Está lá tudo, e mais alguma coisa: links da Wikipédia, informações pessoais, histórias amorosas, sites vários, apreciações. Catalogada como uma agenda, a extensa lista de “ficheiros” pessoais que o ex-diretor do SIED (Serviço de Informações Estratégicas de Defesa), Jorge Silva Carvalho, 45 anos, guardava no seu telefone móvel de última geração é um dos enigmas que as várias investigações a que está sujeito terão de decifrar.
Com que finalidade guardaria o ex-espião tanta informação sobre diversas personalidades influentes da vida nacional? Quando ainda era diretor da secreta, Silva Carvalho gostava de dizer que o seu ponto forte era “o conhecimento dos segredos” (Sol, 12/4/2008). Quem o conhece, garante que é um “obcecado por informação”. Mas esta lista, que já era do conhecimento de vários elementos das secretas, e que foi descoberta durante as buscas de que Jorge Carvalho foi alvo por parte da equipa do Departamento de Investigação e Ação Penal, levanta várias interrogações sobre a relação que o ex-diretor mantinha com os serviços secretos, mesmo depois de ter saído, em novembro de 2010.
Investigado por suspeitas de utilizar, para fins privados, informação reservada dos serviços, Jorge Carvalho terá agora de explicar se a lista de dossiês sobre personalidades que transportava no seu telemóvel foi, ou não, construída com recurso a dados secretos, só ao alcance dos agentes dos serviços de informações.
Na origem deste processo contra Jorge Carvalho, estão as suspeitas de ter prestado informações à Ongoing (empresa privada de que é administrador desde dezembro de 2010), no período em que ainda dirigia o SIED. Publicada pelo Expresso, esta notícia revelou, ainda, que os serviços podem ter tido acesso, à margem da lei, aos contactos telefónicos feitos por um jornalista do Público. Foi o fim abrupto de uma etapa que parecia destinada a outros voos.
Desde então, Jorge Carvalho responde em dois inquéritos diferentes: uma investigação do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) e uma averiguação interna no SIRP (que tutela as duas secretas, o SIS e o SIED). Paralelamente, decorrem as habituais averiguações do Conselho de Fiscalização dos serviços.
Tal como na história de J. Egar Hoover (que Clint Eastwood acaba de passar ao cinema), as “listas de personalidades públicas” recolhidas por serviços de informações são uma matéria quase tabu. O sucessor de Hoover, L. Patrick Gray, terá pedido à secretária do FBI para ver as famosas listas. A resposta foi: esse tipo de processos individuais são ilegais, não existem. E, de facto, desapareceram, sem deixar rasto.
A lista de Carvalho é o culminar de uma carreira feita de conexões, contactos, influência. O ex-diretor do SIED sempre procurou criar laços. E conseguiu. No seu círculo próximo, estão vários políticos (do PSD e PS) e gestores. Na sua página do Facebook, recebe a solidariedade e os “gostos” de António Cunha Vaz (dono de uma agência de comunicação que trabalha para a Ongoing), Jorge Rosa de Oliveira (embaixador, ex-adjunto diplomático de José Sócrates) e até de Jorge Bacelar Gouveia (ex-deputado do PSD e ex-presidente da Comissão de Fiscalização das secretas).
Guerra aberta
Foi no pior momento da sua vida profissional, quando esteve em risco a sua continuidade nos serviços secretos, que Jorge Silva Carvalho delineou o plano que o haveria de trazer de volta à ribalta.
Em 2004, no conturbado momento político em que Durão Barroso cedeu o poder a Santana Lopes, Margarida Blasco, juíza desembargadora, chefiava o SIS (Serviços de Informações de Segurança), e Jorge Silva Carvalho dirigia o departamento de relações externas da secreta. Tinha 37 anos e subira depressa. Talvez de mais…
Tinha acabado o Euro 2004 e a diretora guardava boa impressão de Jorge Carvalho, responsável pela ligação à secreta holandesa, a qual conduziu à neutralização de um grupo suspeito de terrorismo, que ameaçara a segurança, durante o campeonato de futebol. O pior veio depois, quando o espião foi “apanhado” a colaborar, sem o conhecimento de Margarida Blasco, na elaboração da Lei Orgânica 4/2004, de 6 de novembro, que alterou as regras do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP). A diretora desconfiou que a colaboração de Carvalho incluíra a troca de documentação interna com o diretor-geral adjunto do SIEDM, Paulo Vizeu Pinheiro (atual adjunto diplomático de Pedro Passos Coelho). Foi afastado por “conveniência de serviço”. Um eufemismo para despedido com justa causa, na linguagem das secretas.
