Era suposto ter sido uma conversa sobre o seu novo livro, Forças Armadas em Portugal, um ensaio que a Fundação Francisco Manuel dos Santos e a Relógio d’Água acaba de dar à estampa e no qual um dos mais conceituados estrategos portugueses faz uma radiografia factual e apaixonada da instituição militar. Mas com um comunicador como José Alberto Loureiro dos Santos resvala-se fácil e alegremente para outros assuntos laterais relacionados com o objeto daquelas 110 páginas de minuciosa análise. Eis o registo possível de uma conversa em que o general fala também num plano B para Portugal: a criação de condições para o país sair da UE. Se assim o entender.
Este livro responde a uma série de perguntas. Incluindo esta: para que servem as Forças Armadas?
Para dar consistência e realidade a um Estado, que sem elas não pode considerar-se como tal. É olhado pelos outros como um vazio de poder. E como a natureza tem horror ao vazio, esse será sempre preenchido. Imagine que Portugal não tinha Forças Armadas (FA). Como é que a Espanha olharia para este espaço? O que prepararia se aqui se passassem coisas que entenderia como prejuízo para si? Como é que os Estados Unidos olhariam este espaço vazio? A melhor maneira de nos apercebermos da sua importância é colocarmo-nos numa posição em que elas não existissem e tentar perceber o que cada Estado próximo e com interesses estratégicos na área se prepararia para fazer.
O general fala sobre o emprego de tropas em território nacional e sobre uma experiência de juventude
A obra está repleta de estatísticas. Confirma que só cerca de 20% dos gastos das FA se destinam à parte de operações e manutenção e 80% são para o pessoal?
Sim. Mas também que Portugal, com menos dinheiro, apresenta um produto operacional semelhante ao dos seus aliados.
Pode explicar?
Fiz uma comparação com as FA de Espanha (dada a vizinhança), da Bélgica e Holanda (dois países cuja população é próxima da nossa). Comparei efetivos, custos e rendimento do investimento. Temos uma percentagem de custos com pessoal acima do recomendável, mas se olharmos para os custos da Defesa por militar ao serviço, temos 42 000 euros por ano em Portugal, 73 860 na Bélgica, 186 000 na Holanda e 61 240 em Espanha. Ou seja, os militares portugueses têm uma rentabilidade operacional maior. Conseguem fazer o mesmo ou mais do que os seus parceiros com menos dinheiro.
Como se explica a desproporção percentual dos custos com pessoal?
Uma aquisição de equipamento e modernização que esteja de acordo com as necessidades das Forças Armadas repercute-se na proporção de entre gastos com pessoal e os gastos com operação e manutenção. Em Portugal não compramos material importante há vários anos. A Lei de Programação Militar (LPM) não tem sido cumprida – há muitos anos que têm sido cativados cerca de 30 por cento das verbas. E, nos últimos dois anos, foram reduzidos 40% (2011) e 20% (2012). Só estão em vigor programas que já estavam em execução. Não havendo gastos com material, o custo com pessoal avulta no total. A continuar assim, acabamos por gastar 100% com o pessoal. A lógica é a seguinte. Cortam-se as compras de material, aumenta a proporção dos gastos com pessoal, dígamos para 90%, então dizem que não pode ser, que é preciso reduzir efetivos. Reduzem-se os efetivos, mas a percentagem dos gastos com pessoal continua elevadíssima.
Isso é uma crítica à atual política de defesa?
É a forma como o Estado português tem encarado as Forças Armadas. Vem de trás e não é um problema característico deste Governo, que apanhou com o auge da crise.
Desde meados dos anos noventa, houve 12 ministros da Defesa, a maioria figuras sem peso político. Vê nisso um sintoma da forma como o Estado tem encarado as FA?
Desde que vivemos em democracia, o primeiro-ministro nunca assumiu verdadeiramente as suas funções de primeiro responsável pela política de segurança e defesa nacional. E daí resultou que se encarassem as FA como algo que não se sabe bem para o que é que serve, mas que de vez em quanto, faz umas operações que dão um certo prestígio ao país e deixam os governos todos contentes. Mas que, de resto, só dão chatices. A postura tem sido esta de um modo geral.
O panorama é assim tão desesperado?
Parece ter mudado um pouco. Pela primeira vez, o primeiro-ministro, em vez de ter nomeado um adjunto militar, nomeou um assessor para a segurança nacional. Dá a ideia de o chefe do governo querer assumir (não sei se o fará mesmo) as suas responsabilidades primárias em matéria de segurança nacional, o que implica e envolve as FA. Há outro indicador que me dá uma certa esperança: os estudos feitos para o novo conceito estratégico de segurança e defesa foram, pela primeira vez, nos moldes de integrar segurança e defesa.
