Se, este ano, a Ucrânia não participasse no Festival Eurovisão da Canção ninguém levaria a mal. Seria compreensível que com o país invadido pela Rússia, há mais de dois meses, ninguém tivesse cabeça, vontade ou discernimento para tratar do assunto. Mas, como disse o comediante Trevor Noah ao apresentar um discurso em vídeo do presidente Volodymyr Zelensky na cerimónia dos prémios Grammy, a 3 de abril: “Mesmo nos tempos mais sombrios, a música tem o poder de levantar o ânimo e dar esperança de um amanhã melhor. Não há ninguém que possa usar um pouco de esperança agora mais do que o povo da Ucrânia.”
O anúncio de que o grupo Kalush Orchestra seria o representante ucraniano no concurso musical chegou a 22 de fevereiro, dois dias antes de começar a guerra. À data, o grupo de folk-rap ucraniano estava de regresso a casa, depois de ter terminado uma tournée pela Polónia e pela Ucrânia. Foi Oleh Psiuk, o rapper que lidera a banda, que depois de ter acordado com explosões nos arredores de Kiev, ligou para o empresário a dar a notícia: “A guerra começou”. Daí para a frente, estes homens replicaram o que tantos outros estavam a fazer – combater pela defesa do seu país.
“Parou tudo. Só pensávamos em como nos mantermos vivos e em como proteger as nossas famílias. Parei de pensar completamente na Eurovisão”, lembra Tymofiy Muzychuk ao The Economist.
O músico ucraniano que canta o refrão melancólico tinha chegado a casa da tour na noite anterior e ainda nem tinha desfeito as malas. Ele e o seu colega de apartamento encheram o carro e foram até a vila onde mora a sua família no oeste da Ucrânia. Muzychuk estudou música folclórica tradicional e toca muitos instrumentos nativos da Ucrânia. Deixou-os todos para trás e tornou-se voluntário no combate à guerra: juntou várias pessoas que tinham carro com aquelas que precisavam de transporte, além de levar comida e coletes à prova de balas.
Também Oleh Psiuk, o rapper líder do grupo, foi para o oeste da Ucrânia, para Kalush, a sua cidade natal, ajudar a carregar caixas com mantimentos e a transportar refugiados de e para as estações de comboios. “Sou um patriota. Amo o nosso povo. As melhores coisas que me aconteceram na vida aconteceram em Kalush: o meu primeiro amor, a primeira noite de sexo, a primeira vez que ganhei o meu próprio dinheiro, os primeiros sucessos e os primeiros fracassos.”
Mikola Kycheriavyy, empresário da banda, começou mesmo por se juntar ao exército. “Quando se lê a história ucraniana, percebe-se que não se pode ficar parado num momento como este”, explicou. Mesmo sem experiência militar, Mikola foi destacado para defender os subúrbios de Kiev: “Nunca tinha segurado numa arma antes”. Mas, Mikola logo percebeu que o seu tempo era mais bem gasto arrecadando fundos para a sua unidade, usando as contas das redes sociais da Kalush Orchestra. Chegaram a angariar mais de 30 mil euros por dia para comprar munições, coletes à prova de balas, capacetes e kits médicos.
Serão estes homens que nesta terça-feira, 10, subirão ao palco em Turim, na Itália, para cantar Stefania na primeira semi-final, a mesma em que a nossa Maro canta Saudade, além das músicas da Albânia, Letónia, Lituânia, Suíça, Eslovénia, Bulgária, Holanda, Moldávia, Croácia, Dinamarca, Áustria, Islândia, Grécia, Noruega e Arménia.
A música que lidera há várias semanas as listas de apostas do concurso não foi a primeira escolha para representar o país invadido pela Rússia. Stefania foi a segunda classificada, atrás de Alina Pash. Mas, a cantora desistiu por causa de uma eventual visita à Crimeia, região ocupada e anexada pela Rússia em 2014. Os Kalush Orchestra tiveram então permissão especial do governo ucraniano para viajar.
