Avenida da Liberdade, em Lisboa, 18 de dezembro de 2014. Um agente de execução sobe ao 6.º andar de um business center e bate à porta da sede de uma imobiliária, após um juiz ordenar que a empresa fosse “notificada da interpelação” para “cumprir o contrato” de compra e venda de dois apartamentos no centro da capital. “A diligência não se realizou”, relatou o agente de execução ao magistrado. Quem lhe abriu a porta recusou-se a assinar a notificação. E a “legal representante da requerida”, foi-lhe dito, não se encontrava nas instalações.
O agente regressou ao local a 15 de janeiro de 2015, para encerrar o assunto. Perante novas recusas na assinatura do documento, lavrou a competente “Certidão de Citação/Notificação”. Informou quem o recebeu de que, a partir daquele momento, o dossiê respetivo ficava à disposição da imobiliária na secretaria judicial e “no escritório do aqui agente de execução”. Que achou por bem acrescentar, para conhecimento do juiz, que “nas instalações da requerida encontravam-se dois funcionários, que não se quiseram identificar nem assinar ou ficar com os documentos (…)”.
Isto era o que publicamente não se sabia. Já na Comunicação Social, a imobiliária em causa, KSHG-Real Estate Investments, Ld.ª, surgia em grande nesse ano de 2015. Revelava-se uma bênção para as contas da Estamo, a empresa da Parpública incumbida de gerir o património imobiliário do Estado, de forma a rentabilizá-lo. Em apenas três meses, a KSHG tinha adquirido à Estamo imóveis em Lisboa por quase dez milhões de euros. Estava também muito ativa, desde 2013, na compra de património à autarquia da capital.
Perante tamanha pujança, à chinesa Zhang Xuetao aquela pareceu-lhe a porta certa a que bater para investir meio milhão de euros na aquisição de imóveis e assim obter o almejado Visto Gold. A investidora há de amaldiçoar essa hora o resto da vida. O agente de execução atrás mencionado, aliás, foi à sede da KSHG depois de o advogado português de Zhang ter submetido ao juiz um requerimento para o efeito.
TRAPALHADA IMENSA
O que aconteceu, afinal? No princípio, nada de anormal. A 26 de julho de 2013, Zhang Xuetao celebrou um contrato promessa de compra e venda de dois apartamentos, cada um com 55 metros quadrados, pela quantia total de 510 mil euros, num edifício na rua Braamcamp, artéria no centro de Lisboa, prédio já na posse da KSHG. A imobiliária pretendia (e pretende) transformá-lo num aparthotel, e ficou acordado com a investidora que pagar-lhe-ia, a título de rendas, uma contrapartida anual de 4% do preço dos apartamentos. Ajudá-la-ia a obter o visto gold e, por ano, a compradora tinha o direito a usufruir de um dos apartamentos durante oito dias.
O negócio com a KSHG – propriedade de um casal de investidores de Macau – azedou com a não concretização da escritura, que devia realizar-se até 30 de setembro de 2014. Zhang Xuetao já tinha pago os 510 mil euros, mas estava cada vez mais apreensiva.
A 6 de novembro de 2014, por carta enviada a representantes da imobiliária, a investidora elenca as suas perturbações. Pediram-lhe que mudasse de andares, o que inicialmente recusou, solicitando até a anulação do contrato-promessa efetuado, com a consequente devolução dos 510 mil euros, pagos em 6 de novembro de 2013. Essa pagamento antecipado, lembra, havia sido exigido pela imobiliária, com a justificação de que apenas conseguiria obter o visto gold se a liquidação integral do custo dos apartamentos fosse feita antes da data da escritura.
A KSHG respondeu-lhe que não lhe podia devolver o dinheiro já entregue e que a troca de andares “só a beneficiava”. Zhang Xuetao diz ter-se visto, na altura, “forçada a aceitar a proposta”, embora “contrafeita”. Mas na carta a que agora se alude dá conta de outras incidências do seu caso e faz um ultimato à imobiliária: ou a “escritura pública de compra e venda definitiva dos apartamentos em apreço” se realizava no “prazo máximo de 15 dias a partir desta data [6 de novembro de 2014]” ou o processo resolvia-se mesmo em tribunal. E assim foi, na 1.ª Secção Cível da Instância Central de Lisboa.
A 2 de dezembro de 2016, Zhang Xuetao saiu vencedora na sentença. O juiz condenou a ré KSHG a pagar €1 020 000 à queixosa, acrescidos de juros de mora. A imobiliária, diga-se, defendeu-se aguerridamente, mas em março último registou nova derrota. Pretendia que o recurso que interpôs, para a Relação de Lisboa, tivesse efeitos suspensivos sobre a condenação da 1.ª instância. O magistrado responsável pelo acórdão, porém, negou-lhe esse provimento.
Agora, Zhang Xuetao alega que o valor que lhe é devido já ascende, “pelo menos”, a €1 100 000. E um agente de execução deve estar prestes a entrar nesta história – outra vez.