Além de um maior envolvimento do primeiro-ministro nessa matéria, essa esperança relaciona-se também com um papel das Forças Armadas que vá além da Defesa propriamente dita?
Não. O papel constitucionalmente previsto para as forças armadas é o correto, a meu ver. Em primeiro lugar têm de fazer face às ameaças de natureza externa aos nossos interesses (pode não ser apenas ao território nacional); em segundo, são o último garante da segurança dos cidadãos e garantia do funcionamento das instituições democráticas (o caso de haver uma grande convulsão no país, as FA têm por missão impedir que o país se transforme numa anarquia; em terceiro é o de servir como instrumento da política externa do Estado. Atualmente, a seguir ao futebol, é um dos mais importantes (risos).
Com menos gastos…?
Essa comparação não fiz essa comparação [risos]. A nossa presença no Afeganistão, no Líbano, no Kosovo e contra a pirataria dá-nos uma exposição que nos pode trazer contrapartidas de natureza económica ou de representação externa, além do prestígio. Nós somos um fornecedor de segurança.
Vamos ver brevemente militares em operações de segurança interna, por exemplo em aeroportos?
De acordo com a constituição, em território nacional, os militares podem e devem efetuar operações que chamamos de interesse público, como o apoio no combate aos incêndios, catástrofes, busca e salvamento, que têm condições e equipamento para fazer.
Outra coisa é colocar militares a fazer operações de combate no País. A Constituição só prevê três situações – guerra, estado de sítio ou estado de emergência. Ultimamente existem uma série de ameaças relacionadas com o terrorismo, a grande criminalidade organizada e os guetos que poderão exigir operações com militares, quando as forças de segurança não têm capacidades suficientes para fazer face a esses problemas. Por exemplo se aparecer um avião renegado com um tipo que o vai despenhar no Estádio do Restelo, cheio de gente, durante uma visita papal, tem de ser a força aérea ou o exército que têm meios antiaéreos a abatê-lo. Não pode ser a GNR ou a PSP…
Claro. Mas isso iria causar um imbróglio jurídico, à luz da atual legislação… A Força Aérea pode intercetar o avião, mas abatê-lo é mais complicado.
Exatamente! A Lei da Defesa Nacional foi alterada e introduziu-se um termo novo: “ameaças transnacionais”. A ideia é de que é possível as Forças Armadas fazerem face, em território nacional, a ameaças transnacionais. Mas o que são ameaças transnacionais? Não se sabem bem, é uma terminologia que não vem na Constituição. É preciso um acerto da legislação, que passa por uma revisão pontual da Constituição, permitindo que em determinadas circunstâncias as Forças Armadas possam atuar, quando – e só quando – as forças de segurança não tiverem capacidade para o fazer. Esses casos devem ser, no entanto, uma exceção. Os militares não têm autoridade policial (nem devem tê-la). Por isso julgo que numa situação dessas, os militares devem andar acompanhados por um elemento das forças de segurança interna.
Acha que essa colaboração é exequível num país de capelinhas como Portugal?
É possível. E há ainda outra coisa: para este tipo de ameaças é preciso haver planeamento. Veja, se aparecer o tal avião, depois de entrar no espaço aéreo português em Badajoz, demora 10 minutos a chegar a Lisboa. Em 10 minutos não é possível o Presidente declarar o estado de exceção que permite às FA abater esse avião [o para o fazer o PR tem de ser autorizado pelo Parlamento e ouvir o Governo]. Tem de haver planos aprovados pelos três órgãos de soberania para que, em determinadas circunstâncias, o primeiro-ministro possa dar ordens ao chefe da Força Aérea ou do exército para mandar abater o avião. É isso que falha na nossa legislação. A solução podia passar por criar um outro estado de exceção – estado de crise, por exemplo – que não exigisse a restrição de direitos, liberdades e garantias.
Como é que os cortes nos orçamentos europeus de Defesa estão a afetar o nosso ambiente estratégico mais próximo?
Em 1990, a Europa cooperava nos gastos da NATO em 40%, agora fica-se por 20 por cento. A maioria dos países europeus gasta à volta de 1% do PIB com a Defesa: só dois ou três despendem acima dos 2 por cento. Isso torna a capacidade europeia de Defesa praticamente risível. E a situação agrava-se porque os EUA, na sua reorganização estratégica, dão prioridade à Ásia-Pacífico, retraindo-se na Europa, onde a sua grande preocupação é o sistema de defesa antimíssil. Entendem que todos os problemas que ocorram na Europa e na sua periferia são problemas europeus. Foi nessa base que abordaram a questão da Líbia. Os europeus terão de reforçar os seus meios de Segurança e Defesa a muito curto prazo. A alteração do quadro estratégico exigirá aos europeus mais meios e mais esforço do que até agora. As ameaças existem: as questões dos Balcãs estão adormecidas e longe de resolvidas e não sabemos o que vai acontecer ao Norte de África.