Ironia: Carvalho é simpatizante do PSD, o partido que escolhera a diretora que o quer afastar – e, para cúmulo, por ele ter colaborado com um homem próximo de Durão Barroso, na feitura de uma lei…
Fica poucos meses sem dar sinal de vida na Avenida Alexandre Herculano. Mas não fica parado. Enquanto Margarida Blasco assiste à queda do poder que a nomeara (Sócrates vence por maioria absoluta as legislativas de fevereiro de 2005), já Jorge Carvalho traça um novo rumo. Pede a José Manuel Anes, que conhecia das ações de formação para os agentes do SIS, que o inicie na Grande Loja Legal de Portugal, um ramo da Maçonaria, de que Anes fora grão-mestre um ano antes. E é a partir da Maçonaria, e das oportunidades que encontra com a mudança de poder nas secretas que Carvalho volta a aparecer. Para ajustar contas e subir.
Estilo: rolo compressor
Em maio de 2005, regressa pela porta grande, como chefe de gabinete do novo secretário-geral do SIRP, Júlio Pereira. Margarida Blasco volta para a Relação de Lisboa e passa à história como uma diretora “inexperiente” e fugaz (pouco mais de um ano de mandato), mas também como a única que travou a ascensão de Jorge Carvalho.
O percurso que este iniciou nessa altura terminou, com estrondo, no verão passado, quando se tornou objeto de suspeitas graves de ter usado as secretas para benefício próprio.
Neste mundo de informações, e muita contrainformação, a queda em desgraça de um “espião” com esta notoriedade suscita muitas teorias e uma boa dose de “conspirações”.
Como num jogo de detetives, há muitos suspeitos. Afinal, por onde passou, o estilo “rolo compressor” de Carvalho foi deixando inimigos. Esta é uma história de ambição pessoal, inveja e vingança. Um guião no qual a condição humana se mistura com a política e os negócios, com a fé e o misticismo, com a história recente e os atavismos do Estado português.
Nascido num dia de efeméride “infame”, 28 de maio de 1966, numa cidade que já não se chama Lourenço Marques, num império colonial que caiu quando tinha apenas 7 anos, Jorge Jacob da Silva de Carvalho e a família acabariam por retornar a Portugal. Com 11 anos, em Almada, começou a crescer um jovem tímido, bom aluno, que não queria ser tratado por “retornado” e sim por “refugiado”.
Católico, num bastião comunista, cedo primou pela diferença. Aprumado, bem penteado, a aprender francês na Alliance, passou pelos anos 80 sem registos de rebeldia.
É com naturalidade que entra na faculdade de Direito de Lisboa. A mesma em que usa o seu metro e 90 de altura para se impor como timoneiro, numa equipa de remo. Marcava o ritmo, liderava, mas mantinha-se discreto entre a multidão de futuros juristas.
Hoje, é fácil olhar para os gostos de Jorge Carvalho e adivinhar-lhes uma predestinação: via a série televisiva O Santo (Simon Templar) e gostava de histórias de detetives. Mais difícil é imaginar um jovem alto, com o diploma debaixo do braço, a cruzar, em 1991, as portas da sede dos recém-criados Serviços de Informações de Segurança (SIS), na movimentada Avenida Alexandre Herculano, em Lisboa, para se candidatar a uma vaga de agente secreto…
Foi mesmo assim. Era dos poucos que não vinha munido de “recomendação” (muitos dos candidatos eram familiares de diplomatas e militares). Havia um único senão… Jorge Carvalho ainda não completara 25 anos, a idade mínima exigida para a admissão.
