Nas suas conversas com os amigos, havia tempo para lembrar o que passou e para não esquecer o que morreu. Então, a voz dela cadenciava ainda melhor a sua exatidão e dizia: “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…” Este é um verso do poema Aniversário, de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa, que começa: ” No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu era feliz e ninguém estava morto!”. Oiço-a citar aquele verso, escuto-a a dizer este poema – e digo com ela (como se dissesse para ela) o que ela nos dizia nessas tardes, ou nessas noites, quando a sua voz, na prosa do mundo, abria a possibilidade de outros mundos.
Para Maria de Jesus Barroso Soares, a memória foi sempre uma fidelidade e uma gratidão. Trazia do passado ao presente as origens, os acontecimentos, as pessoas, as palavras que fizeram da sua vida uma árvore com raízes e ramos, onde os frutos se colheram. Por isso, foi uma árvore com vigor e sombra.
Sob a ditadura, combateu o bom combate, fazendo da cultura uma exigência de liberdade e da política uma reivindicação de dignidade. Todos aqueles que, nesses anos submetidos, assistiram aos seus recitais de poesia, falam da exaltação contagiante que geravam – e viam nela uma Musa, a Antígona que desafiava o poder e não tinha medo de dizer Não! (quando fez 90 anos, Eduardo Lourenço celebrou-a numa evocação desses momentos míticos). Depois do 25 de Abril, Maria Barroso quis a liberdade como uma necessidade e não como uma contingência, como uma existência e não como uma promessa ou uma palavra de ordem. E a justiça, que é inseparável de uma “igualdade de princípio” e de uma “igualdade ao princípio”, foi-lhe, pela biografia e pelo temperamento, instintiva e candente.
Na gentileza do seu trato com toda a gente ou na perfeição com que aparecia nas grandes ocasiões protocolares, acompanhando o marido então primeiro-ministro ou Presidente da República, mostrava sempre uma elegância serena. Fiel a si-mesma e a um vínculo com os outros, no qual havia uma subtil delicadeza de sentimentos, foi fiel a uma ideia de representação do País, assumida com naturalidade, com sobriedade, com classe, com gosto. Almada Negreiros disse um dia que não tinha conseguido inventar um aparelho para medir o mau gosto e o bom gosto, mas que tinha descoberto uma fórmula para os testar: Mau gosto – chita a imitar seda; bom gosto – seda a imitar chita. O bom gosto de Maria Barroso é este, aquele que nunca precisou de se exibir para se ver.
A sua cultura era interiorizada e vivida, porque aquilo que, na cultura, mais próximo se tornou dela foi a poesia e a sua música do Ser. Sabia de cor (a palavra cor tem uma raiz comum com a palavra coração) os poemas que disse ao longo da vida. Eles foram-lhe um salvo-conduto e um talismã. Mas também gostava de olhar as linhas de um desenho, as cores de uma pintura ou os volumes de uma escultura, quando a tarde cai e a luz amortecida nos convida a ver com uma atenção menos distraída.
Pessoa de coração e de bondade (dê-se a esta palavra o seu sentido mais antigo e mais comum), preocupou-se com os outros, com as suas necessidades e fragilidades. Generosa, sensível e disponível para ouvir, para compreender, para ajudar, teve uma aptidão rara para detetar dificuldades e carências. Quando alguém perdia poder, importância, estatuto, posição, prosperidade, notoriedade, era quando ela mais se tornava presente, assídua e próxima dessa pessoa. Em nome da justiça, afrontou os fortes e defendeu os fracos.
Agora, vejo e recordo. Recordo a sua lealdade a Amélia Rey Colaço, sua grande mestra de Teatro, que, quando Maria Barroso foi proibida, pela PIDE, de representar no Teatro Nacional, teve com ela uma atenção solidária. Essa lealdade prolongou-se até à morte de Amélia e continuou-se numa boa amizade com Mariana Rey Monteiro.
Recordo as conversas com Maria Helena Vieira da Silva, a comunicação intensa de olhares, os sinais de afeição e de afinidade, as poucas palavras que eram ditas porque o silêncio era mais forte e mais exato do que elas.
Recordo a coragem e o ânimo com que enfrentou o acidente do filho João. A sua abertura à fé foi menos uma surpresa do que um reencontro. É que, nos seus anos de jovem aluna de Faculdade de Letras, ainda antes de conhecer Mário Soares, os seus amigos eram militantes católicos: o poeta Sebastião da Gama e aqueles que mais tarde foram grandes mestres e eruditos como Luís Filipe Lindley Cintra e Maria de Lourdes Belchior. E tinha havido uma avó que a ensinou a rezar. Com a sua conversão religiosa, se houve mudança, não houve rutura. Ela pôs na fé os valores humanistas que tinham sido sempre os seus e que inspiraram a sua ação cívica e política.
