“Vi muito medo no olhar das pessoas, especialmente das crianças. Nem era preciso chorarem para percebermos que estavam verdadeiramente assustadas…
Quando o comboio chegava, e ajudávamos a retirar os mais pequenos, apesar de estarmos com o uniforme de bombeiro, tínhamos de os devolver rapidamente à família. As mães resistiam a passar-nos os filhos para o colo, mesmo quando traziam três ou quatro miúdos e ainda tinham de carregar as bagagens… Os seus olhos estavam sempre fixos em nós enquanto segurávamos nas crianças. Havia muitas pessoas na plataforma e julgo que tinham medo de perder o rasto aos filhos.
Fazíamos turnos de 12 horas na estação de caminhos de ferro, em Varsóvia, das sete da manhã às sete da noite e das sete da noite às sete da manhã. Eu comandava oito jovens bombeiros em formação. Nunca sabíamos bem a que horas podia chegar um comboio. Normalmente, chegavam dois vindos diretamente de Kiev em cada turno. Vinham cheios. Absolutamente cheios. A esmagadora maioria dos passageiros eram mulheres e crianças. Se uma mulher chega a um país estrangeiro e encontra, sobretudo, bombeiros do sexo masculino, é natural que tenha medo e que desconfie.
As mulheres percebem melhor o que elas estão a passar e conseguem deixá-las mais à vontade. Claro que há muitos militares e bombeiros do sexo masculino que só querem o bem destas pessoas, mas é difícil passar a mensagem de que aquelas mulheres podem confiar em nós. Eu sei russo e consigo compreender ucraniano, mesmo assim, é muito complicado… As mulheres é que devem estar na linha da frente do acolhimento quando a maioria das refugiadas são do sexo feminino, esta foi a primeira coisa que pensei quando estive na estação de caminhos de ferro. Não é discriminação, nada disso. Foi evidente, para mim, que as pessoas se sentiriam mais à vontade se fossem recebidas por outras mulheres.
Os primeiros refugiados ucranianos que chegaram à Polónia tinham alguém à sua espera na estação. Mesmo que chegassem de madrugada e não estivessem lá ninguém, tinham uma morada, sabiam para onde iam. A segunda onda de pessoas só estava de passagem pela Polónia, queria ir para outros países onde tinha família. O terceiro grupo já era composto por gente que chegava à Polónia sem saber o que fazer… Para mim, essa era a situação mais difícil de testemunhar.
LAÇOS DE FAMÍLIA
Na manhã do dia 24 de fevereiro, a minha mulher acordou-me e disse-me que Putin tinha começado a guerra. Ela estava com medo, sobretudo pela sua família que vive na Ucrânia, e queria trazê-los todos para Varsóvia. Ela é de Borshchiv, na região de Ternopil, na zona ocidental do país. Felizmente, é um local mais ou menos seguro, mas há umas semanas houve um bombardeamento a 30 quilómetros da casa da família. A mãe dela ouviu o ruído quando estava na varanda, mas não viu nada.
Ela ligou à mãe e pediu-lhe para partir, mas o pai tem menos de 60 anos, não pode sair do país porque ainda está em idade de combater. E a minha sogra decidiu ficar com ele. Quando começou a guerra, a minha cunhada estava em Varsóvia, mas decidiu regressar no final de maio. Ela tem 19 anos e quer estar perto do namorado, que também não pode sair do país. Toda a família da minha mulher continua lá.
A Polónia não tem experiência no acolhimento de imigrantes. Esta é primeira vez que vivemos algo assim. Não é possível não querer acolher e tratar bem as mulheres e as crianças que chegam. Estamos a fazer tudo o que podemos para ajudar os ucranianos, mas acho que a situação seria diferente se fossem, sobretudo, homens a chegar…
Fiquei muito surpreendido por haver tanta abertura por parte dos polacos. Toda a gente abriu a porta da sua casa para acolher ucranianos. Até houve pessoas do leste da Polónia que foram buscar refugiados à fronteira, a 600 ou 700 quilómetros de distância, e os levaram para as suas próprias casas. As nossas línguas são similares, se alguém falar ucraniano, um polaco consegue compreender. Por isso, a comunicação não é um problema e isso facilita o acolhimento. Até a nossa religião é semelhante.
