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NOTÍCIA VISÃO: Núncio entregou “Bolsa Vip” ao Fisco no auge do caso Tecnoforma
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Sindicato confirma notícia e promete mais dados para breve
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Manuela Ferreira Leite exige explicações
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PS quer tudo esclarecido
Naquela terça-feira, 20 de janeiro, o auditório da Torre do Tombo, em Lisboa, esteve por conta das Finanças. “Conduta ética, segurança da informação, direitos e deveres dos trabalhadores” era o tema da ação de formação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) seguida por 300 inspetores tributários estagiários. O formador foi Vítor Lourenço, chefe de divisão dos serviços de auditoria. Um desconhecido saído do anonimato há uns tempos, por breves momentos: foi ele quem investigou os processos de execução fiscal relacionados com as empresas de Manuel Godinho, o “sucateiro” condenado a 17 anos e meio de prisão no processo Face Oculta.
Durante a sessão, o responsável das Finanças alertou os formandos para os procedimentos e cuidados a ter no acesso ao sistema. Falou das normas de combate à corrupção, interna e externa, e dos melhoramentos informáticos efetuados. Seria a referência a notícias recentes sobre políticos a gerar grande agitação na sala. “Disse que a auditoria interna tinha implementado um sistema chamado ‘Bolsa VIP’, que incluía políticos no ativo, e permitia identificar os funcionários que acedessem a essa lista de contribuintes sem ordens expressas de serviço ou do chefe”, revela à VISÃO Gonçalo Rodrigues, técnico da administração tributária, presente no auditório.
A versão é confirmada por vários formandos presentes no local que, no entanto, acrescentam um ponto: Vítor Lourenço também se terá referido à alta finança e grandes empresários como integrantes da alegada “Bolsa VIP”.
‘O que foi lá fazer?’
A partir dos relatos que lhe chegaram, Paulo Ralha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, resumiu o essencial: ?”O chefe de divisão anunciou com bastante ênfase que o pessoal tinha de ter muito cuidadinho porque o acesso aos nomes da ‘Bolsa VIP’ era monitorizado em dois minutos e o funcionário imediatamente chamado para justificar o que lá foi fazer.”
Após estas referências, “gerou-se no auditório um burburinho enorme, as pessoas ficaram alvoraçadas”, recorda Gonçalo Rodrigues. A sessão terminou sem direito a perguntas e respostas. “No final, questionei-o sobre o assunto e expliquei que, além de tudo, aquilo era impraticável nos serviços.” A resposta veio com pormenores: “Vítor Lourenço disse que a ‘Bolsa VIP’ estava feita, era para continuar, mas que ainda havia uma falha: identificava a password do utilizador, mas não o computador através do qual se acedia à base de dados. Garantiu-me, porém, já estarem a desenvolver um sistema que permitisse fazê-lo.”
Talvez por isso, nos últimos tempos, muitos funcionários das Finanças adotaram obsessivamente um método para se protegerem do colega do lado: teclar o F12 e fazer shutdown no computador antes de ir tomar um café ou almoçar, não vá a curiosidade alheia tecê-las. ?”O clima nos serviços é de grande mal-estar”, garante Gonçalo Rodrigues, incapaz de fazer delete ao que ocorreu na Torre do Tombo: “O chefe dos serviços de auditoria deu detalhes sobre o funcionamento da ‘Bolsa VIP’ numa ação com 300 pessoas. Agora imagine qual não foi o meu espanto quando o Ministério das Finanças veio dizer que a lista não existia”, refere este elemento da direção distrital de finanças de Portalegre e dirigente sindical.
O Governo disse e mantém. “A Secretaria de Estado [dos Assuntos Fiscais] nunca deu qualquer instrução para a constituição de qualquer lista. Acresce que, de acordo com informações que já foram prestadas publicamente pela AT, não existe qualquer lista cujo acesso dos funcionários seja limitado”, esclareceu a tutela à VISÃO, alegando desconhecer as referências a uma “Bolsa VIP” em sessões da AT.
Segregação de contribuintes
Já lá vai o tempo em que as ações de formação eram feitas exibindo a declaração de rendimentos de António Guterres, como ocorreu em 2000, quando o próprio era primeiro-ministro, sem que isso tenha beliscado a confiança nos funcionários.
Hoje talvez fosse impossível algo semelhante.
Nos últimos meses, segundo os registos do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), as Finanças instauraram 32 processos disciplinares, encontrando-se 110 em fase de inquérito, tendo os funcionários sido notificados para prestar declarações. Todas as semanas chegam ao STI novos casos. “Muitos funcionários foram, inclusive, intimidados. Disseram-lhes que se recorressem ao sindicato, a penalização seria maior”, refere Paulo Ralha.
