Na inocência da infância não percebem o porquê daquele sofrimento. Os pais e os avós dizem-lhes que é uma questão de cultura, uma tradição arreigada na prática dos seus povos. Um ritual que marcará a sua passagem para a vida adulta. Partem de Portugal na ilusão de umas férias no país de origem – a Guiné Bissau no topo da tabela. Regressam com o trauma de uma mutilação genital feminina que lhes vendem como “fazendo parte” dessa passagem. Escondem o que lhes aconteceu do mundo que as rodeia. Assumem a dor como normal. Tentam esquecê-la. Não percebem, muitas vezes, que o que lhes fizeram é crime.
Um crime público, regulamentado tanto em Portugal como na Guiné Bissau. Mas um crime disfarçado de tradição que já vitimou mais de 200 milhões de mulheres em todo o mundo.
No aeroporto de Lisboa, adolescentes de várias etnias juntam as suas vozes num coro em que se destaca uma palavra: “Freedom”. Querem alertar quem passa para o drama da mutilação genital feminina. Dançam e cantam com um único objetivo: consciencializar adultos e crianças que essa mutilação é crime. Garantir que quem parte num avião de Lisboa, Porto ou Faro para a Guiné Bissau, para o Mali, para o Gana ou para o Senegal tem consciência disso e se afastará dessas práticas.
Com aquele espetáculo marcou-se a primeira etapa de uma campanha de sensibilização que o Governo português, ancorado na secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, lança este verão. Ao longo dos próximos meses serão distribuídos folhetos em cada aeroporto, na zona de embarque, para alertar para este tipo de crime. Conscientes de que “as férias são um momento de alto risco, altura em que as famílias viajam para os seus países de origem onde a prática ocorre”, como lembra o ministro Adjunto Eduardo Cabrita, o Governo quer evitar que muitas meninas regressem com memórias traumáticas.
O trabalho é sobretudo de sensibilização, mas também de alerta para as consequências legais de quem se envolver neste tipo de práticas. Cabrita tem, no entanto, uma certeza: “o mais eficaz é conseguir que esta não seja uma prática desejada pelas populações, que entendam que não a passagem para a vida adulta se deve fazer por rituais de descoberta e prazer”.
Fatumata Djau Baldé Presidente do Comité Nacional para o Abandono de Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança, na Guiné-Bissau, está ali ao lado do ministro e reconhece as suas palavras. Tem sido o rosto da luta contra a mutilação genital feminina. Garante que o segredo está na “escolarização”. Porque “se investirmos na escolas e conseguirmos passar a mensagem de que é preciso dizer Não a esta prática (…) dentro de uma geração ela acabará”. Eleva a sua voz para defender o direito das mulheres “à saúde sexual e reprodutiva” e acredita que se cada um conseguir convencer outra pessoa “amanhã será um dia de maior alegria para as meninas poderem gozar dos seus direitos sem nenhuma dor ou constrangimento”.
Considerada uma tradição, o “fanado” (o ritual de passagem que culmina com a excisão total ou parcial do clítoris) é crime na maioria dos países onde é praticado. E Fatumata acredita que, pelo menos na Guiné Bissau, essa criminalização está a fazer o seu trabalho. Conta-nos que há fanatecas (as mulheres que praticam a mutilação genital feminina e que têm um estatuto especial na comunidade) a recusarem seguir as ordens de alguns imãs que ainda encorajam essas práticas. “Têm medo de ser condenadas”. Mas a arma mais eficaz, assume, “é consciencializar” as mães e as filhas, sobretudo, de que esta tradição é nociva.
As excisões são feitas, sobretudo, nos países de origem, acreditando-se que em Portugal ela será “residual”. De qualquer forma, existem neste momento em território nacional 6500 mulheres vítimas de mutilação genital feminina com mais de 15 anos. E o Serviço Nacional de Saúde detetou entre Abril de 2014 e Maio de 2016 136 casos de menina que foram vítimas deste crime.
“O Direito a viver sem mutilação genital feminina”. É este o lema da campanha lançada hoje nos aeroportos portugueses. Porque “é considerada uma traição mas não tem fundamentos religiosos”, pode ler-se.