Fala tão depressa e quer dizer tanto que, a meio de uma resposta, para, ri-se e atira: “Qual era a sua pergunta?”. No discurso nota-se a influência do “juridiquês”, próprio de quem se move nas grandes instituições internacionais. O tom anasalado e a figura de “senhora bem” enganam quem a avaliar à primeira vista. Na verdade, é uma radical. Defende as pessoas que os Estados abandonam. É a primeira relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Água Potável e Saneamento. Nomeada em 2008, trabalha pro bono e não tem parado de denunciar a violação de dois direitos básicos que, apenas em 2010, os Estados mundiais declararam Universais. Já visitou 14 países em missão, gere uma equipa de 8 pessoas e um orçamento de €2 milhões por ano. Ouvimo-la após participar numa conferência da Amnistia Internacional Portugal, sobre os efeitos das políticas de austeridade nos Direitos Humanos (DH).
Na sua opinião os Estados terem uma obrigação implícita de não violarem os Direitos Económicos, Sociais e Culturais . Como vê a situação em Portugal?
Tem havido um alheamento relativamente a questões de Direitos Humanos. Parece um mundo esquizofrénico. Há o Portugal que ratificou os tratados e que tem obrigações nessa matéria. E, depois, há o Portugal em crise. Nesse Portugal os Direitos Humanos não são chamados. Tomam-se as medidas que se acham mais apropriadas, independentemente de saber se são ou não potencialmente violadoras dos direitos das pessoas. Choca-me, entristece-me, preocupa-me. Portugal tem sido visto a nível internacional como um defensor dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC) mais que dos Direitos Civis e Políticos. Eu só presidi ao Protocolo Facultativo ao PIDESC [um tratado de direitos humanos que permite às pessoas apresentar queixas, junto das Nações Unidas, contra os seus próprios países, em caso de violação de direitos] por ser portuguesa, por ser uma iniciativa nacional. Se entrar pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) adentro acham que Portugal é um grande defensor dos DESC.
E acha que não?
A nível nacional, não somos. Há uma dupla personalidade, entre o que fomos e o que somos. Entre as obrigações que assumimos e aquilo que fazemos e não fazemos para as respeitar.
Qualquer membro do Governo lhe dirá que está cá a troika, que estamos em crise, há compromissos internacionais…
Na perspetiva do Pacto dos DESC, o Comité de Peritos da ONU, que controla a sua aplicação nos 162 estados membros, reconhece que há alturas com mais dinheiro e com menos dinheiro…
Mas diz no relatório que apresentou, em julho de 2013, à Assembleia Geral da ONU, que a questão não é o dinheiro. É a falta de vontade política para fazer cumprir os Direitos Humanos, por oposição à que existe para salvar bancos, fazer mega eventos ou comprar armamento.
Isso é tudo verdade. Estive em missão no Brasil e as pessoas vivem em favelas à beira dos estádios construídos para o Mundial de 2014. Há dinheiro para o Mundial mas não há para as pessoas. Como houve cá para o Europeu. Ou como há para salvar bancos e não há para salvar as pessoas. Pode ser necessário limitar os gastos nas áreas sociais. O que as Nações Unidas e os peritos internacionais dizem, e que está no tratado, é que se os governos vão fazer cortes há uma série de perguntas que têm de fazer, a priori. Os cortes são indispensáveis? Há outras áreas onde ir buscar dinheiro ou gastar menos? Há outras medidas menos austeras? Se a resposta a todas estas questões for negativa e se chegar à conclusão de que tem mesmo de se cortar, então, como é que se vai cortar? São feitos estudos de impacto nos DH? É evitado o impacto destas medidas nas pessoas mais vulneráveis e marginalizadas?
Nada disso parece compatível com a entrada da troika, das avaliações, das decisões de um grupo de organizações não eleitas.
Concordo consigo, que quer que lhe diga?
Que me diga o que faz a ONU, quanto a isso?
A ONU é composta por Estados membros e é preciso saber se os Estados têm ou não vontade política para fazer alguma coisa. Se calhar a resposta é não.