Mas a nossa história não é simples, tivemos muitos problemas ao longo dos anos… Os meus avós, por exemplo, nasceram na Polónia, mas em regiões que agora pertencem à Bielorrússia e à Ucrânia. É uma situação complicada porque sempre houve conflitos entre os polacos e os ucranianos a propósito da nacionalidade… Contudo, neste caso, não tem havido problemas entre nós. Talvez existam, em algum local, mas não é a regra.
Os polacos estão a ajudar muito o governo a lidar com esta situação. Desde o início da guerra, muita gente está a acolher pessoas nas suas casas, mesmo sem apoios do governo. Agora, já há alguma ajuda estatal para as despesas. Antes da guerra, viviam na Polónia mais de um milhão de ucranianos. Atualmente, já passaram pelo país quase quatro milhões.
POLÓNIA INVADIDA?
Sentimento anti-imigração na Polónia? Não vejo nada disso. Vivo em Varsóvia, a capital, e há muitos ucranianos a morarem na cidade, sem problema algum. Quando houve aquela primeira grande vaga de migrantes que chegou à União Europeia [em 2015], foi um problema porque a Polónia não os quis acolher ou responsabilizar-se por eles. Essa decisão foi tomada pelos políticos e não pela população… Eu não vejo diferenças entre as pessoas, a cor da pele não importa. Não sei por que razão decidiram não acolher esses migrantes… Essa é uma questão para os políticos…
Mesmo quando visito a terra dos meus pais, onde vivem apenas 12 mil pessoas, junto à fronteira alemã, não vejo problemas com os imigrantes. Há lá um restaurante nepalês e a minha mãe está sempre a dizer que temos de ir provar as especialidades novas. Se a integração corresse mal, seria evidente nestas localidades, mas não há problemas. No caso dos ucranianos ainda é mais fácil porque temos muitas coisas em comum.
Não acredito que a guerra vá terminar em breve… Quanto mais soldados de países diferentes estiverem unidos, mais segura estará a Polónia. Por isso, acredito que o alargamento da NATO nos trará mais estabilidade, mas ninguém sabe o que pode passar pela cabeça dos russos. Nós também não acreditámos quando começámos a ouvir falar na invasão de Lugansk e de Donetsk…
Os russos dizem que os ucranianos estavam a matar pessoas em Donetsk, mas eu conheço muitos ucranianos, talvez a Ucrânia não seja um país perfeito, têm problemas de corrupção, mais isso é diferente do que argumenta Putin…
Eu também vejo televisão russa em casa, acho que é importante tentar compreender os dois lados. Aparecem muitos propagandistas a dizerem como a Rússia é fantástica. Se eu fosse russo, apenas acreditaria neles. Conheço pessoas na Rússia, elas não são burras, mas têm medo… E há tanta propaganda que é difícil mobilizar a opinião pública contra a guerra.
Quando falo ao telefone com o meu sogro, que está na Ucrânia, ele diz sempre: “Quando a NATO vier…”. Os ucranianos estão à espera disso. A minha mulher e o pai dela falam muito sobre isso. Ainda ontem os pais dela contavam que dois ou três soldados originários da aldeia onde vivem morreram. Os russos estão a matar ucranianos. As pessoas estão a morrer.
Ninguém pode sentir-se relaxado… A Polónia está a apoiar muito a Ucrânia, é através do nosso país que chega grande parte da ajuda. Mas os polacos também estão assustados com esta situação… Ajudar ou não ajudar? Talvez os ucranianos estejam próximos do nosso coração porque são nossos vizinhos e os vizinhos devem apoiar-se, mas ajudar põe-nos sempre em risco, especialmente neste caso, em que do outro lado estão pessoas que não conseguimos compreender. Por outro lado, se não ajudássemos, também não me sentiria bem com isso.
Desde o início da guerra, tenho sempre a bagagem do meu carro carregada, caso seja preciso mandar a minha mulher e o meu filho para a casa da minha família, próximo da fronteira com a Alemanha. Eu levo-os lá e regresso para Varsóvia, porque a capital estará na primeira linha de ataque. Não podemos sentir-nos seguros perante uma possibilidade destas. Estamos no séc. XXI e, se começa uma guerra, tudo pode acontecer… Este pensamento está sempre na minha cabeça.” *
*Depoimento recolhido por Vânia Maia aquando da passagem de Rafał Matuszkiewicz por Portugal no âmbito de uma conferência sobre proteção civil realizada no Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC), em Lisboa.