Olhando hoje para trás, para aquele 25 de Junho de 2008, em que João Figueiredo se despediu do cargo de secretário de Estado da Administração Pública para ingressar, como juiz, no Tribunal de Contas, José Sócrates terá ficado perplexo. É que aquela que tinha sido, no seu primeiro mandato, uma das pedras-de-toque da acção governativa, tornara-se, em pouco mais de um ano, numa das mais incómodas pedras no sapato da segunda legislatura socialista.
Em 2005, João Figueiredo viu-lhe confiada a escaldante empreitada da reforma da Administração Pública, que implicou a extinção de mais de cem organismos estatais e a colocação de milhares de funcionários públicos em quadros de mobilidade ou de supranumerários. Apesar da impopularidade do dossiê, o primeiro-ministro deu vários sinais de apreço público pelo trabalho do seu secretário de Estado, de quem disse estar a conduzir “a maior, mais moderna e ambiciosa reforma dos últimos 30 anos”. Agora, elogios leva-os o vento. Porque foi João Figueiredo quem, juntamente com outros dois colegas do TC, aplicou, nas últimas semanas, cinco vetos a outras tantas concessões rodoviárias lançadas pelo Governo, que viu congelado o ambicioso plano de novas auto-estradas.
O caos está instalado entre a Estradas de Portugal (EP) a empresa pública que gere o sector das rodovias e as empresas que ganharam os concursos. É o caso, por exemplo, da Mota-Engil que ameaça não só parar as obras dentro de um mês se não estiver garantido o financiamento público como exigir uma colossal indemnização. A EP já apresentou recurso das decisões desfavoráveis do TC e, na recente ida à AR, para explicar este assunto, o ministro das Obras Públicas, António Mendonça, garantiu que as obras são para continuar.
O TC que alegou um brutal empolamento de custos e a perversão de procedimentos nas várias etapas dos concursos não pensa assim e vai avisando que o seu cutelo não ficará na gaveta perante outras empreitadas de vulto como o TGV, novo aeroporto ou terceira travessia sobre o Tejo. “É desejável que estas últimas decisões tenham um efeito multiplicador e pedagógico e que venham a servir de farol e de guia para futuras concessões”, afirmou à VISÃO fonte do Tribunal de Contas. À laia de aviso.
Serão estes chumbos reflexo de um excessivo formalismo, que faz do TC uma espécie de força de bloqueio do desenvolvimento do País ou, antes, uma providencial chamada de atenção para o crónico despesismo nacional? A questão divide as opiniões, incluindo as do painel de especialistas que a VISÃO constituiu para analisar este tema. Nos últimos dias, a caixa de correio electrónico do TC tem sido entupida por dezenas de mensagens de cidadãos ou grupos anónimos a darem o seu apoio ao trabalho dos juízes-conselheiros, em especial ao do trio de magistrados João Figueiredo, Helena Abreu Lopes e António Soares Santos que recusou o visto prévio às cinco concessões rodoviárias.
Sendo estes projectos para concretizar em parceria público-privada (PPP), os juízes entenderam que a EP deveria ter realizado, antes sequer de ter lançado o concurso de adjudicação, um comparador público. Ou seja, um estudo que avaliasse se, sozinho, o Estado conseguiria resultados tão eficientes como os que alcançaria actuando com um parceiro privado. O segundo ponto central do veto do TC prendeu-se com uma alegada mudança de requisitos a meio do concurso, o que não só terá beneficiado os consórcios vencedores como engordou, e muito, a factura a pagar pelo Estado.
“Perplexidade” foi, por exemplo, um dos termos usados pelos conselheiros quando, em relação aos contratos das auto-estradas Transmontana e Douro Interior, verificaram que o Estado perdoou 430 milhões de euros à Soares da Costa e à Mota-Engil, verba que, na fase inicial dos concursos, os dois consórcios se haviam comprometido a pagar à EP, no caso de ganharem a concessão, como veio a acontecer. Só que, na fase seguinte, essa rubrica contratual “caiu”, o que aliviou os gastos das duas empresas de construção e agravou a factura a pagar pelo Estado. Dos 2 790 milhões de euros inicialmente previstos, os custos derraparam para os 3 900 milhões.
A EP acena com os estudos de viabilização económica feitos previamente aos concursos para considerar desnecessária a existência do comparador público exigida pelo TC. Quanto ao empolamento dos custos, a entidade liderada por Almerindo Marques justifica-o com os efeitos da crise, mas assegura a existência de cláusulas que permitirão a renegociação dos gastos.
A decisão sobre os recursos apresentados no TC deverá demorar entre dois e três meses. Até lá, ainda será, possivelmente, conhecido o acórdão sobre a sexta e última concessão rodoviária, a do Algarve Litoral, embora dentro do tribunal exista a convicção de que o veto será o desfecho mais provável.
Há muito que o organismo liderado por Guilherme d’Oliveira Martins vem avisando quanto aos supostos vícios deste tipo de projectos. Já no ano passado, foi conhecido o extenso e demolidor dossiê da auditoria que o tribunal fez à gestão das PPP, nas concessões rodoviárias, no período entre 1999 e 2007. E em que sublinhou a “falta de transparência orçamental” e de “estimativas fiáveis” na definição do montante de encargos, na contratação em PPP, a ausência, por parte do Estado, “de qualquer atitude de avaliação da qualidade do serviço prestado pelos concessionários”, bem como o facto de estas entidades não terem sido penalizadas pecuniariamente por falhas contratuais.
Em entrevista dada ao Jornal de Negócios, o juiz-conselheiro Carlos Moreno, relator desta auditoria afirmou que “O Estado portou-se como um ‘anjinho’ “, fruto da menor experiência deste modelo face aos privados. “Mas dez anos depois, já não há desculpa!”