Na origem desta vertigem sancionatória sem precedentes está a consulta alegadamente indevida do cadastro de dezenas de contribuintes. Se assim fosse, tudo estaria bem. “A divulgação de dados fiscais é crime e tem de ser penalizada, é óbvio”, reconhece aquele dirigente sindical. “Mas nem isso é prática da casa nem é o que está em causa. O que ocorre é uma segregação de contribuintes. Há uns de primeira e outros de segunda”, refere.
O traço comum é o facto de os processos em curso serem relativos a figuras com peso na política e na economia, de Pedro Passos Coelho a outros governantes e políticos, passando por figuras da alta finança e empresários mediáticos. Ao que apurou a VISÃO, os nomes mediáticos da suposta lista, cujo acesso dos funcionários é detetado num ápice pela máquina fiscal, incluirão o vice-primeiro-ministro Paulo Portas e a antiga ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite. Até prova em contrário, a presença de quaisquer nomes na “Bolsa VIP” terá sido feita sem conhecimento dos próprios. “Não sei nada sobre isso e não faço a mínima ideia de como o meu nome possa estar numa lista dessa natureza”, reagiu a ex-líder do PSD. “Não tenho conhecimento da existência da ‘bolsa’ que refere”, afirmou também Paulo Portas à VISÃO, reforçando o “recente desmentido” da AT acerca da existência da mesma.
Métodos pidescos?
Internamente, o clima é de suspeição. Mas não só. Na prática, o desencadear daquilo que Paulo Ralha considera “métodos pidescos” poderá gerar o caos nos serviços. “Se nós tivermos limitações de acesso à base de dados, pura e simplesmente não trabalhamos”, refere o presidente do STI, que já solicitou à Procuradoria-Geral da República que esclareça se os trabalhadores do Fisco têm limitações no acesso aos ficheiros. As consultas dos funcionários obrigam a uma pesquisa alargada, exaustiva e minuciosa de elementos e da respetiva situação fiscal dos contribuintes que surgem associados a um determinado processo ou vários. “Nós lidamos com números de contribuinte, não com o senhor X ou Y. No meu tempo, esses números não vinham com nome e fotografia”, ironiza Carlos Carreiro, que esteve 20 anos na auditoria interna da AT e se reformou há três. “O que se está a fazer é tão inibidor e aberrante para o funcionamento das Finanças que até custa falar. Aposentei-me em boa hora…”, desabafa.
Segundo dirigentes sindicais e trabalhadores ouvidos pela ?VISÃO, terá sido introduzido no sistema informático “uma espécie de filtro, com novos parâmetros, que aciona um alerta que permite identificar no imediato quem foi ver o cadastro de fulano ou beltrano”, no caso os tais contribuintes VIP. Na documentação interna, é explicitamente referido que o sistema possui “trilhos de auditoria que identificam o utilizador, indicam a data e hora de ligação e saída do sistema”, dentro ou fora das instalações. Mas nem tudo está sob controlo. Exemplo: os funcionários possuem uma senha ou código de acesso, “mas alguns deles mantêm gabinetes de contabilidade fora das Finanças. Quem garante que esse código é utilizado apenas pelos próprios?”, questionam diversos trabalhadores.
Com o NIF de Passos…
O absurdo também é possível. “Há pessoas a dar o número de contribuinte do Passos Coelho por estarem zangadas com o Governo. Imagine que me indicam o número do primeiro-ministro, eu introduzo e abro no sistema. Dois dias depois estou a ser ouvido em Lisboa numa auditoria interna…”, ironiza o inspetor Gonçalo Rodrigues. Segundo a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, e de acordo com a AT, existe, há mais de 20 anos, “um sistema de monitorização eletrónica onde são registados todos os acessos efetuados às bases de dados de qualquer contribuinte em Portugal”. Assim, “em todos os casos em que a AT tem conhecimento de suspeitas de violação do dever de confidencialidade, é instaurado o correspondente processo de auditoria interna”.
Um dos funcionários alvo de processo disciplinar relatou o seu caso à VISÃO. No âmbito de um procedimento inspetivo relacionado com uma entidade financeira, o cruzamento de dados levou-o ao número de contribuinte de um alto quadro bancário com fortes ligações políticas. “Não sabia sequer que aquele nome ia aparecer, surgiu-me nas averiguações”, explica. Os serviços de auditoria interna quiseram saber se conhecia a mediática figura, as razões pelas quais a tinha consultado e desencadearam o processo disciplinar. “Não há memória de uma coisa assim. Até aceito que a direção da AT queira impedir-me de consultar determinados nomes. O problema é deles. Mas assumam. É que, para mim, os contribuintes são números e isto é atemorizador…”, indigna-se.
