao Museu do Azeite, na zona de Fátima antiga, vale, sobretudo, pela possibilidade de levar uma recordação mais original (e saborosa) para casa.
Há uma proliferação de lojas de recordações à volta do Santuário (que, apesar de ter apenas duas lojas próprias, aluga os espaços comerciais das Praças de São José e de Santo António a preços simbólicos, entre €7 e €37 mensais). A entrada de competidores chineses no mercado obrigou a mudanças nas fábricas nacionais de artigos religiosos. Sofia Neves, 35 anos, integrou o negócio dos pais depois de ficar desempregada, mas com uma condição: criar uma segunda marca de produtos mais modernos. A oficina fica a menos de dois quilómetros do Santuário. Sem se incomodar com o cheiro intenso a resina, Sofia mostra Nossas Senhoras de Fátima, Anjos de Portugal ou Arcanjos de São Miguel monocolores feitos em pó de pedra. Mas também há almofadas, lenços ou individuais de mesa. Tudo com a chancela da marca Treze. O passo seguinte é a exportação. “Sei que estou inserida num ponto do País onde o mercado é global.”
No dia em que recebeu a VISÃO, Purificação Reis, 52 anos, responsável pela fábrica de artigos religiosos FARUP, já tinha feito uma visita guiada às oficinas da empresa a doze jornalistas estrangeiros. A empresária está convencida de que a visita do Papa Francisco no centenário das “aparições” será um marco na história da região. E também poderá ser um ponto de viragem no negócio: “O consumidor está a voltar a dar importância ao que é feito cá e nós também temos de saber valorizar o lado artesanal dos nossos produtos.” Produtos esses que acredita terem “um valor espiritual adicional”.
Purificação não esconde a indignação perante as notícias que “misturam as vivências espiritual e comercial”. E é perentória: “Fátima funciona de acordo com as regras de mercado. Não discuto que existam excessos pontuais, mas lá por estarmos em Fátima não pode ser tudo oferecido.” A FARUP é uma das cinco empresas responsáveis pela produção do terço oficial do centenário. Por cada peça vendida, €1 reverte para a construção de um lar para adultos com deficiência nas instalações do Centro de Reabilitação e Integração de Fátima (CRIF).
Situado em terrenos doados pelo Santuário, o CRIF acolhe 22 crianças com Necessidades Educativas Especiais e 83 adultos no Centro de Atividades Ocupacionais. A estufa logo à entrada é o primeiro sinal da vitalidade do centro. Carmo Fialho, 61 anos, coordenadora pedagógica da instituição, caminha pelos corredores como se estivesse em casa. Há 35 anos que “faz parte da família”. Conhece os utentes pelo nome e também lhes sabe os gostos e vontades. Como a paixão pela pintura de Luís Lazota, 20 anos. Alto, magro e uns olhos azuis que dizem quase tudo o que a Síndrome de Asperger dificulta. O “milagre do Sol” é um dos seus temas artísticos. Há casos dramáticos. Paralisias cerebrais, esquizofrenias, Trissomia 21. Com um sorriso aparentemente indestrutível, Carmo Fialho manifesta a sua fé: “Bem-aventurados os pobres de espírito.”