A posição do governo chinês perante a invasão da Ucrânia tem sido algo inconstante e dissimulada. O presidente Xi Jinping, através das suas comunicações oficiais e medidas concretas, tem tentado equilibrar a importante relação comercial chinesa com as grandes potências ocidentais com a parceria entre o seu país e a Rússia, que, poucos dias antes da invasão Pequim qualificou de “sem limites”. Esta cooperação sino-russa joga-se em vários tabuleiros, desde o geoeconómico ao financeiro, passando pelo ideológico – onde Xi Jinping reconhece em Vladimir Putin, presidente da Rússia, um aliado natural na sua cruzada contra a hegemonia do ocidente. Daí a dificuldade em descortinar as inclinações de Pequim no puzzle da geopolítica.
A incerteza tem-se traduzido, por vezes, em declarações de apoio ao povo ucraniano, imediatamente seguidas por críticas veementes ao que a China vê como a principal razão do início desta guerra: “os conflitos de segurança de longa data na Europa”, todos eles orquestrados e exacerbados, segundo Pequim, pela NATO, a União Europeia e os Estados Unidos.
Esta ginástica retórica do governo chinês evidencia o reconhecimento de que os riscos de apoiar abertamente o Kremlin e, a reboque, a invasão que Putin perpetrou contra a Ucrânia, podem suplantar quaisquer benefícios que uma estável e duradoura ligação mercantil com o Kremlin possa oferecer. Nesse sentido, as movimentações da China no campo económico têm sido escrutinadas e interpretadas com especial atenção. A principal incógnita prende-se na posição de Pequim face às sanções da União Europeia e dos Estados Unidos, e na possibilidade de a China optar por socorrer a economia russa, de modo a evitar que esta desabe sobre o peso das medidas do ocidente.
Segundo os especialistas, o poder da China para ajudar a Rússia é bastante limitado, mas não nulo. O governo chinês pode ser útil à economia russa em várias áreas relevantes, entre elas a política monetária ou a sustentabilidade dos setores estratégicos da energia e armamento.
A dança das divisas
Na sequência da invasão à Ucrânia, as sanções da União Europeia e dos Estados Unidos congelaram cerca de metade das reservas que Banco da Rússia (banco central) detinha em moeda estrangeira, totalizando mais de 315 mil milhões de dólares. Umas das formas mais eficazes da China ir ao auxílio da Rússia passa precisamente por essa via, diz Alicia Gárcia-Herrero, especialista residente do ‘Think-Tank’ europeu Bruegel, num relatório publicado no site da Jamestown Foundation, um fórum de discussão de geopolítica norte-americano. Segundo Gárcia-Herrero, a China poderia libertar as reservas que o Kremlin detém no Banco Popular da China (banco central), que chegam aos 90 mil milhões de yuans, a divisa chinesa.
Neste momento, a Rússia só pode utilizar estas reservas para comprar produtos vindos da China, e não para financiar as suas importações vindas de outros países, ou efetuar pagamentos relativos à sua dívida soberana – o yuan é raramente utilizado neste tipo de transações internacionais. No melhor cenário para Moscovo, o Banco Central da China permitiria ao Kremlin converter as suas reservas para moedas fortes, um grupo de divisas consideradas politicamente e economicamente estáveis pelas instituições financeiras internacionais, como o Dólar, o Euro ou o Iene japonês, entre outras. Estas reservas, se convertidas, iriam diretamente para o financiamento do esforço de guerra de Putin, possibilitando ao Kremlin fazer as importações necessárias e sustentar a sua dívida externa. Aliás, segunda-feira, dia 4, os Estados Unidos proibiram a Rússia de usarem dólares para fazer pagamentos relacionados com a sua dívida, agravando o risco de a Rússia entrar em incumprimento financeiro.
Um dos grandes objetivos desta manobra seria também garantir alguma estabilidade para o rublo, a divisa russa, que chegou a perder cerca de 60% do seu valor face ao Euro desde o início da invasão. Desde então, o valor da moeda voltou a subir e hoje encontra-se próximo do valor que tinha antes da guerra, mas esse feito só foi conseguido a grande custo para a reputação das instituições bancárias russas e do Banco da Rússia, que foi obrigado a tomar medidas extremas como a suspensão das vendas de moedas estrangeiras ou a imposição de um limite à quantidade de divisas estrangeiras que cada cidadão pode levantar da sua conta bancária.
Uma moeda robusta e estável é uma enorme prioridade para Putin, devido a todas as vantagens económicas e políticas que essa consolidação acarreta. A cima de tudo, um rublo forte teria o condão de atenuar consideravelmente as pressões inflacionárias, ao baixar de forma relativa os preços das importações russas. Para além disso, os efeitos psicológicos na população resultantes de uma moeda forte, que contrastam gritantemente com os decorrentes da perceção que o valor da moeda está em queda livre, contribuem de uma forma significativa para a harmonia social e económica.
