Desde o início da guerra na Ucrânia, a 24 de fevereiro, que a Rússia se tem esforçado por manter uma narrativa secreta e ambígua que incentiva e facilita a propagação de desinformação e notícias falsas. Pouco se sabe sobre a organização do exército russo e o que é conhecido não foi transmitido pelas autoridades do país. A última atualização dada pela Rússia no que toca a números oficiais de baixas do seu exército foi a 25 de março, há quase três meses, e, desde então, o número baseia-se apenas numa estimativa.
A BBC levou a cabo uma investigação cujo objetivo era perceber o número de baixas reais do exército russo desde o início do conflito. A estimativa foi alcançada através do contacto com várias fontes abertas e famílias de soldados russos e ultrapassou as 3500 vítimas, um número que poderá ser ainda maior. Entre as vários milhares de mortes indicadas pelo órgão de comunicação, foram confirmadas ainda, e oficialmente, pelo governo russo, as mortes de outros quatro generais do exército, embora exista a suspeita de que o número real possa ser, na verdade, oito.
Nas guerras atuais, a morte de generais é um acontecimento bastante raro. Em jeito de comparação basta considerar o ataque desencadeado em 2014 por um soldado afegão que resultou na morte do general norte-americano Harold Greene. A sua morte marcou a primeira vez, em mais de 40 anos, que um general dos EUA era morto em combate, como realça a BBC. Porque se terão, então, registado tantas mortes de generais na atual guerra da Ucrânia?
Inicialmente, o número de mortes divulgadas tinha atingido o número 11, mas, entretanto, três desses generais surgiram em vídeos a desmentir a sua própria morte, o que pode ser tido como mais um exemplo da desinformação que tem dominado esta guerra.
A levantar ainda mais questões sobre o modo como se tem organizado o exército russo surge a história de Kanamat Botashev, um ex-piloto russo que terá morrido em maio deste ano depois de o jato que pilotava se ter despenhado. No momento em pilotava o avião, Botashev, de 63 anos, já se havia reformado do exército há pelo menos dez anos. Porque estava, então, um oficial aposentado que já havia deixado as forças armadas há uma década a pilotar um avião em plena guerra?
As questões continuam a acumular-se e formam uma teia de dúvidas que complica a narrativa e dificulta a procura pela verdade, mas as suas respostas podem ser essenciais para perceber o ponto de situação do exército russo na guerra.
Os generais mortos e o seu significado
Na maioria dos casos, e nas guerras atuais, os generais não chegam a ser colocados na linha da frente, no entanto, no caso dos quatro generais russos, cuja morte já foi confirmada oficialmente, parece ter-se verificado o oposto. As interpretações podem ser muitas. De acordo com a BBC, são três as principais razões que podem ajudar a justificar o número anormalmente elevado de baixas nos generais.
No exército russo, o número de oficiais em cargos superiores parece, segundo o mesmo órgão de comunicação, ser bastante elevado, ultrapassando a marca dos mil, o que poderia tornar mais provável que alguns deles fossem colocados na linha da frente e, consequentemente, mais facilmente mortos pelo adversário. A investigação da BBC revela que em cada cinco soldados, um trata-se de um oficial de nível médio ou superior. Algumas autoridades ocidentais sugeriram ainda a hipótese de que o possível desânimo sentido entre os soldados russos possa ter obrigado os generais a guiarem os grupos no campo de batalha, incentivando as tropas.
Por outro lado, foi também nomeada a escassez de equipamento de comunicação, que já foi, inclusive, manchete em vários órgãos de comunicação, como uma possível causa para a morte dos quatro generais. A falta de equipamento pode ter forçado os oficiais a recorrerem a telefones tradicionais para estabelecerem comunicação nas imediações da zona de combate, o que poderá ter comprometido a sua segurança dado que esses telefones são mais fáceis de localizar.
Por último existe ainda o fator da ajuda externa: segundo vários órgãos de comunicação dos EUA, incluindo o The New York Times que diz, inclusive, ter recolhido o testemunho de alguns elementos das forças secretas norte-americanas, o país tem fornecido informações à Ucrânia sobre o paradeiro de alguns dos generais do exército russo, tendo o mesmo órgão de comunicação descrito os serviços secretos norte-americanos como “fundamentais” na morte de alguns dos generais.
O piloto reformado
A história do piloto que, reformado, cruzou os céus ucranianos durante a guerra levanta também algumas questões sobre a forma como têm sido orientadas as tropas russas. Botashev traçou um percurso complexo durante a sua carreira nas forças aéreas do país: em 2012 terá sido expulso do exército por despenhar um avião que não estava autorizado a pilotar, um acidente que não foi único dado que no passado já havia pilotado um tipo de avião avançado para o qual não tinha licença.
Como castigo, o ex-piloto foi obrigado a pagar uma multa ao Estado de mais de 71 mil euros, um valor que, ainda assim, não se equiparava aos estragos de milhões de euros que provocou. Após abandonar o exército, Bootshev foi trabalhar para a DOSAAF, uma organização estatal de voluntários com vínculos ao exército e à marinha que visa estimular o interesse dos jovens pelo mundo militar.
Tendo em conta o passado atribulado do piloto no exército, porque teria Bootshev sido escolhido para pilotar um avião durante uma guerra? A pergunta permanece por responder. Alguns colegas do ex-piloto, entrevistados pela BBC, elogiaram Bootshev dizendo que este era um “piloto com P maiúsculo” e que existem “poucas pessoas na Terra tão obcecadas pelos céus como ele”.
A guerra na Ucrânia continua a deixar muitas questões sem resposta e já foi responsável pela deslocação de quase 12 milhões de refugiados, segundo dados da ONU.