Mas de que é que isso vale a uma pessoa a quem está a ser negado o direito à água ou à habitação?
Olhemos para o Fundo Monetário Internacional (FMI), que tem no seu Conselho de Governadores Estados que ratificaram os pacto dos DESC, portanto, teriam que dar instruções ao próprio FMI para não tomar determinadas decisões nocivas desses direitos. O mesmo se aplica ao Banco Central Europeu e à Comissão Europeia, todos os estados membros da União Europeia (UE) ratificaram o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos Sociais e Culturais.
O que pode fazer uma relatora especial da ONU para alertar os Estados? Que poder de influência tem? Alguém liga aos seus relatórios?
Depende dos países. Vivo em permanente frustração: observo determinadas realidades, chego a conclusões e depois vejo que as coisas não se passam da maneira como eu acho que se deveriam passar. Tenho a noção de que as pessoas não podem esperar. As pessoas que não têm dinheiro para pagar a conta do supermercado, que ficaram sem abono de família, que estão as ser despejadas porque não têm dinheiro para pagar a renda, não podem esperar. Isto é tudo muito frustrante. Se o meu trabalho tem impacto? “Nim”. Há países que visitei em missão, aos quais fiz um conjunto enorme de recomendações e houve, depois, decisões para seguirem as recomendações que fiz.
Por exemplo?
Nos EUA, no estado da Califórnia, propus que adoptassem uma lei que reconhecesse o direito humano à água e ao saneamento. Foi aprovada. Disse que o tratamento dado às pessoas sem abrigo e a criminalização da mendicidade era uma violação dos Direitos Humanos. A agência federal que trata desta questão publicou agora um relatório dizendo que a solução não é criminalizar estas pessoas, é adoptar medidas que as apoiem, em vez de as excluírem. Na Eslovénia, onde também estive em missão, conclui que as únicas pessoas que estão excluídas do acesso à agua e ao saneamento são ciganos, o povo Roma. Identifiquei as comunidades e, uns meses depois, o embaixador da Eslovénia veio ter comigo, em Genebra [cidade suíça onde se localiza a sede europeia da ONU] e disse-me que ler o meu relatório o tinha feito ver os ciganos como seres humanos, coisa que nunca tinha visto antes! Depois disto o governo esloveno decidiu ir visitar as comunidades que eu visitei e está a adoptar medidas para resolver os problemas identificados. Na Namíbia havia pessoas que viviam em bairros de lata e pediram ao governo uma ligação à rede de água, mas tinham uma única ligação, que tinha de estar no nome de uma associação para, em caso de não pagamento, poderem imputar os custos. Só tinham uma ligação e as mulheres, depois, faziam as derivações, para suas casas. Para a companhia da água esta gente estava a consumir loucuras de água. Em vez de beneficiarem da tarifa social, estavam a pagar uma tarifa industrial. Recomendei ao governo namibiano que mudasse isso e foi mudado.
E em Portugal?
Nunca visitei o país. Acho-me demasiado ligada a Portugal para estar cá em missão.
Mas não vê necessidade?
Então não vejo?! Em Portugal há pano para mangas…
Como se concilia o direito à água com a lógica comercial e de lucro das empresas de distribuição?
Em teoria, pode-se conciliar, desde que o Estado regule.
E na prática?
Na prática… é mais complicado. Podem ser empresas privadas ou públicas, como é o caso da EPAL, que funciona com uma lógica de empresa privada e se rege pelo direito comercial e não pelo direito público. Nesses casos, se não há uma intervenção… Olhe o caso do Brasil, a Sabesp [gestora dos serviços de saneamento, em São Paulo], que tem 20 milhões de clientes, não levava água para as favelas. Teve direito a aumentar a tarifa para investir no sistema. Descobriram que não investiu dinheiro nenhum, 800 e tal milhões [de reais], e cobrou a tarifa mais elevada. A Sabesp está cotada na Bolsa de São Paulo e na de Nova Iorque, distribui meio milhão de lucros aos acionistas todos os anos! Se temos um Estado que não é suficientemente rigoroso a regular a atividades destas empresas podemos ter problemas com os cortes, com os aumentos das tarifas…
Mas o regulador pode ter uma visão puramente liberal vendo a água como negócio ou pode ser instado pelo Governo a criar tarifas sociais, a ter precauções com os cortes de abastecimento…
No caso português, acho que o atual presidente do Conselho Diretivo da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, engenheiro Jaime Melo Baptista, vê como sua missão a promoção e realização plena dos direitos humanos á água e ao saneamento.
