São quatro minutos e meio (seis minutos na versão completa) em que um comentador russo desfaz a propaganda de que a Rússia está a vencer a guerra e que a Ucrânia tem um exército inferior. Tudo em direto na televisão estatal, a Rossiya 1, no programa 60 Minutos, de Olga Skabeeva, a propagandista conhecida pela alcunha de “Boneca de Ferro de Putin”, pelo estilo agressivo com que defende as posições do Kremlin.
Mikhail Kodaryonok, coronel na reserva, ex-chefe de um grupo da Direção Operacional Principal do Estado-Maior General das Forças Armadas da Federação Russa, começa por avisar que, ao analisarem a situação militar na Ucrânia, as pessoas “não devem tomar sedativos informativos”, numa alusão à cobertura uniformemente otimista nos media russos sobre a “operação militar especial”. “Às vezes, ouvimos relatórios sobre o colapso psicológico e moral das Forças Armadas ucranianas. O mínimo que posso dizer é que isso não é verdade.”
O oficial superior segue a sua linha de raciocínio, explicando que a Ucrânia “pode armar um milhão de pessoas”, com a ajuda do Ocidente, e que o exército inimigo está altamente moralizado “pelo desejo de defender a pátria”. “A vitória final no campo de batalha é determinada pelo alto moral das tropas que derramam sangue pelas ideias pelas quais estão prontos para lutar.”
Olga Skabeeva tenta contrapor, duas vezes, os argumentos do convidado, mas sem convicção.
“O mais importante”, continua Kodaryonok, “é mantermo-nos realistas de um ponto de vista político e militar. Senão, mais tarde ou mais cedo a realidade vai bater-nos em cheio com tanta força que nem sabemos de onde veio.” O coronel critica ainda as ameaças russas à Finlândia, apelidando de “cómicas” as tentativas de intimidação com mísseis. “O maior problema com a nossa situação militar e política é que estamos em total isolamento geopolítico e o mundo todo está contra nós, e nós não queremos admiti-lo.”
Este tipo de franqueza e realismo são singulares nos media russos, obrigados a seguir as orientações do Kremlin, cabendo apenas boas notícias e comentários positivos. A circunstância de convidarem Kodaryonok a partilhar a sua opinião é ainda mais estranha atendendo ao seu currículo recente: o oficial escreveu um artigo exatamente três semanas antes do início da guerra em que demolia, ponto por ponto, os argumentos de quem defendia a invasão, sublinhando a fraqueza da Rússia e a força relativa da Ucrânia, e com uma precisão extraordinária. Ninguém pode ter sido apanhado de surpresa com as suas declarações no programa.
O texto, publicado no jornal russo Nezavisimaya, tinha por título “Previsões de cientistas políticos sanguinário – sobre falcões entusiasmados e cucos apressados” e começava logo sem nuances: “Alguns representantes da classe política russa argumentam hoje que a Rússia é capaz de infligir uma derrota esmagadora à Ucrânia em poucas horas (e períodos mais curtos também são mencionados) se um conflito militar irromper. Vejamos se tais afirmações correspondem à realidade. (…) Vários especialistas concluem que um golpe esmagador da Rússia será suficiente para acabar com essa guerra. Como cereja do bolo, alguns analistas enfatizam o fato de que ninguém na Ucrânia defenderá o ‘regime de Kiev’.”
Segue-se uma crítica demolidora às alegadas intenções do Kremlin, que seriam confirmadas a 24 de fevereiro, começando pela tese de que os ucranianos acolheriam os russos como salvadores. “Afirmar que ninguém na Ucrânia defenderá o regime revela uma total ignorância da situação político-militar e do estado de espírito das amplas massas populares no Estado vizinho. Além disso, o nível de ódio (que, como sabemos, é o combustível mais eficaz para a luta armada) na república vizinha em relação a Moscovo é francamente subestimado. Ninguém receberá o exército russo com pão, sal e flores na Ucrânia.” Kodaryonok lembra que, em 2014, e também contra as expectativas russas, nem a população russófona de Kharkiv, Zaporozhye, Dnepro e Mariupol apoiou o plano de transformar todo o Leste ucraniano na “Novorossiya”, sob domínio russo.