Vejo-a, nos bons e nos maus momentos, ao lado do marido (quando lhe diziam que “atrás de um grande homem está uma grande mulher”, ela corrigia, respondendo: “Ao lado”), apoiando-o, acrescentando-o, reforçando-o. Lembro-a nas campanhas eleitorais, nas vitórias e nas derrotas, nas viagens e em casa. Ao lado de Mário Soares, soube ser sua cúmplice, sem nunca deixar de ser ela mesma (e isso só uma mulher muito forte o conseguia). O amor e a amizade que existiu sempre entre eles tem a marca de uma vida cheia de tudo. Em Maria Barroso, a imagem pública coincide com a personalidade privada.
Vejo-a com os netos e as netas. Lembro o entusiasmo com que lhes ensinava poemas (por exemplo, De Tarde, de Cesário Verde, que começa “Naquele pic-nic de burguesas”, ou Floriram Por Engano as Rosas Bravas, de Camilo Pessanha) e a alegria com que falava deles.
Lembro a sua dedicação, a sua devoção ao Colégio Moderno, e o seu orgulho no trabalho da Isabel. Recordo a sua presença matutina nele, o apoio à filha, o seu contentamento por estar com os alunos.
Maria Barroso soube sempre que a vida é feita de grandes ameaças e de pequenas contrariedades, de solidariedades e de solidões, de obsessões e de hesitações. Essa sabedoria de vida gerou nela resistência e tolerância, determinação e prudência, energia e medida.
Ao longo da sua longa vida, foi testemunha de muitos acontecimentos, de tragédias, de euforias, de ilusões, de desilusões. Viveu tudo isso com convicção e com verdade. Na adversidade ou na alegria, atriz ou educadora, opositora à ditadura ou deputada da democracia, mulher do primeiro-ministro ou do Presidente da República, Presidente da Cruz Vermelha ou da Fundação Pro Dignitate, ela soube sempre estar à altura do que lhe aconteceu. Um grande filósofo chama a isto ética.
Em nome do amor à vida, resistiu à velhice, à doença, ao declínio. Nunca parou! A última vez que jantei em casa de Mário Soares e de Maria Barroso prenunciou o que veio a acontecer e que tanto nos entristece. Ela tinha caído na sala, poucas horas antes, ao apanhar os óculos que estavam no chão. Ficou com dores e mal-estar, mas fez questão de jantar à mesa, participando nas conversas, dando opiniões, fazendo comentários. Falámos de literatura e de política, da Grécia, da Europa, do governo português, do PS, de Costa, de Sócrates, de Nóvoa. Depois do jantar, fomos para a sala de estar e ela continuou connosco. Apenas com grande insistência do marido, secundada pela nossa reiteração dela, aceitou ir descansar. Despediu-se e avançou de cabeça erguida como quem diz ao destino que não se rende à sua fatalidade. “Gente desta já não se fabrica!”, costuma dizer um amigo meu. E tem razão.
Maria Barroso é uma grande figura do nosso tempo, símbolo da dignidade que não está à venda e que não aceita o inaceitável. Com convicção e coragem, elegância e cultura, memória e inteireza, pôs em tudo o que tocou uma marca de autenticidade, de qualidade, de fortaleza, de generosidade, de distinção.
Neste momento, lembro um poema de Sophia, de quem ela foi tão próxima, dedicado a um amigo querido – e faço dele um tributo à minha querida amiga Maria de Jesus. Esse poema termina com os versos: “Assim pudesse o tempo regressar/Recomeçarmos sempre como o mar”.
Este ano, as praias do seu Algarve natal vão sentir a falta dos passos dela sobre o areal, naquelas caminhadas de muitos quilómetros que Maria Barroso gostava de fazer ao amanhecer de cada dia das suas férias no Vau. Mas, desenhando a sua presença na areia, o mar vai e vem, recomeçando sempre. Assim também regressa, como um recomeço, a nossa imagem dela. E, nessa imagem, como na dos retratos que Graça Morais lhe fez, está presente o brilho rápido da vida.
*Testemunha e amigo
José Manuel dos Santos começou a trabalhar com Mário Soares logo depois do 25 de Abril, tendo-se tornado um amigo próximo dele, de Maria Barroso e da família. Quando Soares foi Presidente da República, foi o seu assessor cultural. Nessas funções, apoiou também Maria Barroso nos projetos culturais que ela assumiu. Mesmo depois de ter deixado de trabalhar com Soares, em 1996, continuou a ter uma relação muito próxima e assídua com ele e com Maria Barroso, sendo visita habitual de casa, onde janta frequentemente. Foi quem escreveu o texto para a publicação sobre os retratos de Maria Barroso pintados por Graça Morais e apresentados também por ele, em 2014, na Cruz Vermelha Portuguesa, instituição ao qual um dos retratos se destinou.