Apesar da UE não ter oficialmente uma posição sobre a privatização da água nos Estados Membros, a verdade é que na Grécia e em Portugal houve indicações nos memorandos de entendimento com a troika, da qual faz parte a mesma UE, para que as empresas públicas de água fossem privatizadas. Como vê essa situação?
Vejo como pouco transparente. Em 2010 apresentei um relatório ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre a participação do setor privado nos serviços de água e saneamento. Disse que há pré-requisitos que devem ser cumpridos para se poder delegar esses serviços a terceiros. Estas decisões têm de envolver a participação cidadã. Não podem ser feitas à socapa, sem se perceber qual vai ser o impacto dessa decisão nos Direitos Humanos e sem dar a possibilidade às pessoas de se exprimirem, de influenciarem a decisão.
Mas como relatora especial da ONU pode ter uma posição sobre o assunto?
Escrevo regularmente a vários governos a propósito deste tema. Uma parte do meu trabalho é um diálogo de bastidores para chamar a atenção sobre situações que podem ser violadoras dos Direitos Humanos. As obrigações de Direitos Humanos são dos Estados, que ratificam, porque querem, determinados tratados e têm obrigação jurídica de os cumprir. Temos de pedir contas não à ONU, mas aos países. Porque é que Portugal está a tomar as medidas que toma com desrespeito por Direitos Humanos, porque é que a Grécia…
Para si é óbvio que as medidas de austeridade, em Portugal, desrespeitam os Direitos Humanos?
A minha presunção é de que sim. O que vejo são retrocessos nos Direitos Humanos e os retrocessos, à partida, são violações. A menos que alguém me prove que não, coisa que nunca ninguém fez – o Governo nunca me veio provar que não são violações – eu parto do princípio que são.
Compilou dados muito relevantes sobre as consequências da austeridade nos países europeus.
Sim, o primeiro exemplo foi na área do abono de família, em Portugal: 30% dos jovens e crianças, entre 2009 e 2012, perderam abono de família, eram 1,8 milhões e estamos em 1,3 milhões. Temos de perceber o que isto quer dizer para uma família com crianças a seu cargo e em que, imaginemos, a mãe é funcionária pública, sofreu cortes, o pai pode ter perdido o emprego… Há um acumular de austeridade que pode provocar violações de direitos. Porque a visão do Pacto Internacional sobre os DESC é a realização progressiva e plena. Quando vai no sentido contrário há um problema. A Letónia, em 2009, cortou 50% do orçamento na área da Educação. Na Grécia, em dois anos, as infeções com VIH em utilizadores de drogas aumentaram 20 vezes, porque cortaram programas de troca de seringas, de dispensa de metadona.
Critica também a política fiscal, a que chama de “tributação regressiva”.
O IVA é uma arma de destruição maciça. O IRS afeta mais quem ganha mais e menos quem ganha menos, em teoria. Depois temos a economia paralela, a evasão ao Fisco, os paraísos fiscais que beneficiam quem mais tem – pagam menos e ainda fogem. O IVA é completamente cego e agora vai passar a 23,25%. É tanto pago por nós, como por uma pessoa que beneficia do rendimento social de inserção. Obviamente, dentro de um bolo de dinheiro limitado, estes 23,25% vão ter um impacto muito maior do que para quem ganha milhões. Como política fiscal, o aumento do IVA deve ser das piores medidas para os Direitos Humanos. É como a arma nuclear, mata tudo o que aparece à frente, não distingue.
