Foram vários os lugares que marcaram a vida de D. Manuel I. Numa série em video e podcast, Isabel Stilwell leva-nos a conhecer os sítios importantes para o Rei e que inspiraram o seu novo romance histórico.
9º Episódio
Lisboa, Abril de 1506
D. Manuel estava em Avis quando recebeu a notícia de que em Lisboa se massacravam milhares de cristãos-novos, perante a passividade das autoridades, bodes expiatórios de anos de fome e peste que dizimava a população.
Tudo tinha começado na Igreja de São Domingos quando alguns fiéis que rezavam frente a um crucifixo o viram resplandecer. “Milagre, Milagre” gritaram, tal era a ânsia de que Deus finalmente se tivesse apiedado do seu sofrimento. No domingo seguinte, a igreja encheu-se de cristãos, na esperança de voltarem a assistir ao milagre. E o crucifixo resplandeceu de novo, para gáudio da multidão. Mas um infeliz, com maior amor à verdade do que à vida, apontou para uma candeia e disse que aquilo não era mais do que o reflexo da sua luz.
Um cristão-novo, garantidamente um judeu, eram eles os culpados de tudo, gritou alguém, e aquela gente fora de si arrastou-o para fora da igreja, matando-o e queimando-o ali mesmo no largo. Talvez tudo tivesse ficado por aqui se dois frades dominicanos não tivessem aproveitado o momento e, pegando no crucifixo milagroso
e clamando “Heresia, Heresia”, incitado a que se matasse “Esse povo abominável que crucificou Nosso Senhor Jesus Cristo”. Deus castigava Lisboa por ali se dar abrigo aos hereges, diziam.
As pessoas começaram a juntar-se e quando se deu por isso eram mais de quinhentas e começaram a arrastar todos os cristãos-novos que achavam na rua, ou que iam buscar a casa, lançando-os em grandes fogueiras. Dizem-nos os cronistas que saíram marinheiros dos barcos, e aquela chusma violou mulheres, pilhou casas, por ódio antigo àquele povo, mas também para encher os bolsos. Três dias depois, as fogueiras ainda ardiam, e não se sabe o número ao certo, mas pelo menos dois mil já tinham morrido quando a guarda do rei entrou na cidade e parou a chacina.
D. Manuel castigou imediatamente Lisboa. Mandou queimar os dois frades, e matar os principais culpados. E voltou a lembrar que no reino só havia cristãos, desde que mandara expulsar os judeus e os mouros que recusavam a conversão. Convenientemente, esquecia dos métodos a que recorrera para conseguir estas
conversões e de como impusera o batismo a todos os judeus que tinham acorrido a Lisboa, acreditando na promessa de que daqui os deixaria partir. Não deixou. Mandou concentrá-los num terreiro do Palácio dos Estaus — onde hoje se encontra o teatro D. Maria II —, e depois de dias de fome e sede, batizaram-se os que cederam (ou seja, os que não se suicidaram). O rei, apesar do massacre de Lisboa, queria continuar a acreditar que cristãos novos e cristãos velhos esbateriam as suas diferenças, se tornariam num só povo. Nunca o fizeram.
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