Como vê a atual situação no Norte de África, tendo em conta a nossa proximidade?
A região está um verdadeiro barril de pólvora. Não se sabe bem o que se está a passar. Na Líbia, na Argélia, no Egito e mesmo em Marrocos as coisas estão indefinidas. Acabo de ler que, no Norte do Mali, os tuaregues fizeram um acordo com os islamitas e estabeleceram um emirado. Isso, ligado à Al Qaeda no Magrebe islâmico, torna-se extremamente preocupante. Eles dispõem de muito equipamento, incluindo sofisticados mísseis antiaéreos portáteis. A Líbia tinha arsenais cheios desse material. Por outro lado, arriscamo-nos a que, dentro de algum tempo, haja pirataria no Mediterrâneo. É um regresso ao século XVIII: “Há mouro na costa!” Não se pense, como fazem alguns responsáveis políticos portugueses, que podemos reduzir as FA a meia dúzia de barquetas e a uns aviõezecos ou um punhado de militares para fazer guardas de honra. E esse é um problema que os europeus têm de resolver.
Vão fazê-lo liderados pela Alemanha?
Um dos interesses permanentes da Alemanha é ter fronteiras defensáveis, que não tem. Há dois casos desses na Europa a Alemanha e a Rússia. Mas esta tem espaço para trocar por tempo. Arranja, assim, “espaço tampão” para retirar e desgastar o invasor, como aconteceu com Napoleão e Hitler. A Alemanha não tem esse espaço e procura fazer com que as suas fronteiras sejam nas costas marítimas da Europa. Tentou isso duas vezes pelas armas sem o conseguir. Não digo que seja uma intenção deliberada, mas a crise das dívidas soberanas dá-lhe essa oportunidade. Se encontrar uma solução em que junte num bloco económico todos os países europeus (como é o país mais poderoso será sempre a voz mais importante) conseguiu salvaguardar o tal interesse permanente. Não pelas armas, mas em termos económicos. Não sei é se a maneira como está a agir lhe permitirá fazer isso. Sente-se que, em termos políticos, certos países europeus, os que lhe garantem as praias, estão a ficar zangados.
Há uns tempos escreveu que isso podia corresponder a uma estratégia deliberada de Berlim.
A austeridade pode ser um instrumento de dominação. Para quem domina é importante manter o dominado na sua dependência. Neste momento qual é a alternativa para os países apoiados pela Alemanha em troca de austeridade? É a anarquia. Não vejo como a Grécia pode sobreviver se não conseguir manter o acordo de resgate. Esse receio de os países não terem alternativa é do interesse da Alemanha, por mantém a ligação a ela. A saída da União Europeia (leia-se da dependência dos alemães) é uma catástrofe. Isso passa-se com qualquer país que venha a ser intervencionado. A Alemanha tem de saber gerir isso muito bem e deverá mudar de agulha assim que perceber que os inconvenientes dessa situação se viram contra ela e começar a permitir situações de crescimento económico.
Durante a entrevista não mencionou um vocábulo associado às Forças Armadas: soberania. Foi de propósito? Ainda temos soberania?
Neste momento somos um país de soberania limitada. Um dos aspetos mais importantes do poder nacional é a autonomia, o poder decidir sobre as suas contas. Temos de ler a soberania em função dos interesses nacionais e do quadro estratégico da época. O grande problema do país é ser refém de algum ator que pode ter interesses estratégicos diferentes dos nossos, o quem já aconteceu várias vezes na história. Neste momento Portugal é refém da união Europeia. Portugal e a envolvente estratégica criaram uma situação em que deixámos de ter liberdade de ação face à união Europeia. Temos de fazer aquilo que os poderes europeus entenderem que é melhor para o conjunto, que pode não ser o que mais nos interessa. Recupera soberania é ter liberdade de ação faxe aos vários atores internacionais. O ideal para Portugal é ser uma espécie de país ponte, que tem interesses na Europa, América, Ásia e África e articula os seus interesses com esses equilíbrios estratégicos resultantes destes vários pontos de apoio. Estamos muito longe de ser isso. Mas se recuperarmos a capacidade de manejar as nossas contas públicas, mesmo mantendo-nos ligados á EU, temos capacidade para sair a qualquer momento.
Isso soa a “plano B”.
Eu acho que sim…
Concebeu um “plano B” para o país?
Não o tenho em pormenor. Mas em termos de visão estratégica, julgo que o grande objetivo estratégico de Portugal para os próximos anos é criar condições para, se quiser e se lhe for útil, sair da União Europeia. Portugal não tem neste momento condições para sair da União Europeia.