“É assustador, muito assustador, acordar todas as manhãs com o som de explosões, sem saber se a minha namorada ou a minha família estão vivas. Peço a todos que apoiem a Ucrânia, que pensem em formas de ajudar a Ucrânia nesta situação. Se toda a gente no mundo fizer o que estiver ao seu alcance, então poderemos acabar com esta guerra muito mais rapidamente e prevenir que aconteça noutro país”, apelou Oleh Psiuk em entrevista ao jornal The Guardian.
Desde o início da guerra, a música dos Kalush tornou-se numa espécie de hino à pátria, tornando-se a canção mais vista no YouTube entre as 35 participações nacionais no concurso. Stefania é uma canção de embalar para as mães e não para as crianças, escrita com o contributo de todos os elementos do grupo. Stefania é o nome da mãe do vocalista, “mas gosto de pensar, quando estamos a tocar, que estamos todos a cantar para as nossas mães”.
“Na verdade, a canção foi escrita muito antes da guerra e foi dedicada à minha mãe. Depois de tudo ter começado assumiu um significado adicional e muitas pessoas começaram a vê-la como a mãe, a Ucrânia, no sentido de país. Tornou-se realmente próxima do coração de muitas pessoas na Ucrânia e a sua relevância aumentou”, analisa Oleh Psiuk.
Misturando música folclórica tradicional ucraniana com hip hop, a atuação da Kalush Orchestra na primeira semi-final da Eurovisão terá uma mensagem política extra, representando a singularidade da cultura ucraniana contra o pretexto belicoso de Moscovo de que a antiga república soviética sempre fez parte da Rússia. “Mostraremos que a cultura ucraniana e o código étnico ucraniano existem e o nosso objetivo é levar a música ucraniana não só à Ucrânia mas a toda a Europa. E a Eurovisão é a melhor plataforma para isso”, garante o vocalista.
Toda a performance e a mensagem da música à luz da guerra foi, entretanto, repensada. “A ideia cresceu e agora estamos a pensar numa mãe cósmica que dá vida a todos os seres vivos e também na ideia de mãe como protetora e guardiã”, descreve Oleksii Zhembeovskyi, produtor do espetáculo.
Como a Eurovisão não autoriza que sejam transmitidas quaisquer imagens políticas, não será possível incluir imagens do conflito no cenário, como os “ouriços” antitanque que agora são omnipresentes nas estradas de toda a Ucrânia. No entanto, estão prometidas algumas surpresas com bastante simbolismo. A banda encomendou fotografias de mães ucranianas que serão projetadas com o foco nos seus olhares, “mães reais expressando a dor de esperar que os seus filhos voltem da guerra”.
O produtor Oleksii Zhembeovskyi não só teve de se concentrar no cenário da atuação, como reunir uma nova equipa, depois de terem perdido a maior parte dos técnicos e criativos. A União Europeia de Radiodifusão pô-lo em contacto com técnicos italianos para auxiliar no projeto de vídeo e iluminação.
Tudo o que os ucranianos fazem agora, mesmo no campo das artes e da cultura, é servir o país. A entrada dos Kalush Orchestra na Eurovisão não é diferente e Oleksii Zhembeovskyi reforça: “A cada dia que passa há cada vez menos notícias sobre a Ucrânia nos jornais estrangeiros. Precisamos manter o foco das pessoas.”
O caminho até Turim
Há 19 anos, a Ucrânia entrava para a lista dos países participantes do Festival Eurovisão da Canção, o que aconteceu 16 vezes, desde 2003. O país venceu o concurso por duas vezes: em 2004, com Wild Dances de Ruslana e, em 2016, com a música 1944, de Jamala, tornando-se o primeiro país da zona leste da Europa a ganhar o concurso duas vezes.
O tema de Jamala sobre a deportação dos Tártaros da Crimeia, na década de 1940, foi composta após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Jamala foi particularmente inspirada pela história da sua bisavó, Nazylkhan, que estava na casa dos 20 anos, quando ela e os seus cinco filhos foram deportados para a Ásia Central. Uma das filhas não sobreviveu à viagem. A canção foi também disponibilizada no meio de uma repressão renovada dos Tártaros da Crimeia, na sequência da anexação russa da Crimeia, uma vez que a maioria dos Tártaros da Crimeia se recusam a aceitar a anexação.