A influência do ‘grupo de Macau’
Nos serviços, reparam na determinação do jovem candidato. E prolongam-lhe o processo de “credenciação”. Jorge Carvalho retribui a atenção com redobrada disponibilidade.
Aceita todos os serviços, mostra vontade de correr riscos, passa noites inteiras a trabalhar. É encarado pelas chefias como um funcionário com forte potencial de crescimento, juntamente com um pequeno número de espiões recém-formados, entre os quais está G.V. – o arqui-inimigo com quem manteve vários duelos, ao longo da carreira. Em dezembro de 2003, deslocam-se em carros separados a Madrid para assistir ao funeral de sete agentes espanhóis assassinados no Iraque. A divisão entre os dois “personagens mais interessantes do SIS” tornava-se pública.
A ascensão de Jorge Carvalho na estrutura dos serviços é meteórica, os colegas dizem que caiu nas boas graças da “firma Pereira” (uma referência ao livro Afirma Pereira, de António Tabbuchi), como era designado o grupo dos três homens mais poderosos do SI, nessa época: o diretor Rui Pereira e os adjuntos Júlio Pereira e Teles Pereira.
Os dois primeiros, com Heitor Romana, outro homem forte do SIS, constituíam o famoso “grupo de Macau”, por terem trabalhado na administração portuguesa daquele território. É sempre graças a estes três homens que Jorge Silva Carvalho progride para cargos de direção.
Heitor Romana haveria, entretanto, de se ver envolvido num escândalo que terminaria com a sua demissão. Em 2002, o Diário de Notícias revela uma lista com nomes de personalidades – Ângelo Correia, Dias Loureiro e Cardoso e Cunha – que estariam a ser vigiadas pelos serviços secretos, por causa dos negócios que mantinham em África. Na altura, Heitor Romana era diretor-adjunto do SIEDM. Cinco anos após o seu afastamento, regressa às secretas pela mão de Júlio Pereira, de quem Jorge Carvalho era chefe de gabinete. E logo para dirigir o importante departamento central de Formação, Seleção, e Recursos Humanos. Esta escolha originou um documento anónimo de protesto, no interior das secretas.
Mesmo assim, Jorge Carvalho consegue progredir na hierarquia. É nomeado diretor do SIED, em abril de 2008. Está casado, com uma médica e tem 3 filhos.
Maçonaria e segurança interna
Nesta altura, já o seu nome provocava alguns calafrios entre alguns influentes maçons. A carreira iniciática do espião fora rápida: iniciara-se na loja Mercúrio, a mais importante da GLLP/GLRP, em 2005. Um ano depois, sai para fundar a Loja Mozart, levando consigo um leque escolhido de “irmãos”, todos com o mesmo perfil: jovens (entre os 30 e os 40 anos), com “possibilidade de progressão”. Entre eles estão, além dos veteranos Paulo Noguês (dono da editora da revista Segurança e Defesa) e Neto da Silva (ex-secretário de Estado de Cavaco Silva), os “promissores” Nuno Vasconcellos e Rafael Mora (da Ongoing), Luís Montenegro, Vasco Rato e Agostinho Branquinho (PSD), João Paulo Alfaro e F.R. (secretas) e vários homens ligados ao mundo da segurança interna, como o general José Cordeiro.
Carvalho é o segundo “venerável” da loja, depois de Noguês. É com ele que as reuniões passam a realizar-se “a coberto”, secretamente. O cargo máximo será entregue a Vasconcellos, quando Jorge assume a liderança do SIED.
Nessa altura, já José Manuel Anes se arrepende de o ter recrutado. “Ele maltratou o padrinho, dentro e fora da Maçonaria, e começou a fazer o contrário do que eu lhe dizia”, lamentou Anes, ao Público. A razão parece clara: ambos eram mestres maçons que se moviam no mesmo meio – secretas e segurança interna. “Só havia espaço para um…”, garante uma fonte próxima do ex-grão-mestre, que se viu afastado das ações de formação do SIS, e atribui a Carvalho, a partir dessa altura, uma guerra pelo controlo de várias organizações, na órbita deste grupo de maçons, como o Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, presidido por Rui Pereira, em 2005, data da sua criação.
