A ameaça da NATO, a falta de identidade da Ucrânia, os nazis. Todas estas foram justificações dadas por Putin no discurso pré-guerra para invadir o país vizinho. Mas o pretexto formal foi o reconhecimento das repúblicas separatistas de Donetsk e de Luhansk: era preciso intervir para salvar as populações da região Leste do país. “O objetivo desta operação é proteger as pessoas que, há oito anos, enfrentam humilhações e genocídios perpetrados pelo regime de Kiev (…). O chamado mundo civilizado prefere ignorá-lo, como se não existisse este horror, este genocídio sobre quatro milhões de pessoas.”
Cindo dias antes, a 18 de fevereiro, já o embaixador russo em Washington D.C. abordara o tema, na página oficial da embaixada no Facebook, acusando os EUA de apoiar as políticas de “assimilação forçada de russos na Ucrânia”. “Os Estados Unidos precisam de compreender que existem milhões de russos a viver na Ucrânia cujos interesses precisam ser garantidos e protegidos.”
A 24 de fevereiro, o exército russo invadiu a Ucrânia, respondendo a um “pedido de auxílio” dos líderes separatistas.
O argumento de um país invadir outro para acudir uma minoria étnica supostamente reprimida está nos compêndios. O exemplo mais famoso da História será talvez quando Hitler mandou invadir a região dos Sudetas, na Checoslováquia, onde viviam centenas de milhares de cidadãos de etnia alemã.
No caso do Donbass, Putin tinha ainda mais um trunfo, já que parte significativa da população é efetivamente composta não só por falantes de russo mas também por cidadãos russos de pleno direito. Isto porque, em 2019, pouco depois da vitória de Volodymyr Zelensky nas eleições presidenciais ucranianas, o Kremlin aprovou um decreto que simplificou o processo de obtenção da cidadania russa para quem vivesse nos oblasts de Donetsk e Luhansk. De lá para cá, 720 mil habitantes das duas províncias obtiveram passaporte russo, dando a Putin o pretexto de que precisava para “salvar” os seus (novos) conterrâneos. Putin já usara, aliás, a mesma estratégia na Transnístria (Moldávia) e na Abkhazia e na Ossétia do Sul (Geórgia), outras regiões separatistas apoiadas pela Rússia.
Ainda assim, sublinhe-se que, apesar das facilidades e da pressão sobre as populações das duas repúblicas separatistas na Ucrânia para pedirem a nacionalidade russa, só 19% o fez (as zonas controladas pelos rebeldes albergam cerca de 3,7 milhões de pessoas).
É, no entanto, inegável que a região Leste da Ucrânia tem laços mais próximos com a Rússia do que o Centro e Oeste do país. Mas isso não significa que o povo queira ser assimilado. No referendo pela independência da União Soviética, em 1991, tanto os oblasts de Donetsk como de Luhansk votaram em massa pela secessão: 84% disseram “sim” à independência. Houve apenas uma província onde o resultado foi renhido – a Crimeia, que historicamente está ligada à Rússia, tendo passado para a Ucrânia em 1954, por decisão de Nikita Khrushchov – e ainda assim venceu a independência, com 54% dos votos.
Passaram-se mais de 30 anos sobre o referendo, e é impossível neste momento, face à situação de guerra que existe no Donbass há oito anos, saber qual a opinião dos habitantes. Mas, se o elemento decisivo for a etnia, as pretensões de Putin também saem goradas. De acordo com um inquérito à população das províncias de Donetsk e Luhansk, 57% das pessoas assumem-se etnicamente ucranianas e 38%, russas.
Independentemente da região, o sentimento antirrusso em toda a Ucrânia é cada vez mais vincado, fruto do que é visto como uma ingerência constante e tentativa de controlo por parte do Kremlin. Na cidade de Kharkiv, junto à fronteira com a Rússia, e onde praticamente toda a população tem russo como língua nativa, uma sondagem em 2015 apontava para números residuais de pró-russos na cidade: apenas 3% defendia a anexação pela vizinho do lado. Sete anos mais tarde, e ao fim de três semanas de bombardeamentos, a imagem da Rússia na cidade dificilmente terá melhorado.