Setores estratégicos: energia, armamento e banca
No setor financeiro, tem havido muita especulação em torno do Sistema de Pagamento Interbancário Transfronteiriço (CIPS, em inglês) – a versão chinesa do sistema americano interbancário de pagamentos CHIPS, usado pela esmagadora maioria dos bancos internacionais – e a forma como este poderá eventualmente facilitar as transações das entidades financeiras russas barradas dos mercados ocidentais e do SWIFT, o sistema global de comunicação interbancária. Contudo, segundo P.S. Srinivas, professor na National University of Singapore, em Singapura, o CIPS não representa atualmente uma alternativa viável para os bancos russos. Por duas principais razões: O CIPS também depende do SWIFT para efetuar transações financeiras; e, mesmo que escolha erguer a sua própria plataforma comunicacional, não tem, neste momento, liquidez suficiente para albergar o volume de negócios exigido pela Rússia.
Já na energia, a China é um dos principais clientes de Moscovo, e pode ver vantagens em aprofundar essa relação. Na eventualidade da União Europeia impor um boicote às importações de matérias-primas energéticas da Rússia – os Estados Unidos já o fizeram – o Kremlin ficaria incrivelmente dependente da China, o que permitira a Pequim ajustar os termos de compra do petróleo, gás natural e carvão russos. Tendo um poder negocial ampliado, os preços iriam certamente descer, o que só beneficiaria o governo chinês. No entanto, esta transição comercial é praticamente impossível de implementar a curto prazo, pelo menos à escala pretendida pelos russos. Especialmente no que diz respeito ao gás natural liquefeito, que necessita de infraestruturas específicas para o seu transporte – que ainda não existem entre a China e a Rússia (pelo menos com a capacidade das já erigidas entre a Rússia e a União Europeia). Para Putin esta seria uma apenas uma solução de último recurso, já que o mercado energético europeu é consideravelmente maior do que o chinês, e o corte comercial com o bloco comunitário representaria um duro golpe para os cofres do governo russo.
Outro setor importante nesta equação é o do armamento. De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI, em Inglês), um instituto sueco dedicado a investigar atividades relacionadas com a defesa, a paz e os conflitos militares, entre 2017 e 2021 a China importou cerca de 80% das suas armas da Rússia, tornando-se, desta forma, o segundo maior cliente a nível global de equipamento militar russo, só ultrapassado pela Índia. Mas as armas não fluem numa só direção. De facto, Jake Sullivan, o conselheiro norte-americano de segurança nacional, advertiu o governo Chinês para evitar qualquer tipo de apoio militar à Rússia, num reconhecimento tácito que a parceria militar sino-russa tem o potencial de impor mais barreiras ao processo de resolução desta guerra. O Partido Comunista Chinês rotulou as declarações de Sullivan de “desinformação” e Siemon Wezeman, analista na SIPRI, disse que “até agora ainda não há provas” que os chineses estejam a amparar ou abastecer o exército russo.
Os riscos para a China
Os riscos que adviriam de um apoio a Moscovo não podiam ter ficado mais claros na sequência da mais recente cimeira bilateral entre a UE e a China, que decorreu por videoconferência no passado dia 1 de Abril. Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, aproveitou a sua intervenção logo após o final da cimeira para avisar a China que esperava que o país liderado por Xi Jinping fizesse tudo ao seu alcance para “não interferir” nas sanções europeias. Logo a seguir, von der Leyen salientou qual seria a grande consequência de uma aproximação de Pequim ao regime de Vladimir Putin: a reputação chinesa ficaria fortemente manchada no palco financeiro e político internacional.
“Qualquer apoio à capacidade da Rússia para fazer a guerra…levaria a um grande prejuízo para a reputação da China aqui na Europa. Os riscos de reputação levaram também ao êxodo das empresas internacionais da Rússia. O setor empresarial está a acompanhar atentamente os acontecimentos e a avaliar as movimentações dos diferentes países”, garantiu Ursula von der Leyen.
A ameaça é evidente: se a China apoiar de alguma forma a invasão da Ucrânia, as represálias económicas serão equivalentes às impostas ao Kremlin, nomeadamente em termos de sanções internacionais e boicotes de empresas privadas. Este parece ser o principal motivador para a incerteza que permeia toda a comunicação e ação diplomática do Partido Comunista Chinês, diz Alicia Gárcia-Herrero, a especialista do Bruegel. No fundo, é uma questão de números. A China e a Europa transacionam cerca de 2 mil milhões de euros em bens e serviços diariamente, um valor que eclipsa por larga margem os 330 milhões diários em trocas comerciais entre a China e a Rússia.
Algumas medidas recentes do governo chinês parecem sinalizar precisamente o reconhecimento que terá demasiado a perder se apoiar abertamente o seu “parceiro estratégico”. O seu banco central ainda não indicou se estará disponível para converter as reservas russas de yuan em rublos, aparentando alguma indiferença para com a queda do rublo; no âmbito do investimento direto, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, baseado em Pequim, cancelou todas as atividades na Rússia e na Bielorrússia, que contabilizavam mais de mil milhões de dólares em empréstimos consumados ou prometidos; e no mercado da aviação, Valery Kudinov, alto representante na agência federal russa de transporte aéreo, admitiu que a China recusou vender peças para os aviões russos, e que iria ter de procurar fornecedores alternativos.