Nem sempre, contudo, a postura dos funcionários é imaculada. Dirigentes sindicais são os primeiros a admitir “comportamentos reprováveis” em casos pontuais, associados a algum voyeurismo. “Houve um colega que, na sequência das notícias sobre o Sócrates, consultou os dados do ex-primeiro-ministro por mera curiosidade. Fez mal. Andava até assustado com o que lhe podia acontecer, mas, na verdade, nada lhe aconteceu”, relatam. Estranho? “Dos casos que temos em mãos, é factual que não houve qualquer processo a pessoas que tenham acedido à ficha fiscal de Sócrates”, assegurou Paulo Ralha à VISÃO. “Mais não posso dizer.”
Quem, como e porquê?
Regressemos, por momentos, à falada sessão da Torre do Tombo, na qual Vítor Lourenço se terá referido à “Bolsa VIP”. Logo ali, entre os que o escutavam, pairou a pergunta: alguém acredita que o chefe de divisão dos serviços de auditoria tenha decidido falar da lista de contribuintes famosos por recreação? “Até que ponto falaria do assunto numa formação com 300 inspetores estagiários se não tivesse instruções superiores para isso?”, reforça o presidente do STI.
Os dirigentes sindicais desconfiam dos contornos políticos da “ideia”.
Perguntas geram perguntas: “Vítor Lourenço certamente cumpriu ordens”, atalha Gonçalo Rodrigues que, recorde-se, esteve na ação de formação. “As ordens só podem ter sido políticas. Se a ideia é proteger determinados contribuintes, interessa saber quem mandou e com que intenção.”
Um outro dado sustenta a tese dos sindicalistas.
Numa reunião ocorrida há meses com o diretor-geral da AT, os representantes do STI ficaram com a ideia de que António Brigas Afonso estaria à margem do processo. “Expusemos a questão e ele não pareceu nada familiarizado com ela”, recorda Gonçalo Rodrigues. “Falou muito do Manual de Combate à Corrupção, no qual aparentemente a criação desta lista de contribuintes VIP se inclui, mas não nos pareceu que a ideia viesse dele”, explica aquele inspetor.
O refinamento do sistema informático que estará na origem da deteção dos acessos à alegada “Bolsa VIP” conduz, segundo fontes da AT, a um único nome: José Maria Pires. “É ele quem responde pelas aplicações informáticas que podem permitir uma coisa dessas”, garantem.
O subdiretor-geral da Justiça Tributária e Aduaneira, já por duas vezes falado para diretor-geral, é considerado “muito competente”, além de “bastante influente” na casa e “bem relacionado” com a atual maioria governamental, a começar pela tutela. De acordo com dirigentes sindicais “tem grande ascendente sobre a auditoria”, enquanto fontes do Ministério das Finanças referiram à VISÃO terem existido “fortes pressões do CDS” para que José Maria Pires se mantivesse na direção. A sua proximidade a Paulo Portas é amiúde citada, com almoços à mistura. “Falso”, reage o vice-primeiro-ministro. “Estive com o doutor José Maria Pires uma única vez, enquanto responsável pelo bem-sucedido programa e-fatura”.
O caso ‘Lanalgo’
Em julho passado, o Sol deu conta do “desconforto” que a inclusão daquele responsável na nova direção – da qual já fazia parte, mas agora com poderes reforçados – teria causado nos serviços. As desconfianças internas remetiam, segundo o semanário, para o caso Lanalgo, desencadeado na sequência da venda de um prédio na Baixa de Lisboa com prejuízo para o erário público e suspeitas de favorecimento de interesses particulares. Vários funcionários das Finanças de Lisboa, da qual José Maria Pires era responsável, foram acusados no processo, mas o atual subdiretor-geral das Finanças, que autorizara a venda do imóvel, nem sequer foi a julgamento, tendo sido ilibado por ter confiado nas informações prestadas pelos seus subordinados e apenas delegado poderes. Dos sete arguidos do caso apenas um foi condenado. Com multa.
“A área que está agora em causa a pretexto da ‘Bolsa VIP’ depende desse subdiretor”, confirma Paulo Ralha. “Cabe-lhe, pois, a ele explicar a existência dela.” O caso, assume, não vai ficar por aqui. O sindicato promete levá-lo “até às últimas consequências”. Significa isto, segundo Paulo Ralha, que os responsáveis da AT “sejam ouvidos no Parlamento e haja consequências disciplinares. Não se pode permitir isto num Estado democrático”.