O coronel desfaz, de seguida, o suposto “poderoso ataque de fogo da Rússia”, que destruiria “praticamente todos os sistemas de vigilância e comunicação, artilharia e formações de tanques das Forças Armadas da Ucrânia”. “Apenas políticos poderiam usar tal expressão”, acusa, explicando depois ao pormenor, com argumentos técnico-militares, porque é que esse “poderoso ataque” inicial é uma ilusão. E recorda que “as reservas de armas promissoras e de alta precisão” da Rússia “não são de natureza ilimitada”. “Os mísseis hipersónicos do tipo Zircon ainda não estão em serviço. E o número de mísseis Kalibr, Kinzhals, Kh-101 e Iskander é medido na melhor das hipóteses nas centenas (dezenas no caso de Kinzhals). Este arsenal não é absolutamente suficiente para varrer da face da Terra um estado do tamanho da França e com uma população de mais de 40 milhões.”
A “superioridade aérea”, por seu lado, é insuficiente para fazer a diferença. O Afeganistão e a Chechénia não tinha aviação, diz, e ambas as guerras duraram anos e “custaram muito sangue” à Rússia. “E as Forças Armadas da Ucrânia ainda têm alguma quantidade de aeronaves de combate. Bem como meios de defesa aérea.”
Além disso, o exército ucraniano já não está em cacos, avisa. “Se até 2014 as Forças Armadas da Ucrânia eram um fragmento do exército soviético, nos últimos sete anos foi criado um exército qualitativamente diferente na Ucrânia, com uma base ideológica completamente diferente e em grande parte baseado nos padrões da NATO. E armas e equipamentos muito modernos estão a ser fornecidos e continuam a ser fornecidos à Ucrânia por muitos países da NATO.”
Mikhail Kodaryonok escreve, também de modo premonitório, que soldados da NATO não entrarão em território ucraniano. Mas antevê uma “assistência maciça às Forças Armadas da Ucrânia” por parte do Ocidente, “com uma ampla variedade de armas e equipamentos militares e entregas a granel de todos os tipos de material.” “Não há dúvida de que os Estados Unidos e os países da Aliança do Atlântico Norte iniciarão uma espécie de reencarnação do Lend-Lease, modelado após a Segunda Guerra Mundial, não há dúvida. Um afluxo de voluntários do Ocidente, que pode ser muito numeroso, não está descartado.” Cenários que se confirmaram com uma precisão espantosa. O coronel fala ainda das dificuldades inultrapassáveis de combater em grandes cidades, lembrando que a Batalha de Estalinegrado pode ser multiplicada várias vezes na Ucrânia (comparação irónica, tendo em conta que coloca a Rússia no papel dos nazis e a Ucrânia no dos defensores soviéticos).
Em suma, “não haverá blitzkrieg ucraniano”. “As declarações de alguns especialistas como ‘O exército russo derrotará a maioria das unidades das Forças Armadas da Ucrânia em 30-40 minutos’, ‘A Rússia é capaz de derrotar a Ucrânia em 10 minutos no caso de uma guerra em grande escala’, ‘Rússia vai derrotar a Ucrânia em oito minutos’ não têm bases sérias.”
O oficial russo conclui, finalmente, que “um conflito armado com a Ucrânia não é” do interesse nacional da Rússia”. “Portanto, é melhor que alguns especialistas russos superexcitados esqueçam as suas fantasias de ódio. E para evitar mais perdas de reputação, nunca mais se lembrem delas.”
É este artigo que tem levado analistas a duvidar de que o convite a Kodaryonok tenha sido um acidente, apenas um comentador a fugir do guião, num programa ao vivo. E quem conhece os meandros do Kremlin duvida ainda mais disso. É o caso de Garry Kasparov, que se tornou opositor de Putin e foi obrigado a fugir da Rússia. Em reação a um utilizador do Twitter que partilhou o vídeo com o comentário “É preciso coragem para dizer isto na TV russa”, o antigo campeão mundial de xadrez respondeu “Não é preciso coragem para dizer coisas na TV russa, é preciso autorização.”
A ser assim, significa que há uma adaptação da estratégia de comunicação do Kremlin – talvez com o objetivo de finalmente aproximar a opinião pública da realidade da guerra e preparar o povo russo para o pior.