Quer dizer que o Governo português acabou de contribuir para a violação dos Direitos Humanos em Portugal?
Sim. Vai insistir num erro, que vai onerar mais as pessoas que menos podem. O que diz o Pacto dos Direitos Humanos é: “Adotem medidas de austeridade mas não deixem que elas tenham impacto em quem menos pode”. Isto é o contrário.
Mas as medidas de austeridade não são iguais em todo o lado.
Não, não são. Olhamos para a Islândia, durante esta crise, e os rendimentos dos mais pobres só se reduziram 9%, enquanto os dos mais ricos tiveram um corte de 38%. Na Irlanda, aconteceu exatamente o contrário: os mais pobres tiveram uma redução de rendimento de 26% e os mais ricos de 8%. Isto mostra-nos que é possível onerar mais quem tem mais dinheiro.
As pessoas juntam-se para defender a água pública, como no refendo feito em Itália, em 2011, ou na iniciativa de cidadania europeia “Rigth2water”, que reuniu 1.6 milhões de assinaturas, pelo direito à água pública potável e ao saneamento. Depois há a ação dos Estados: em Itália o referendo foi ignorado, em vários países da UE preparam-se privatizações. Que pensa disto?
Um princípio fundamental de Direitos Humanos é o da participação. O meu próximo relatório à Assembleia-Geral da ONU vai ser sobre este tema. Os Governos veem-na como algo do género: “Isto já está feito, venham cá bater palmas e pronto”. As coisas têm de ser feitas com outra seriedade. No caso italiano há uma contradição entre a participação pública e as decisões tomadas. Mas às vezes as coisas são mais complicadas. Ninguém quer aumento de tarifas. O Egito, que visitei, tem as tarifas mais baixas do mundo. Quem mais pode está a pagar um preço ridículo e as pessoas que moram em bairros de lata têm de recorrer a vendedores privados e pagam muito mais. As pessoas têm de ser esclarecidas. Se queremos garantir que há água para as gerações futuras, alguma coisa temos de pagar. Mas é para ser reinvestido na água, não é para ser distribuído a investidores em Nova Iorque.
Foram divulgadas pressões da Comissão Europeia junto do governo italiano para que ignorasse os resultados do referendo.
Eu não tenho capacetes azuis a meu serviço. Não posso mandar a tropa entrar pela Itália adentro e dizer: “Façam aquilo que as pessoas disserem…”. Os mecanismos de Direitos Humanos não têm capacetes azuis para obrigar os Governos a respeitar. Podemos escrever cartas, falar com a imprensa, fazer pressão mas não se esqueça que o meu cargo foi criado pelos Estados membros das Nações Unidas. É como pôr a raposa a tomar conta das galinhas. Deram-me determinados poderes – limitados – precisamente para não ferir demasiadas suscetibilidades.
Em que é que os seus poderes são limitados?
Então, não tenho capacetes azuis!
E se tivesse?
Ahhh… se tivesse era diferente! Então já viu para onde eu mandava capacetes azuis?! Acho que mandava para todos os países do mundo por causa da água e do saneamento. Ainda não visitei um país, no mundo, em que não houvesse problemas de Direitos Humanos. Acho que seria necessário as Nações Unidas serem dotadas de mecanismos mais ágeis e que tivessem garras.
BI | Catarina de Albuquerque
A Jurista da Água
Nascida em Lisboa, há 43 anos, é jurista na Procuradoria-Geral da República. Licenciou-se em Direito, fez mestrado no Instituto de Altos Estudos Internacionais e Desenvolvimento, na Suíça. De 2004 a 2008 presidiu às negociações internacionais do novo tratado de direitos humanos que permite às pessoas apresentar queixas, junto da ONU, contra os seus próprios países, em caso de violação de direitos. Consultora da UNICEF, Comissão Europeia e Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, dá aulas em várias faculdades de Direito, portuguesas e estrangeiras. Foi condecorada, em 2009, com a Ordem de Mérito, pelo Presidente da República.