Muito embora o percurso na Maçonaria acompanhe a sua caminhada nas secretas, a carreira “iniciática” de Jorge Carvalho parece ser apenas mais uma porta de acesso a contactos pessoais. Um segredo dentro de um mundo de segredos.
Quando usava o avental e os símbolos rituais, Carvalho levava a sério os códigos. Também aqui foi um “aluno” exemplar e dedicado.
Data daí o atual projeto da Ongoing. Depois da rejeição da OPA da Sonae à PT, o grupo de Nuno Vasconcellos começou a internacionalizar-se. Brasil, Angola e Moçambique foram as áreas de eleição. Um mercado natural, para uma empresa portuguesa, mas também precisamente aquele onde a estrutura do SIED produzia mais informação.
Em 2009, a Ongoing contrata o ex-espião João Paulo Alfaro, da Mozart, o homem com quem Silva Carvalho terá trocado os emails que originaram a investigação atual.
Amigo de políticos e empresários
Aqui, chegamos ao culminar de toda esta história: no início de novembro de 2010, poucos dias antes da realização, em Lisboa, da cimeira da NATO, Jorge Carvalho demite-se do SIED, em protesto contra os cortes orçamentais que, na sua opinião, limitariam a ação dos serviços.
O gabinete do primeiro-ministro José Sócrates queixa-se de que a demissão terá chegado depois de anunciada pela imprensa. E afirma que o ex-diretor “prejudicou o País”. Carvalho nega: “Apresentei a demissão a 8 de novembro. Esse foi o timing que achei mais conveniente.” (DN, 1/12/2010)
Jorge Carvalho quis mostrar, também, que se afastava definitivamente do PS. E vai-se aproximando do PSD…
“Conheço o Dr. Silva Carvalho pessoalmente desde 2008, quando ele me foi apresentado num seminário público, em que participei, da revista de Segurança e Defesa, em Lisboa, sobre o tema infraestruturas críticas”, lembra Marco António Costa, secretário de Estado da Segurança Social. Também Miguel Relvas, o influente ministro Adjunto de Passos Coelho, se recorda do momento em que conheceu o homem das secretas: “Conheci o Dr. Jorge Silva Carvalho num almoço, em 2010.”
Relvas e Marco António são dois dos mais importantes dirigentes do atual PSD. Mas a tentativa de Jorge Carvalho de, através deles, se aproximar de Passos Coelho não surte efeito. Consegue almoçar com o atual primeiro-ministro, por intermédio de Vasco Rato. Mas, tal como com José Sócrates (com quem apenas privou no dia da sua tomada de posse), não se tornou íntimo do topo da hierarquia do poder.
No mundo das empresas, tudo foi mais fácil. Vários empresários terão almoçado na sede do SIED, no Alto do Duque (antigo Copcon), em Lisboa. Com vista para a barra do Tejo, e com o bom gosto gastronómico do anfitrião, ali terão decorrido muitas conversas distendidas, sobre ameaças ao investimento no exterior. A “intel” económica foi uma das principais reformas de Silva Carvalho. E o seu trabalho nesta área é reconhecido. Mas o protocolo que rege o papel do SIED na relação com as empresas é rígido: não pode haver passagem direta de informações, que devem, antes, ser canalizadas pelos serviços para o gabinete do primeiro-ministro – e só este as pode disponibilizar às empresas. Esse é um dos pontos centrais do processo do DIAP.
Terá Silva Carvalho ignorado este protocolo, quando forneceu informações à Ongoing? E tê-las-á cedido também a outras empresas?
Numa coisa, as dezenas de fontes contactadas pela VISÃO, e que pediram o anonimato, coincidem: o que explica este caso é a ambição de poder. Quer entre agentes dos serviços, quer para as várias pessoas que entrevistámos e que são próximas de Jorge Carvalho, a ambição de chefiar o mundo das secretas era conhecida.
Mas falhou…
Como resume uma individualidade que o conhece há mais de 20 anos: “Ele foi competente em tudo. Só não foi competente a concretizar a sua ambição pessoal.”